O mal-estar na globalização em Helênia & Devília

AutorLuiz Fernando Coelho
CargoProfessor da UFPR (aposentado) Professor da Faculdade de Direito de Francisco Beltrão (PR) Professor do Centro Universitário Internacional UNINTER Membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas
Páginas16-28

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E vocam-se as reflexes de Freud ao referir-se ao “mal-estar na cultura”1, o que nos leva a pensar sobre a época atual, dominada por três fatores: a globalização, o domínio da informática e a afirmação do capitalismo como o modelo final e definitivo de produção da riqueza2.

Os estudos econômicos e políticos sobre o hemisfério ocidental, quando se repudiavam os males do capitalismo em sua versão neoliberal, geralmente deixavam de lado as economias socialistas, que estavam em fase experimental. Ainda sob os efeitos ideológicos da guerra fria, ignoravam-se os avanços socialistas e dificilmente se tentava uma análise comparativa, mesmo depois do fracasso e dissolução da União Soviética e da queda do muro de Berlim. Em suma, a visão que se tinha do mal-estar na cultura desfi-lava os problemas do capitalismo.

Só que o planeta se transformou, e é condizente fixar um marco para analisar as mudanças e constatar suas implicações em setores relevantes. Se partirmos do ano de 1959 – quando Fidel Castro e seus combatentes chegaram à Sierra Maestra, derrubaram o regime de Fulgêncio Batista e implantaram o socialismo –, até os dias de hoje, o cenário se modificou.

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A primeira dessas alterações foi o abandono, por inútil e sem motivo, da bipolaridade política que dividia as ideologias racionais entre esquerda e direita. Sem o espectro bipolar, o mundo passou a entender que seus problemas são maiores e mais complexos do que a simples oposição entre ideias e ideais, e que ninguém mais era obrigado a rotular-se ou rotular para fazer valer um ponto de vista. O fim da guerra fria e do próprio comunismo como doutrina apta a atrair a adesão dos que condenavam o capitalismo produziu a convergência entre Ocidente e Oriente, perdendo qualquer sentido a divisão política entre ambos.

Não se pode dizer que os países que enveredaram pela via socialista tenham fracassado. Entre os que ainda hoje se dizem socialistas, destacam-se Cuba e China, em face da influência ideológica que ainda exercem sobre a inteligência ocidental. O visível atraso de Cuba no campo econômico – visto que no campo social, na medicina, no esporte e na educação a vitória da revolução cubana é expressiva quando comparada com a miséria e ignorância que também envolve seus vizinhos, do México à Patagônia –, deve-se tanto à ineficiência de seus mecanismos de produção quanto ao boicote de sua economia pelos EUA, que absurdamente ainda permanece, malgrado os esforços diplomáticos e a condenação moral dos governantes americanos.

Os governos estadunidenses, no anseio ideológico de defender seu modelo econômico, jamais permitirão um domínio socialista em seu quintal. E Cuba é um osso atravessado na garganta, que os america-nos mais instruídos tentam engolir, mas não conseguem.

Quanto à China, seu povo vivencia a nova fase de um tipo de socialismo que cada vez mais se afasta do modelo soviético, que teria inspirado as revoluções socialistas do século passado. Nesse país do Extremo Oriente, o socialismo foi introduzido desde os anos 1940. Inicialmente, foi caracterizado pela revolução cultural de Mao Tsé-Tung, que procedeu ao sacrifício de milhões de cidadãos, assassinados ou forçados a emigrar para que os sobreviventes pudessem ter a vida melhor prometida pelo comunismo maoísta. Na segunda fase, a necessidade de crescimento econômico fez com que as autoridades do partido comunista chinês se aproximassem do capitalismo ocidental, cujos métodos e objetivos foram incorporados à administração da economia.

Pode ser tido por marco inicial dessa guinada econômica a reaproximação com os EUA, a partir de 1972, com a “política do pinguepongue”, alusão ao envio de uma equipe estadunidense de tênis de mesa à China no ano anterior ao da visita do presidente Nixon. Este é também o momento inicial da inserção do país no concerto das nações, após haver recuperado seu assento na ONU, representação que era atribuída à China Nacionalista, sediada em Taiwan.

É preciso realçar ainda que o isolamento da China não foi consequência da introdução do socialismo, mas do recrudescimento da guerra fria após a derrota de Chiang KaiShek e sua retirada para Taiwan, assinalando o fim da guerra civil, em 1949. A política internacional americana, que apoiava a China Nacionalista, contribuiu para que a República Popular da China, chefiada por Mao Tsé-Tung, não fizesse parte da ONU até a aproximação dos dois países, sob a competente diplomacia de Kissinger.

É possível afirmar que a China hoje é socialista, tendo em conta que seu autoritarismo burocráti-co não admite o direito de propriedade do solo, substituído por uma forma sui generis, espécie de usufruto por tão longo prazo que na prática equivale à propriedade privada. Mas não é uma democracia, ainda que possa ser considerada um estado de direito, apenas no sentido de que seus dirigentes submetem-se às leis, tanto quanto os cidadãos em geral. Todavia, se se preconiza que a democracia e o respeito aos direitos humanos são essenciais para a caracterização do estado de direito, dificilmente essa grande nação asiática passaria pelo crivo da crítica do direito. A situação da população rural é de visível pobreza, os trabalhadores chineses estão longe de atingir o nível de liberdade, igualdade e garantia de progresso social a que os ocidentais se acostumaram ao longo da história recente, passados os conflitos militares e ideológicos da segunda metade do século XX.

Apesar disso, a abertura para o Ocidente levou os dirigentes a valorizar as expressões culturais locais. Ao contrário do que fizera Mao, que perseguia as religiões, consideradas “ópio do povo”, hoje existe liberdade religiosa, ainda que contida, e as minorias étnicas são protegidas, inclusive como atrativo ao turismo.

A nova ideologia chinesa procura legitimar seu passado socialista, a ele atribuindo os resultados de hoje, ainda que omitindo o quantum de sacrifício imposto à geração anterior. Nesse desiderato, o socialismo chinês não foi oficialmente abandonado, mas a economia chinesa é um capitalismo disfarçado, pois adota métodos e práticas inerentes à economia de mercado que a tornaram hoje a grande potência mundial em evolução, segunda economia do mundo e tendendo de maneira célere a transformar-se na primeira.

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Para o governo autoritário, imposto pelo partido comunista chinês, é muito mais fácil investir em grandes obras de infraestrutura que gastar dinheiro com desapropriações, substituídas por reassentamentos. Além disso, são mínimos os encargos trabalhistas e previdenciários.

A despeito da deplorável situ-ação dos trabalhadores, principal-mente na zona rural, pode-se dizer que o país atingiu o patamar desejável do pleno emprego, moradia e educação básica para todos. Uma igualdade há muito sonhada, embora nivelada por baixo, na qual todos têm assegurado o direito ao mínimo que lhes permite viver com dignidade. Mas isso à custa do desrespeito aos direitos humanos, principalmente os dos trabalhadores mais humildes, o que definitivamente é incongruente com os princípios basilares do socialismo. Em tais condições, os países que já conseguiram instituir o welfare state e assimilar a democracia como opção política não têm como competir em desenvolvimento econômico. A manutenção do estado do bem-estar social exige investimentos públicos que aos poucos vão exaurindo as economias dos países democráticos.

Assim, é possível afirmar que o ideal por que lutaram os comunistas chineses foi conduzir a China ao capitalismo, embora um capitalismo sui generis dirigido pelo Estado.

Paradoxalmente, o mesmo ocorre no lado ocidental, onde a presença do Estado foi decisiva para a recuperação da economia desde que a crise de 2008 levou à bancarrota grandes empresas da Europa e dos EUA. Na crise, o tesouro público foi o responsável pelo salvamento das maiores corporações privadas, e este fato dos dias atuais demonstrou que o ca-pitalismo não pode prescindir do aporte de verbas públicas.

Estaria havendo, portanto, um processo de unificação ideológica, como se o capitalismo neoliberal incorporasse o socialismo, e este fizesse o mesmo com o capitalismo. Este é provavelmente o problema mais instigante que a economia e a ciência política não conseguem destrinchar. O que parece estar ocorrendo é uma solução de compromisso de ambos os lados para tirar o máximo proveito possível das respectivas experiências. Entretanto, evidencia-se a nítida vitória da visão capitalista da economia, baseada no direito de propriedade, na economia de mercado e na liberdade de iniciativa. Sobretudo no fomento às potencialidades individuais, atendendo à tendência dos homens para a satisfação pessoal material. Tal convergência não decorre da afinidade ideológica, nem de ideais humanitários apregoados por ambos os lados, mas das necessidades provocadas pela ênfase na economia, como se nada mais importasse além da ostentação de indicadores econômicos e financeiros favoráveis.

Por outro lado, ficou claro que os sistemas e movimentos totalitários não passam de reunião de ideias que escamoteiam o objetivo único de alçar-se ao poder político e mantê-lo o máximo de tempo possível. Evoca-se outra vertente do pensamento crítico, a de Max Weber, que estudou a dominação como a realidade do poder social e levou a ciência política à compreensão de que uma dominação ilegítima sempre será efêmera.

É por isso que os governos despóticos necessitam de mitos, falsas verdades, mentiras, até mesmo propostas pseudocientíficas para sustentar uma aparência de legitimidade perante o povo dominado. Só que a comunicação global de hoje torna essa tarefa mais difícil, como se observa nos acontecimentos dos países árabes. O povo é cada vez menos susceptível de manipulação ideológica, e a into-lerância para com os regimes totalitários parece ter chegado ao fim.

Quando se fala nos males da cultura, hoje, não é o mal-estar no capitalismo, mas o mal-estar na civilização global. Qual o modelo de ética que vai prevalecer? O heleniano ou o...

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