Mais trabalho, mais dignidade?

AutorRenata Coelho Vieira
CargoProcuradora do Trabalho lotada na PRT15ª Região, Campinas/SP
Páginas272-299

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I - Introdução

Uma dúvida que costuma inquietar juristas da área trabalhista é: por que hoje, quando temos tantas normas protetivas estabelecidas e uma gama bem complexa de direitos trabalhistas e sociais, parece ser justamente uma época em que o trabalhador mais sofre com abusos patronais à sua dignidade, honra, imagem, personalidade?1

Demorou séculos para o Direito evoluir no sentido de proteger a pessoa, seus direitos personalíssimos2, seus bens imateriais3. A origem patrimonial do Direito, a busca da defesa da propriedade e de bens materiais permitiu por muito tempo o degredo do patrimônio moral4.

No Direito do Trabalho, não foi diferente. Até porque nossa história vem lastreada em regimes de produção baseados na acumulação, no lucro a qualquer preço e longa já foi a estrada que levou do escravagismo ao trabalho "livre" e remunerado. Mesmo com o desenvolvimento do capitalismo e sua regulação não há como se negar seja da lógica desse regime a exploração da "mais-valia"5 no intuito do lucro, ainda que para tanto preciso seja preterir a condição de pessoa do trabalhador.

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No entanto, temos que reconhecer que desde as primeiras lutas por jornada, por erradicação da mão de obra infantil, por seguridade social até os dias de hoje enorme foi a evolução. Passamos de uma época em que mulheres e crianças eram objetos, que a pessoa com deficiência era descartada por inútil, ao reconhecimento de sua condição de seres humanos com direitos consagrados, merecedores, inclusive, de normas de especial proteção. Superamos a visão de que o trabalho é necessário apenas à sobrevivência, e passamos a visão de que o trabalho dignifica o homem, tendo valor para muito além de seu sustento econômico6.

Hoje somos o que produzimos. Nossa identidade para a família e a sociedade é nossa profissão. Passamos mais tempo no trabalho que com nossos amigos e parentes e mesmo quando nem chegamos ao trabalho ou dele já saímos ainda pensamos em trabalho ou a algo mesmo indiretamente com ele relacionado. Por vezes, em férias, pensamos em trabalho — o e-maila ser respondido, o retorno daquela ligação, o tal documento que precisa ser assinado, o estudo que tem que ser lido, a próxima meta a ser cumprida, etc. A intensidade do trabalho aumentou — o que será explicitado mais adiante — e para isso contribuiram a tecnologia e a divisão social do trabalho contemporânea.

Parece que o ser humano trabalhador chegou ao seu limite psicológico com relação ao trabalho e ao volume que ele consome de energia, dedicação, atenção, esforço mental. Quando ainda nem resolvemos questões seculares relativas a trabalho escravo, trabalho infantil, trabalho além das forças, anotação de CTPS, jornadas excessivas, atrasos de salários, dispensa sem recebimento de verbas, nos deparamos com os problemas relativos à intimidade, à honra7, à privacidade8, à moralidade do trabalhador.

Ora, há séculos tentando resolver questões mais "visíveis", mais "materiais", mais factíveis e elas ainda estão longe de serem erradicadas.

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Realmente, não seria no campo do "invisível", do imaterial, em que o Direito ainda é "jovem", nem sequer está maduro, que as soluções viriam imediatamente. Ao contrário, vivemos uma onda inversa, um efeito rebote, quando o Direito evoluiu e parece que as condutas irregulares afloraram, aumentaram. Aos olhos do leigo, pode parecer que assédio sexual, assédio moral, discriminação são problemas que passaram a existir no âmbito trabalhista há poucos anos e que estão agora piores do que nunca, diante da avalanche de procedimentos, processos e notícias a respeito9. Pode parecer que quando tentamos reprimir uma conduta e albergá-la em nosso ordenamento jurídico, acontece o movimento contrário e tais condutas ganham força.

Em verdade, sabemos que não se trata disso, ou ao menos não de forma tão simplista.

Sabido é que para reprimir uma conduta ou prevê-la em nosso Direito temos que nominá-la, estudá-la, caracterizá-la, defini-la ainda que traçando algumas linhas mestras e, com isso, o problema passa a ter uma "cara", um nome, uma categoria e a sociedade passa a ter um norte de como agir, quem procurar, o que relatar e como provar um fato que antes era suportado, tolerado ou negligenciado e passa ser conduta reprimida socialmente e juridicamente.

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Contudo, não se pode deixar de reconhecer que vivemos um momento de busca de regulação de condutas que violam os direitos personalíssimos do trabalhador e seus bens morais10. Momento de estudos aprofundados da matéria, de debates jurídicos, de análise de situações que até agora tinham sido relegadas a um segundo plano, consideradas que eram de somenos importância talvez, para um Direito, como dito, que visava à defesa dos bens materiais apenas. E, no entanto, é um momento também em que nos deparamos com um número assombroso de situações, notícias ou processos em que o trabalhador é tratado de forma desumana, indigna, submetido às mais variadas formas de humilhação embutidas em manobras perversas e, muitas vezes, de uma criatividade surpreendente, digna da célebre frase de Mae West11. Direitos básicos relativos à saúde e segurança, à intimidade12, à honra, à garantia de tratamento igualitário, à liberdade (em sentido amplo) são sonegados em atitudes completamente reprováveis, para dizer o mínimo.

Enfim, parece que chegamos a um estágio evoluído de regulação, e para vários economistas atingimos também o ponto mais próximo do pleno emprego13. Todavia, parecem ter evoluído também a malícia, as artimanhas, a engenhosidade humana para fazer o mal no âmbito da relação de emprego. Quando pensamos já ter presenciado a mais cruel das atitudes de um empregador ou empresa eis que vem outra e faz daquela anterior uma mera coadjuvante. Contudo, diferentemente das épocas passadas, a crueldade não é praticada de forma visível e pública, porque ganha ares de comandos, direção e disciplina insertos nos poderes do empregador e em seu jus variandi.

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Digo tudo isso para chegar nesse ponto exato com objetivo de também lembrar que está aqui um grande perigo para os operadores do Direito14: deixar que grandes atrocidades, absurdos já relatados, presenciados ou processados apaguem ou diminuam lesões e ilegalidades anteriores; deixar que irregularidades bárbaras ao ganharem o status de coisa comum, corriqueira, passem despercebidas ou não sejam tratadas com a mesma rapidez, eficiência e indignação de antes.

Essa é uma tendência talvez humana até. Um fato chocante quando ocorre a primeira vez parece mais grave que da segunda, da terceira... A experiência e a vivência, virtudes do conhecimento, podem, por vezes, ser maléficas. Se por um lado a experiência permite que não nos surpreendamos ou nos assustemos mais que o normal diante de um fato já vivenciado, servindo para refrear atitudes impensadas, impulsivas, também por outro pode nos apaziguar para além do necessário, levando-nos a relevar males que melhor cuidados seriam talvez por "novatos" mais ávidos que pelos experientes.

A indignação, o choque do primeiro contato com certo abuso de direito pode acabar, com o tempo e repetição, sendo substituídos por simples reprovação, depois por conformismo e até aceitação, a inação. Mas tal tendência é especialmente deletéria para as vítimas de abuso de direito, para o trabalhador e, com certeza, para os operadores do Direito dos quais dependem.

Com a experiência na atuação jurídica ganha a imparcialidade que nos traz maior isenção quanto a um conflito, porém, vem ela acompanhada de certa dose de frieza, de superioridade até, de não envolvimento com a causa que, se em alguns casos é condição de atuação e equilíbrio no trabalho, em outros, significa perda da paixão crucial para "combater certos combates".

Assim é que os primeiros casos de indenização por dano moral na Justiça do Trabalho mereceram teses e ampla divulgação. Hoje são tratados como entraves ao Judiciário dado o volume das causas. Indenizações são arbitradas, em alguns casos, sem maior debate, sem análise mais criteriosa ou específica, limitando-se à definição do quantum, como num pregão. Perder um membro já não é tão grave, adquirir LER, ser humilhado uma vez ou duas, ser punido excessivamente em alguma situação, ser impedido de ir ao banheiro ou passar por revista íntima, coisas assim são consideradas mais "básicas" diante da gama de processos envolvendo invalidez permanente, morte, assédio moral que dura meses ou anos.

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Creio que nós, operadores do Direito, precisamos urgentemente resgatar nossa humanidade, que no dia a dia pode ser ofuscada pelo massacre de notícias de violência, pelas causas que ganham a mídia e, também, pelo volume excessivo de trabalho e a cobrança de eficiência e agilidade no trato das questões que nos são trazidas.

Um processo para nós pode ser apenas mais um, uma ilicitude pode ser apenas mais uma, mas para a vítima e a sociedade em que está inserida pode ser O processo, A ilicitude.

Dizem que os militares americanos ao comemorarem o percentual aceitável de baixas no Dia D foram advertidos por Eisenhower, de que o percentual comemorado por eles representava 100% de perda para cada família cujo filho não retornaria para casa.

Parece certo concluir que não se deve comparar boas ações e da mesma forma não se deve comparar as más condutas, principalmente sob a ótica do expectador, daquele que não as vivenciou nem sofreu os reflexos decorrentes.

Essas ideias introdutórias servem para que se perceba uma conjuntura maior do evento que a seguir será relatado.

Esse membro do Ministério Público recebeu há poucos meses um processo cuja intervenção exigiu...

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