Mais médicos, menos direitos: crônicas de um projeto precarizante

AutorSebastião Vieira Caixeta
CargoProcurador do Trabalho
Páginas13-48

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Introdução

Em 8 de julho de 2013, a Excelentíssima Presidente da República adotou a Medida Provisória n. 621/2013, que institui o Programa Mais Médicos e dá outras providências.

Esse instrumento normativo foi convertido na Lei n. 12.871, de 22 de outubro de 2013, que, essencialmente, objetiva a reordenação da oferta de cursos de medicina e de vagas para residência médica, o estabelecimento de novos parâmetros para a formação de médicos e a promoção, nas regiões prioritárias do Sistema Único de Saúde (SUS), de "aperfeiçoamento de médicos na área de atenção básica em saúde, mediante integração ensino-serviço, inclusive por meio de intercâmbio internacional" (art. 2º).

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Para tal aperfeiçoamento, instituiu-se, "no âmbito do Programa Mais Médicos, o Projeto Mais Médicos para o Brasil, que será oferecido: I - aos médicos formados em instituições de educação superior brasileiras ou com diploma revalidado no País; e II - aos médicos formados em instituições de educação superior estrangeiras, por meio de intercâmbio médico internacional" (art. 13). A ocupação das vagas ofertadas será feita, prioritariamente, por: I - médicos formados em instituições de educação superior brasileiras ou com diploma revalidado no País, inclusive os aposentados; II - médicos brasileiros formados em instituições estrangeiras com habilitação para exercício da medicina no exterior; e III - médicos estrangeiros com habilitação para exercício de medicina no exterior (§ 1º). Os proissionais mencionados nos incisos II e III são denominados, no § 2º deste artigo, médicos intercambistas.

O aperfeiçoamento dos médicos participantes ocorre mediante oferta de curso de especialização por instituição pública de educação superior e envolve atividades de ensino, pesquisa e extensão, que tem componente assistencial mediante integração ensino-serviço, com duração de três anos prorrogáveis por igual período (art. 14).

Imediatamente depois da edição da Medida Provisória, instalou-se no Brasil acesa polêmica sobre o tema, com manifestações apaixonadas e, muitas vezes, partidarizadas, dada a relevância e o inegável alcance social do Programa.

A controvérsia logo chegou ao Supremo Tribunal Federal, onde pende julgamento duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI ns. 5.035-DF e 5.037-DF, Relator Ministro Marco Aurélio).

Após a instauração do Inquérito Civil n. 000707.2013.10.000/7 perante a Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região em Brasília/ DF, também chegou ao Poder Judiciário Trabalhista, tramitando perante o Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, a Ação Civil Pública n. 0000382-62.2014.5.10.0013, que aguarda apreciação de Recurso de Re-vista interposto contra a decisão que decretou a incompetência absoluta da Justiça do Trabalho1.

No bojo do Inquérito Civil, depois de realizar várias diligências investigativas, tais como audiências, requisição de documentos, inspeções em Unidades Básicas de Saúde (UBS), o Ministério Público do Trabalho (MPT) constatou que, sob a invocação do curso de especialização, o Projeto Mais Médicos para o Brasil está arregimentando mão de obra de proissionais de

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medicina para suprir a demanda existente no Sistema Único de Saúde e, por conseguinte, desvirtuando autêntica relação de trabalho constitucionalmente protegida. Tem-se, pura e simplesmente, a contratação de médicos, brasileiros e estrangeiros, a maioria deles com muita experiência, detentores de qualiicação em nível de pós-graduação, para suprir a demanda quotidiana de entidades públicas integrantes do SUS.

Também veriicou lagrante discriminação ilícita em relação aos médicos cubanos, que recebem remuneração muito inferior à dos demais trabalhadores inseridos no Projeto, sejam nacionais, sejam estrangeiros. Para tentar justiicar, em vão, essa manifesta inconstitucionalidade, a União alega que a eles se aplicariam, por força de arranjo jurídico engendrado por ela, pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e pelo Governo de Cuba, as regras estatuídas em Cuba, muitas delas totalmente incompatíveis com o nosso ordenamento jurídico, o que ofende a soberania nacional, a Carta da República e vários Instrumentos Normativos Internacionais.

O presente artigo pretende difundir as razões jurídicas defendidas na referida Ação Civil Pública, ajuizada para defender os direitos dos atuais cerca de 13.235 proissionais médicos, sendo 11.400 (86,13%) oriundos de Cuba.

1. Competência da justiça do trabalho para julgar a lide relativa ao projeto mais médicos para o brasil

Atualmente, está em discussão o acerto ou desacerto da decisão que declarou a incompetência da Justiça do Trabalho, com declinação da atribuição para a Justiça Federal.

Data maxima venia, a competência é da Justiça Obreira.

Como se demonstrará adiante, na Ação Civil Pública, o MPT defende o conjunto de direitos sociais trabalhistas, de alcance coletivo geral, aplicáveis às relação de trabalho lato sensu, independentemente da diversidade dos regimes jurídicos dos trabalhadores, bem assim o respeito ao princípio da isonomia entre todos os trabalhadores inseridos no Projeto.

São direitos básicos e fundamentais, inerentes à relação de trabalho em sentido largo, aplicáveis indistintamente aos trabalhadores do setor privado (CF, art. 7º) e público (CF, art. 39, § 2º), independentemente do regime vigorante, tais como meio ambiente do trabalho seguro e saudável, décimo terceiro salário, limitação da jornada, repouso semanal remunerado,

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férias remuneradas com acréscimo de, pelo menos, um terço, proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.

A competência para conhecer da lide é, decididamente, da Justiça do Trabalho como assentou, recentemente, o Supremo Tribunal Federal na Ação Cível Originária n. 2.169, da relatoria da Ministra Cármen Lúcia:

"CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÕES. MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESPÍRITO SANTO E MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO SOBRE CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS GUARDA-VIDAS DO MUNICÍPIO DE VITÓRIA/ES. CONTRATAÇÃO POR TEMPO DETERMINADO. APURAÇÃO DE LESÃO AO MEIO AMBIENTE DE TRABALHO. MATÉRIA NÃO APRECIADA NO JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 3.395. SÚMULA N. 736. PRECEDENTES. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA DIRIMIR O CONFLITO. ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO."

Na fundamentação, assentou a eminente Relatora textualmente:

  1. Na espécie vertente, a Procuradoria Regional do Trabalho da 17ª Região determinou a remessa do procedimento administrativo em foco ao Ministério Público Estadual, ao fundamento de que os guarda-vidas teriam sido contratados por tempo determinado pelo Município de Vitória/ES. Assim, nos termos do que teria sido assentado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.395, "trata[ndo-se] de regime especial administrativo, compet[iria] à justiça estadual comum processar e julgar controvérsias entre o Município e seus servidores, ainda que a contratação tenha ocorrido em caráter precário ou des-virtuado" (l. 98).

  2. Esse entendimento não foi perilhado pela Procuradoria-Geral da República, que distinguiu a questão envolvendo o descumprimento de direitos sociais trabalhistas daquela tratada na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.395. Nessa linha, realçou:

    "[A] jurisprudência dessa Suprema Corte irmou-se no sentido de que é competente a Justiça do Trabalho para processar e julgar ação civil pública referente a ambiente, às condições e à organização do trabalho. [...]

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    Nesse sentido cumpre destacar a Súmula n. 736 do STF, segundo a qual compete à Justiça do Trabalho a competência para julgar demandas relacionadas a descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores.

    Na espécie, a Procuradoria Regional do Trabalho da 17ª Região instaurou inquérito civil público para apurar o descumprimento das normas relativas ao meio ambiente de trabalho dos guarda-vidas contratados pelo Município de Vitória.

    Como se vê, o referido inquérito civil servirá de base para a propositura de ação civil pública a ser ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, com o im de exigir do Poder Público do Município de Vitória o cumprimento de normas relativas à higiene, segurança e saúde dos trabalhadores. De fato, a controvérsia não tem como pano de fundo causa entre a Administração Pública e servidores a ela vinculados, isto é, não se volta a questão em torno de qualquer direito que decorra do regime jurídico administrativo, mas sim, de direito social trabalhista, de alcance coletivo geral, pouco importando a diversidade dos regimes jurídicos dos trabalhadores, uma vez que todos eles estão submetidos às mesmas condições de trabalho." (ls. 121-122, grifos nossos)

    Como apontado pela Procuradoria-Geral da República, a natureza do vínculo jurídico que une os guarda-vidas ao ente público municipal não está em questão naquele procedimento administrativo, que apura "irregularidades no meio ambiente de trabalho dos Guarda-Vidas" (l. 8), pelo que inexistiria contrariedade ao que decidido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.395/DF, tampouco óbice à atuação do Ministério Público do Trabalho.

  3. Em caso análogo ao presente, ao apreciar o alegado desrespeito ao que decidido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.395, que decorreria do processamento na Justiça do Trabalho de ação civil pública ajuizada com o objetivo...

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