A luta pelo direito na esFera social

AutorRudolf von Ihering
Ocupação do AutorImportante jurista alemão
Páginas77-117

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Trataremos de provar agora que a defesa do direito é um dever que temos para com a sociedade. Para fazê-lo, devemos primeiramente mostrar a relação que existe entre o direito objetivo e subjetivo.

Mas qual será ela?

Segundo o nosso modo de ver, é o contrário do que nos diz a teoria hoje mais aceita em afirmar que primeiro supõe o segundo.

Um direito concreto não pode originar-se senão da reunião das condições que o princípio do direito abstrato liga à sua existência.

Eis aqui tudo quanto nos diz a teoria dominante das suas relações; e, como se vê, é apenas um lado da questão.

Tal teoria faz exclusivamente sobressair a dependência do direito concreto com relação ao di-

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reito abstrato e não diz absolutamente coisa alguma dessa relação que existe também em sentido inverso.

O direito concreto restitui ao direito abstrato a vida e a força que recebe; e como está na natureza do direito que se realiza praticamente, um princípio legal que jamais esteve em vigor, ou que perdeu a sua força, não merece tal nome, é uma roda gasta que para coisa alguma serve no mecanismo do direito e que se pode destruir sem em nada alterar a marcha geral.

Esta verdade aplica-se sem restrição a todas as partes do direito, tanto ao direito público, como ao privado e ao criminal.

A legislação romana sancionou explicitamente esta doutrina, fazendo da desuetudo uma causa da revogação das leis; a perda dos direitos concretos pelo não uso prolongado (non-usus) também significa exatamente a mesma coisa.

Enquanto a realização prática do direito público e do penal está assegurada, porque está imposta como um dever dos funcionários públicos, a do direito privado apresenta-se aos particulares sob a forma de direito, isto é, por completo abandonada a sua prática à sua livre iniciativa e à sua própria atividade.

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O direito não será letra morta e realizar-se-á, no primeiro caso, se as autoridades e os funcionários do Estado cumprirem com o seu dever, no segundo, se os indivíduos fizerem valer os seus direitos.

Mas, se por qualquer circunstância, por comodidade, por ignorância ou por medo, estes últimos ficarem longo tempo inativos, o princípio legal perderá por esse fato o seu valor.

As disposições do direito privado, podemos, pois, dizer, não existem na realidade e não têm força prática, senão na medida em que se fazem valer os direitos concretos; e, se é certo que estes devem sua existência à lei, não é menos certo que por outra parte eles lha restituem.

A relação que existe entre o direito objetivo e o subjetivo ou abstrato e concreto assemelha-se à circulação do sangue, que partindo do coração aí de novo volta.

A questão da existência de todos os princípios do direito público repousa sobre a fidelidade dos empregados no cumprimento dos seus deveres; a dos princípios do direito privado sobre a eficácia destes motivos levam o lesado a defender o seu direito: o interesse e o sentimento.

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Se estes móveis não são suficientes, se o sentimento se extingue, se o interesse não é bastante poderoso para sobrepujar o amor da comodidade, vencer a aversão contra a disputa e a luta, para dominar o recuo de um processo, será o mesmo que se o princípio legal não vigorasse.

Mas dir-se-á: que importa?

O lesado não está só em causa?

Ele recolherá os maus frutos. Relembremo-nos do exemplo de um indivíduo que foge do campo da batalha.

Se mil soldados entram em ação, pode perfeitamente suceder que não se note a falta de um só; porém, se cem deles abandonam a sua bandeira, a posição dos que permanecem fiéis será mais crítica, porque todo o peso da luta cairá sobre eles.

Esta imagem, parece-nos, reproduz bem o estado da questão.

Em verdade, trata-se no terreno do direito privado de uma luta do direito contra a injustiça, de um combate comum de toda a Nação na qual todos devem achar-se estreitamente unidos.

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Desertar em semelhante caso é também trair a causa comum, porque é engrossar as forças do inimigo, aumentando a sua ousadia e audácia.

Quando a arbitrariedade, a ilegalidade ousam levantar descomedida e impudentemente a cabeça, pode sempre reconhecer-se por este sinal que aqueles que eram chamados a defender a lei não cumpriram o seu dever.

Portanto, cada um está encarregado na sua posição de defender a lei, quando se trata do direito privado, porque todo homem está encarregado, dentro da sua esfera, de guardar e de fazer executar as disposições legais.

O direito concreto que possui não é mais que uma autorização que recebe do Estado para combater pela lei nas ocasiões que lhe interessam e de entrar na liça para resistir à injustiça, é uma autorização especial e limitada, ao passo que a do funcionário público é absoluta e geral.

O homem luta, pois, pelo direito inteiro, defendendo o seu direito pessoal no estreito espaço em que lhe se exerce.

O interesse e as demais conseqüências de sua ação se estendem pelo mesmo fato muito além de sua personalidade.

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A vantagem geral que disso resulta não é somente o interesse ideal de que a autoridade e a majestade da lei sejam protegidos, mas um benefício real, perfeitamente prático, compreendido e apreciado por todos como que defendendo e assegurando a ordem estabelecida nas relações sociais.

Suponhamos que o amo não repreende mais os seus criados pelo mau cumprimento de seus deveres, que o credor não pretende molestar seus devedores, que o público não tem nas compras e vendas uma minuciosa vigilância dos pesos e medidas, por ventura só a autoridade da lei será danificada?

Seria isso o mesmo que sacrificar em uma certa direção a ordem da vida civil, sendo difícil calcular quais seriam as funestas conseqüências destes deploráveis fatos. O crédito, por exemplo, seria lesado de um modo muito sensível.

Todos faríamos o possível para não entreter negócios com aqueles que nos obrigassem a discutir e a lutar quando o direito é evidente; colocaríamos, sem dúvida, os nossos capitais em outras praças e importaríamos as mercadorias de tais lugares.

Quando um tal estado de coisas existe, a sorte daqueles que têm a coragem de fazer observar a lei

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é um verdadeiro martírio; o seu sentimento firme e enérgico do direito faz justamente a sua desgraça.

Abandonados por todos os que deveriam ser seus naturais aliados, permanecem completamente sós na presença da arbitrariedade que a apatia e a pusilanimidade dos demais convertem na maior audácia e ousadia; e se conseguem enfim comprar, a preço de grandes sacrifícios, a satisfação de permanecer fiéis quanto ao seu modo de agir e de pensar, não recolhem mais do que zombaria e ridicularização.

Aqueles que transgridem a lei não são os que principalmente assumem a responsabilidade em tais casos, mas sim os que não têm coragem de defendê-la.

Não acusamos a injustiça de suplantar o direito, mas este porque se deixa suplantar, porque se chegássemos a classificar, segundo a importância, estas duas máximas: “não cometas uma injustiça” e “não sofras nenhuma”, se deveria dar como primeira regra: “não sofras injustiça alguma” e como segunda, “não cometas nenhuma”.

Se considerarmos o homem tal qual ele é, não há dúvida de que a certeza de encontrar uma resistência firme e resoluta seria o melhor meio para fazer que não cometesse uma injustiça, do que uma

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simples proibição, cuja força prática não é, em reali-dade, mais que um preceito da lei moral.

Dir-se-á agora que vamos demasiadamente longe, pretendendo que a defesa de um direito concreto não seja somente um dever do indivíduo que é atacado para consigo mesmo, mas também um dever para com a sociedade?

Se o temos dito é verdade, se está estabelecido que defendendo o indivíduo o seu direito defende a lei, e na lei a ordem estabelecida como indispensável para o bem público, quem ousará afirmar que ele cumpre ao mesmo tempo um dever para com a sociedade?

Se o Estado tem o direito de chamá-lo para lutar contra o estrangeiro, e se pode obrigá-lo a sacrificarse e a dar sua vida pela salvação pública, porque não terá o mesmo direito quando é atacado pelo inimigo interno que não ameaça menos a sua existência que os outros?

Se a covarde fuga é, no primeiro caso, uma traição à causa comum, poder-se-á dizer que não se dá o mesmo no segundo?

Não, não basta para que o direito e a justiça floresçam em um país que o juiz esteja disposto sempre a cingir sua toga, e que a polícia esteja disposta

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a fazer funcionar os seus agentes; é mister ainda que cada um contribua por sua parte para essa grande obra, porque todo homem tem o dever de esmagar, quando chega a ocasião, essa hidra que se chama arbitrariedade e ilegalidade.

Inútil é fazer notar quanto enobrece, sob esse ponto de vista, a obrigação em que cada um se acha de fazer valer o seu dever.

A teoria atual nos fala mais que uma atitude exclusivamente passiva em relação à lei; e a nossa doutrina apresenta, às vezes, um estado de reciprocidade no qual o combate retribui à lei o serviço que dela recebe, reconhecendo-lhe assim a missão de cooperar para uma grande obra nacional.

Demais, pouco importa que a questão apareça sob este ou outro aspecto, porque o que existe de grande e elevado na lei moral é precisamente que ela não conta só com os serviços daqueles que a compreendem, mas que dispõe de muitos meios de todo gênero para fazer obrigar aqueles que não respeitam os seus preceitos.

Assim é que, para obrigar o homem ao matrimônio, faz agir em uns o mais nobre dos sentimentos humanos, em outros a paixão grosseira dos sentidos

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põe em movimento o amor, em um terceiro os gozos e, por fim, a avareza em outros; mas qualquer que seja o meio, todos procuram a união conjugal.

Isto também sucede na luta pelo direito, seja o interesse ou a dor que causa a lesão legal, ou a idéia do direito, que impelem os homens a entrar em luta, todos concorrem para trabalhar na obra comum: a proteção do direito contra a arbitrariedade. Atingimos o ponto ideal da nossa luta pelo direito.

Partindo do baixo motivo do interesse, elevamo-nos ao ponto...

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