A luta pelo direito na esfera individual

AutorRudolf von Ihering
Ocupação do AutorImportante jurista alemão
Páginas41-75

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Aquele que for atacado em seu direito deve resistir; é um dever para consigo mesmo.

A conservação da existência é a suprema lei da criação animada, porquanto ela se manifesta instintivamente em todas as criaturas; porém, a vida material não constitui toda a vida do homem; tem ainda de defender sua existência moral que tem por condição necessária o direito: é, pois, a condição de tal existência que ele possui e defende com o direito.

O homem sem direito desce ao nível dos brutos,1assim os romanos não faziam mais do que deduzir uma lógica conseqüência desta idéia, quan-

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do colocavam os escravos, considerados sob o ponto de vista do direito abstrato, ao nível do animal.

Temos, pois, o dever de defender nosso direito, porque nossa existência moral está direta e essen-cialmente ligada à sua conservação; desistir completamente da defesa, o que atualmente não é muito prático, porém que poderia ter lugar, equivaleria a um suicídio moral.

Do que vem a ser dito se depreende que o direito não é mais que o conjunto dos diferentes tratados ou títulos que o compõem, e em cada um deles se reflete uma condição particular da existência moral; na propriedade, como no matrimônio, no contrato como nas questões de honra, em tudo isso, é legal-mente impossível renunciar a uma só dessas condições sem renunciar a todo o direito.

Entretanto, pode acontecer que não sejamos atacados em uma ou em outra dessas esferas, e este ataque é o que somos obrigados a repelir, porque não basta colocar estas condições vitais sob a proteção de um direito representado pelos princípios abstratos, é mister ainda que o indivíduo desça ao domínio da prática para defendê-las, e a ocasião é evidente quando a arbitrariedade ousa atacá-las.

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Toda a injustiça não é, portanto, mais que uma ação arbitrária, isto é, um ataque contra a idéia do direito.

O possuidor de uma coisa minha e que se considera seu proprietário não nega em minha pessoa a idéia da propriedade, apenas invoca um direito ao lado do meu, reduzindo-se toda a questão a saber qual é o proprietário.

Mas o ladrão, o salteador, coloca-se fora do domínio legal da propriedade; nega por seu turno a idéia da propriedade, condição portanto essencial à existência da minha pessoa; e generalizando-se assim o seu modo de proceder, a propriedade desaparecerá na teoria e na prática.

Assim não atacam apenas os meus bens, e sim a minha personalidade, e se tenho o direito e o dever de me defender quando sou atacado, só o conflito deste dever com o interesse superior da minha vida pode, às vezes, motivar uma outra decisão; por exemplo, um salteador, tolhendo-me qualquer movimento, põe-me na alternativa de entregar-lhe a bolsa ou a vida.

Entretanto, o meu dever é, nos outros casos, combater, por todos os meios de que disponha,

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toda a violação ao direito da minha personalidade; sofrê-la seria consentir e suportar um momento de injustiça em minha vida, o que jamais deveria ser permitido.

Completamente diferente é a minha posição diante de um possuidor de boa-fé.

Neste caso, não é ao meu sentimento do direito, ao meu caráter ou à minha personalidade, porém aos meus interesses que pertence ditar a norma a seguir, porquanto toda a questão se reduz ao valor que o objeto possa ter.

Posso, pois, perfeitamente calcular, no caso figurado, as vantagens, e, em vista delas, intentar a demanda ou transigir. As transações entre as partes, onde se expõem e se ajuízam os cálculos mais ou menos verdadeiros sobre o litígio, são o melhor meio de proceder nestes casos.

Pode, entretanto, chegar-se a um ponto em que o acordo das partes, ou qualquer outra circunstância, dificulte o ajuste, que os cálculos se dividam favoravelmente para cada uma das partes, chegando cada um dos litigantes a supor a existência de má-fé no outro; começa então a questão, embora desenvolvendo-se judicialmente sob a forma de uma injustiça

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objetiva – reivindicatio –, revestindo psicologicamente para a parte o caráter de que falamos no caso precedente de uma lesão premeditada e a tenacidade com que o indivíduo defende seu direito, é partindo desse ponto de vista, tão motivada e justificada como a que pode e deve se usar no referido caso do ladrão.

Procurar em semelhante caso intimidar a parte, fazendo-lhe prever os dispêndios que resultarão as más conseqüências que acarretará para si a demanda, não será mais que perder tempo, porquanto não se age então pelo interesse material; a questão vem degenerar numa questão de competência, e a única esperança que pode nutrir-se é a de chegar a fazer desaparecer a suposição da existência de uma intenção no adversário que faz agir.

E, se ainda assim resiste, para eliminar de algum modo essa resistência, pode alterar-se novamente a demanda, sob o ponto de vista do interesse, e obter, por esta forma, a transação.

É bem verdadeiro que essa resistência sistemática, por assim dizer, essa prevenção e desconfiança de algumas partes não nascem muitas vezes do caráter e maneira de ser do indivíduo, mas sim da sua educação e profissão.

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No camponês é que se torna mais difícil vencer essa desconfiança.

A mania dos demandistas que se colocam neste caso não é mais que o produto de dois fatores que o impelem especialmente a obrar: o sentimento da avareza ou amor profundo à propriedade e a desconfiança.

Ninguém conhece melhor os seus interesses que si próprio, nem os defende tão ardentemente, e não há pessoa alguma que tudo sacrifique a uma demanda tão facilmente.

Isto que parece uma contradição não o é, entretanto, na realidade.

É justamente porque o seu sentimento e amor pelo direito são tão excessivos e tão profundos, estão tão desenvolvidos, que qualquer lesão é para ele muito sensível, tornando-se, portanto, a reação muito violenta.

Essa mania de demandas é um vício, uma exageração, que deriva da sua desconfiança e do seu amor à propriedade, assemelhando-se ao que o ciúme produz no amor, dirigido suas armas contra si mesmo, fazendo perder justamente o que se queria conservar.

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O Direito romano antigo oferece uma interessante prova do que acabamos de dizer; exprimiu precisamente sob a forma de princípios legais essa desconfiança do camponês que supõe, em todo o conflito, que seu adversário age de má-fé; considerava toda a injustiça objetiva: como conseqüência de uma injustiça subjetiva, aplicando uma pena ao vencido.

Não era para o indivíduo em que se tinha irritado, ou melhor, exagerado o sentimento do direito, uma satisfação suficiente a de restabelecer a perturbação sofrida em seu direito; ainda exigia uma reivindicação especial da ofensa que o seu adversário, ou não, lhe havia feito.

Hoje, como outrora, seria entre nós assim se os camponeses tivessem de ditar as leis.

Esta desconfiança desapareceu em face dos mesmos princípios do Direito romano, motivada pelo progresso que fez distinguir duas espécies de injustiça: a injustiça culpável ou não culpável, ou subjetiva e objetiva (ingênua, como dizia Hegel).

Esta distinção é, todavia, de uma importância secundária para a questão que nos ocupa, a saber: que conduta deve seguir um indivíduo lesado em seu direito perante a injustiça.

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Tal distinção exprime bem sob que ponto de vista o direito encara a questão; fixa as conseqüências que a injustiça acarreta, mas nada nos diz do indivíduo, e nem explica como a injustiça exalta o sentimento do direito, que não se regula segundo as idéias de um sistema.

Um fato particular pode produzir-se em circunstâncias tais que a lei considere o caso como uma lesão do direito objetivo e o indivíduo possa com fundamento supor má-fé, injustiça notória por parte de seu adversário, e é perfeitamente eqüitativo que seja seu próprio juízo que lhe dite a conduta que deve seguir.

O direito pode dar-me contra o herdeiro do meu credor, que não conhece a dívida e torna o pagamento dependente da minha prova, a mesma condictio ex mutuo que me dá contra o devedor que nega impunemente o empréstimo que eu lhe fiz ou que recusa sem causa o reembolso. Entretanto, não poderia eu considerar de modo diferente a maneira de proceder de um e de outro.

Comparo o devedor ao ladrão que procura apoderar-se de alguma coisa pertencente à minha pessoa, com pleno conhecimento de causa; como o

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ladrão, ele viola o direito, com a única diferença apenas de que pode cobrir-se com o manto da legalidade.

Ao contrario, comparo o herdeiro do devedor com um possuidor de boa-fé, porquanto não nega que o devedor deva pagar, mas combate apenas a minha pretensão.

Como devedor, posso aplicar-lhe tudo quanto disse daquele a quem o comparo; posso com ele transigir: basta desistir; mas devo sempre demandar o devedor de má-fé e devo fazê-lo, custe o que custar, porque é um dever; e não o cumprindo, sacrificaria, com este direito, todo o direito.

Dir-se-á, entretanto: o povo sabe por acaso que o direito de propriedade e o de obrigações são condições da existência moral?

Sem dúvida que não.

Mas não o sente?
É esta uma questão que esperamos resolver prontamente e pela afirmativa.

Que sabe o povo acerca dos rins, do fígado, dos pulmões, como condições da existência física?

Entretanto, ninguém há que, sentindo um dano qualquer no pulmão, uma dor nos rins, no fígado,

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não tome as precauções necessárias para combater o mal desta espécie.

A dor física anuncia-nos uma perturbação no organismo, a...

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