Lula's arrest and belief in "true justice": reflections on the place of law in the reproduction of class society/A prisao de Lula e a crenca na "justica verdadeira": reflexoes sobre o lugar do direito na reproducao da sociedade de classes.

Autorde Almeida, Ana Lia Vanderlei
CargoEnsayo

A nacao esta em choro Lula deve estar doente Nosso maior presidente Terminou entrando em coro E bom botar Sergio Moro Onde nosso Lula esta Tire ele de la Que cadeia e pra ladrao Tire Lula da prisao Para o Brasil se soltar (...) Nossa manha ta escura Eu quero um tempo de paz A tortura nunca mais Tenho medo de tortura Mas como existe loucura Em Bolsonaro querem votar Ditadura militar, Nunca mais nessa nacao Tirem Lula da prisao Que e pro Brasil se soltar (1) Introducao

Momentos antes de se entregar a Policia Federal, no dia 07 de abril de 2018, o ex-Presidente Luis Inacio Lula da Silva discursou para uma multidao em frente ao Sindicato dos Metalurgicos do ABC, em Sao Bernardo dos Campos/SP. "Eu sairei dessa maior, mais forte, mais verdadeiro e inocente, porque quero provar que eles e que cometeram um crime politico" (2). Lula refere-se ao processo judicial que o condenou a doze anos e um mes de prisao por corrupcao passiva e lavagem de dinheiro devido a um controverso favorecimento relacionado a um apartamento triplex na cidade de Guaruja, em Sao Paulo. "Mentiram no meu processo e eu digo com seguranca: nenhum deles dorme com a consciencia tranquila como eu durmo com a minha inocencia". Lula afirma nao perdoar os responsaveis pela sua prisao por terem construido a sua imagem como a de um ladrao, "sem provas, so com conviccao".

Quero que eles provem qualquer crime que eu cometi (...) Um dia eu sonhei que era possivel um metalurgico sem diploma universitario cuidar melhor da educacao do que todos os doutores que ja governaram este pais (...) Eu sonhei que era possivel levar estudantes das periferias para as melhores faculdades deste pais, para que a gente nao tivesse so juizes e procuradores da elite. Esse crime eu cometi. E e isso que eles nao admitem (...) Se o crime que eu cometi foi levar comida e educacao para os pobres, eu digo que quero continuar sendo criminoso neste pais (...) Como presidente, eu fortaleci o MP e o Judiciario. E sempre disse: quanto mais forte a instituicao, mais responsaveis precisam ser seus membros (...) Quando deram o golpe na Dilma, eu ja dizia que o golpe nao fechava com Lula eleito em 2018. Para eles, pobre nao pode ter direito (...) Nao adianta eles tentarem me parar. Eu nao vou parar porque nao sou ser humano, sou uma ideia e estou com voces. Vou de cabeca erguida e sair de peito estufado porque vou provar a minha inocencia (Discurso de Lula noticiado por O ESTADAO em 07 de abril de 2018).

O comovente discurso de Lula expressa uma inusitada crenca na "Justica" e no "Direito", a despeito do seu reconhecimento e da sua indignacao pelo fato de que agentes do sistema de justica o estavam conduzindo injustamente a prisao. "Eu acredito na Justica e nao estou acima da lei. Mas acredito numa justica verdadeira, baseada nos autos do processo. Nao posso admitir mentiras em um powerpoint como justica" (3).

Como conferir sentido analitico a obstinacao de Lula em provar a sua inocencia, diante do reconhecimento de haver um complo das elites com setores do Judiciario contra ele? Se ele demonstra reconhecer as reais razoes pelas quais estava sendo processado--"Se o crime que eu cometi foi levar comida e educacao para os pobres, eu digo que quero continuar sendo criminoso neste pais"--; se ele compreendia o significado de sua prisao dentro de um contexto politico maior--"Quando deram o golpe na Dilma, eu ja dizia que o golpe nao fechava com Lula eleito em 2018"--, entao por que a insistencia em acreditar na justica e, como resultado disso, entregar-se a policia?

Voltemos a um ponto anterior do mesmo enredo historico: a deposicao de Dilma Roussef em 31 de agosto de 2016. As disputas narrativas a respeito desse momento--"impeachmeant" ou "golpe"--enfrentam-se em torno de outro imbroglio juridico, desta vez a respeito das "pedaladas fiscais", compreendidas ora como crime, ora como operacao de credito corriqueira na politica nacional. O que esse episodio da historia do Brasil tem a nos dizer sobre o significado do direito, com os deputados autorizando despudoradamente o impedimento da presidenta em nome de Deus e da familia? Como as forcas de contestacao da ordem posta devem se movimentar no terreno juridico e o que devem esperar dele?

Neste artigo, buscamos tematizar como a critica marxista pode contribuir para problematizar o lugar do direito na reproducao da sociedade de classes, considerando a importancia desta reflexao no momento de crise mundial do capital e intensa crise politica no Brasil. Em um primeiro momento do texto, buscaremos revisar as contribuicoes marxianas e marxistas que tematizaram as possibilidades do direito servir a projetos de emancipacao ou transformacao social. Em seguida, damos conta de analisar a relacao constitutiva entre o direito e a sociedade de classes, apontando alguns elementos da conformacao do capitalismo dependente que nos levariam a aprofundar o contexto especifico do desenvolvimento do direito nas sociedades de capitalismo dependente. Por fim, relacionamos o momento de ataque aos trabalhadores no contexto do golpe como inserido na profunda crise que o capital atravessa.

O marco teorico da discussao transitara na tradicao marxista, tanto nos escritos que voltaram as analises para o direito (do proprio Marx, de Engels e Kautsky, de Pachukanis e Stucha) como nas formulacoes da critica marxista brasileira (em especial, Florestan Fernandes).

  1. A "justica verdadeira"

    A crenca de Lula numa "justica verdadeira" encontra correspondencia em formulacoes teoricas significativas da critica juridica no Brasil. Critica-se o direito e a justica pelo modo como vem se realizando "hoje", o que implica na esperanca de que, em algum ponto da historia, a forma juridica esteja enfim liberada para encarnar a emancipacao social. Nessas analises, o direito costuma ser alocado, contraditoriamente, como a dimensao que nos possibilitara resistir a todas as formas de violencia e opressao, apesar das articulacoes historicas e estruturais entre essas violencias e a forma juridica.

    Trata-se do que denominamos noutro trabalho como expressao do "fetichismo juridico de esquerda" (ALMEIDA: 2015), confiante na edificacao de um "outro direito" ou de um "direito emancipatorio", conectado com a realizacao dos direitos humanos e com a transformacao social. Esta variante fetichista se contrapoe a versao positivista dominante, que caracteriza o direito pela sua neutralidade e objetividade, valorizando assim o respeito a ordem juridica como garantia do "bem comum" e da "paz social".

    O fetichismo do direito consiste em concebe-lo "como uma area fixa, coesa, definida univocamente 'em termos logicos'" nao apenas do ponto de vista da sua manipulacao pragmatica, mas tambem teoricamente, como um sistema coeso "que pode ser concretamente manejado tao somente pela 'logica' juridica, autossuficiente, fechado em si mesmo" (LUKACS: 2013, p.237). Ja o fetichismo juridico de esquerda consiste na associacao entre direito e emancipacao, na crenca de que a forma juridica e capaz de servir como um "instrumento" para a transformacao social, como se o direito de fato pudesse ser, um dia, completamente autonomo em relacao a dominacao de classes.

    Nao se trata aqui de negar a mediacao das lutas sociais com a ordem juridica. Tal mediacao e inescapavel, no sentido de que nao esta sob escolha dos trabalhadores serem ou nao alcancados pela forma juridica. Recusamos, deste modo, um ponto de vista antinormativo de base anarquista, do tipo "os trabalhadores nao devem se envolver com o Estado nem com o direito", porque isto seria simplesmente impossivel. Contudo, pensamos ser necessario refutar as ilusoes de conciliacao entre a forma juridica e a emancipacao.

    Essas ilusoes parecem ate aqui ter dominado o estado da arte da critica juridica no Brasil (4). A despeito de todos os avancos analiticos deste campo sobre o positivismo juridico como ideologia dominante no direito e as implicacoes dai decorrentes com a reproducao da ordem posta, tais analises tem em comum um investimento teorico na caracterizacao da forma juridica para alem da ideologia dominante. O direito costuma ser apresentado como um "instrumento", que tanto pode estar a servico dos poderosos e da perpetuacao da dominacao quanto pode tambem se voltar aos processos de transformacao social participando da construcao de uma sociedade justa e igualitaria. Critica-se o direito e a justica pelo modo como vem se realizando "hoje", o que implica na esperanca de que, em algum ponto da historia, a forma juridica esteja enfim liberada para encarnar a emancipacao social. Dai se conclui pela necessidade de construir outro tipo de direito, "alternativo" ao que esta posto, "justo", "critico", "emancipatorio", que supere o positivismo em direcao a outro modelo de sociedade.

    Aqui se situam as reflexoes de Boaventura de Sousa Santos (2003 e 2015) quando indaga se "podera o direito ser emancipatorio"; as de Roberto Lyra Filho (1985) a respeito da "dialetica social do direito"; as de Jose Geraldo de Sousa Jr.(2008) sobre o direito como um processo ilimitado de "consciencia da liberdade"; as de Antonio Carlos Wolkmer a respeito do pluralismo juridico (2001), as de Luis Alberto Warat (1994) sobre a necessidade de superar o "senso comum teorico dos juristas"; as formulacoes ligadas ao movimento do "direito alternativo", entre outras. Ainda em formulacoes mais aproximadas das analises de Pachukanis, como as de Miguel Pressburguer (1990), ligado a orientacao insurgente, a tese da correspondencia da forma juridica com a forma das trocas mercantis nao foi levada ate as ultimas consequencias, ou seja, a compreensao da extincao do direito numa sociedade igualitaria. Como concluido noutro trabalho, "ao conceber o direito nos marcos da emancipacao, falta freio a estas analises. Elas ampliam o direito para alem das inescapaveis implicacoes da forma juridica com a sociedade de classes" (ALMEIDA: 2015, p.216).

    Esta tensao a respeito dos limites e das possibilidades da relacao entre o...

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