Lote: conceito urbanístico fundamental

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas39-125

Page 39

Le tissu urbain procède de l’imbrication de deux logiques: celle du découpage du sol en lots à bâtir et celle des tracés de la voirie qui les dessert.

David Mangin e Philippe Panerai, Projet urbain, 2002.

1. Introdução – o que é lote?

Fração elementar do território urbano, o conceito de lote, em Direito Urbanístico, mostra-se fundamental e cumpre seja melhor investigado. Isto porque ele se liga, de um lado, às condições adequadas de habitabilidade do sítio (por exemplo, não se pode ter lote em local aterrado com material nocivo à saúde ou de grande declividade, como deter-mina o art. 3º/Parágrafo único da Lei nº 6.766/79, pois não são áreas apropriadas para o assentamento populacional), e, de outro, ao zoneamento de uso e ocupação do solo, que estabelece padrões de aproveitamento urbanístico do solo urbano. Em outras palavras, de um lado ele se relaciona com o processo de urbanização genética (o parcelamento do solo urbano), e, a partir de sua constituição, define-se o destino que poderá ter no contexto de dado sistema urbano1.

Então, a partir da noção central de “lote” surge, portanto, um plexo de normas referentes à disciplina urbanística, que vincula os espaços públicos e privados da cidade. Em suma, os vínculos urbanísticos incidem sobre o lote, que, em conjugação com os espaços públicos de uso comum – sobretudo a via, com a qual sempre divisa –, definem aquilo que se

Page 40

entende por espaço urbano, com suas formas e fluxos específicos.

Como conceito inicial, cabe dizer que lote é uma “uni-dade edilícia”. Este conceito sintético precisa ser explicado. De origem recente, o termo “edilício” – que aparece em expressões como projeto edilício, licença edilícia, regulamentação edilícia, condomínio edilício – designa a atividade relacionada à edificação, ou, mais genericamente, à construção. Deriva de “edil” – hoje sinônimo de vereador –, que era antigo magistrado romano que se incumbia da inspeção e conservação dos edifícios públicos e privados (aedes = casa, de onde aedilis, aedificium, etc). Portanto, unidade edilícia quer dizer unidade de área destinada à edificação; que tenha esta aptidão específica: a edificabilidade para fins urbanos.

Para isto se cria, afinal, o lote: para que se possa aproveitá-lo com a ocupação, com a futura edificação e utilização (urbanização secundária), e isso se encontra expresso no art. 2º/§ 1º da conhecida Lei federal nº 6.766/79, como veremos páginas adiante. Daí porque José Afonso da Silva prefira, talvez mais claramente, a expressão “unidade edificável2.

Como consequência, torna-se claro que pode haver imóvel urbano que não seja lote – v.g., uma área com restrições ambientais, que impeçam a edificação, ou ainda uma gleba, urbana pela localização dentro do perímetro urbano, que simplesmente não foi ainda objeto de parcelamento, são exemplos de imóveis urbanos que não constituem lotes e portanto colhidos por vínculos de “inedificabilidade” (“inedificabilità”)3.

Page 41

Mas o lote não é apenas uma fração real do território, ou seja, uma área de terra qualquer, com finalidade urbana, despida de outros elementos. É, antes, “terreno” servido de infraestrutura urbana, sendo todo o conjunto preparado para receber a futura edificação, que vai ocupar o solo, de modo permanente4, com aquele fim. A esse conjunto composto por uma área de terra urbana ou urbanizável com determinada dimensão e ligada às redes de infraestrutura urbana (em funcionamento) é que tecnicamente dá-se o nome de “lote”, que fica predisposto para ser ocupado pelo homem. Nessa perspectiva – e à semelhança da banalizada locução “direitos humanos” –, constitui pleonasmo vicioso falar-se de “lote urbanizado”, expressão muito veiculada na publicidade dos empreendimentos: só previamente urbanizado é que o solo se torna edificável. Em linha de princípio, todo lote há de ser urbanizado porquanto integrado no contexto da cidade, o que torna a expressão “terra urbanizada”, usada até pela lei, claramente um eufemismo para o acre da cidade.

A possível dissociação entre lote e infraestrutura pode se dar em apenas dois casos: o primeiro, a figura delituosa do loteamento ilegal, sobretudo o clandestino, que constitui crime contra a Administração Pública (art. 50 da Lei
6.766/79, que exige o dolo) mas que grassa nas periferias urbanas e cujas vítimas são, em regra, pessoas carentes e despossuídas; o segundo, a situação – transitória – do transcurso do tempo para a realização das obras exigidas, que é no máximo de 4 anos (art. 18/V da mesma lei, com a redação de 1999; a redação original determinava o prazo máxi-

Page 42

mo de dois anos). Caberia dizer que no primeiro caso temos uma “não-cidade” e no segundo uma “quase cidade”. Portanto, tirando essas duas situações excepcionais (a primeira por ser criminosa e a segunda por ser efêmera), o terreno para ser alçado à condição de lote deve estar aparelhado, isto é, servido da infraestrutura urbana que garanta a dignidade de vida para as pessoas que ali irão residir, nele habitar (tomando o termo em seu sentido forte, “heidegeriano”).

Daí porque não parece correto vislumbra-se qualquer distinção possível entre parcelamento e urbanização, como fazem alguns autores. O parcelamento é a própria urbanização da gleba. M. de Solà-Morales5estabelece uma classificação das formas de crescimento urbano definidas em função de três operações básicas e sequenciais do processo urbanizador que seriam o parcelamento (“morfologia da ocupação do solo”), a urbanização (“construção da infraestrutura”) e a edificação (“construção dos edifícios segundo tipologias edificatórias”). Na verdade, tais operações confluem, relacionam-se diretamente, e tentar separá-las – em especial as duas primeiras, mas não só – pode ser perigoso e inadequado. Tais operações devem ser vistas de modo conjunto, de modo integrado, imbricando-se mutuamente, haja vista que o parcelamento irá constituir porção nova do espaço urbano, que exige a continuidade e que se define por certa densidade edilícia e populacional. Embora possa haver parcelamento com ou sem “incorporação imobiliária” (rectius: a construção das casas), não se pode pensar naquelas três operações isoladamente, até mesmo porque, em relação à edificação, o lote deve estar sempre pronto para recebêla e, se isto não for feito em prazo razoável, a Constituição – regulamentada pelo Estatuto da Cidade – define procedimentos para punição do proprietário do solo urbano não edificado. São as imposições constitucionais à utilização do

Page 43

solo urbano (art. 182/§ 4º). Há de existir infraestrutura disponível e há, ao depois, que haver edificação no lote, tudo resultando do processo de urbanização genética (ou primária), que é o loteamento.

Veja-se, pois, que o fundamento da infraestrutura citadina necessária à própria constituição da cidade atual encontra-se no princípio elementar da dignidade da pessoa humana, que se acha arrolado dentre os princípios básicos da República Federativa do Brasil (art. 1º/III). Com efeito, em pleno século XXI, não ter o cidadão acesso à rede de abastecimento de água, por exemplo, é algo inaceitável, que deve ser combatido por todos. Estreitamente ligado à saúde pública, este é um direito de todos os cidadãos e a manutenção do serviço um dever do Estado (art. 196 da Constituição Federal). É evidente que o percentual de residências sem acesso à água encanada, no Brasil, é ainda altíssimo: segundo o Ministério das Cidades, 40 milhões de cidadãos carecem de serviços de distribuição de água potável (cerca de 17% dos domicílios brasileiros). Porém, pensamos aqui na “cidade legal” e não na “cidade ilegal”, que demanda políticas públicas de inclusão – também no acesso a estes serviços. Dentre outros aspectos, esta transformação passa pela conexão da unidade habitacional à infraestrutura urbana: se não houver, a política será antes de “cosmética” urbana, sem valor efetivo para a afirmação da cidadania, entendida como o gozo concreto e efetivo dos direitos fundamentais (e, dentre eles, os direitos sociais do art. 6º da CF).

2. O lote na quadra

Nos anos 20 do século findo, a população paulistana crescia e com ela a demanda por moradias explodia. A cidade de São Paulo tinha, aproximadamente, 200 mil habitantes em 1900, contingente que saltou para 1 milhão em 1930, numa “explosão desmedida”. Mário de Andrade observa, numa crônica de 1921, que o aspecto geral da urbe estava

Page 44

sensivelmente prejudicado com a vinda de arquitetos belgas, suecos, austríacos enquanto notava “há uns cinco anos atrás ainda uma certa uniformidade, proveniente talvez de serem dois ou três engenheiros só a desenhar habitações”6. Como resumiu o poeta Blaise Cendrars a respeito da São Paulo da época – aonde chegou em 1924 –, na cidade “erguem-se dez casas por hora de todos os estilos”. E conclui: “Ici nulle tradition” (Saint-Paul). O mesmo se poderia dizer em relação à legislação urbanística ou até mesmo à legislação edilícia.

Assim, dada a precariedade dos parâmetros públicos, houve necessidade de disciplinar minimamente o crescimento fabuloso da metrópole, a ocupação descontrolada do solo mediante, a aprovação de um novo Código de Obras – chamado “Arthur Saboya”, nome do diretor de Obras e Viação do Município...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT