Livre circulação internacional de pessoas, turismo internacional e terrorismo: o caso Brasil x EUA

AutorHee Moon Jo
Páginas183-200

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1. Introdução

Nesse mundo globalizado, um dos mais importantes e fundamentais direitos para o indivíduo é o direito à livre circulação. Ora, a própria característica da globa-lidade já explica a necessidade desse direito do indivíduo, de tal sorte que ele possa conhecer outros países com mais facilidade.

As mercadorias, tecnologias e capitais circulam de uma forma cada vez mais livre, amparadas por negociações multilate-rais, regionais e bilaterais. No entanto, a circulação internacional dos indivíduos ainda não está bem liberalizada, o que gera um descompasso entre os direitos do homem e os das "coisas", em um sentido físico. O desenvolvimento dos direitos humanos vem alterando a característica do direito internacional, enfatizando cada vez mais a importância da garantia da liberdade humana (ou do "homem livre") na dimensão internacional.

No contexto da humanização do direito internacional, o turismo internacional segue testando, na prática, o exercício do direito à livre circulação do homem. Conhecer diversos povos, a cultura de diferentes países, etc., é uma experiência individual, totalmente diversa daquela que é recebida pelos meios de comunicação. Quanto mais as pessoas se conhecerem, visitarem diversas localidades e travarem contato direto com outras culturas, maior será a possibilidade de se evitar conflitos internacionais. Assim, o turismo internacional é um importante meio através do qual os próprios indivíduos podem contribuir para a mantença da paz internacional. Nessa linha, garantir a livre circulação dos turistas internacionais é a exigência básica para o bom funcionamento do turismo internacional. Mais ainda, temos que a liberdade do turismo internacional reflete o direito global dos indivíduos.

Obviamente, o direito à livre circulação dos turistas internacionais não significa negar o direito soberano do Estado em

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controlar legalmente a entrada e a saída dos indivíduos em seu territorio. O que queremos dizer é que a recusa à emissão de visto ao turista estrangeiro deve ser devidamente fundamentada, de modo a não prejudicar o direito do indivíduo de viajar e conhecer outras culturas (right to travei vs. right to refuse visa). Ou seja, entendemos que o Estado não tem mais o direito discricionário da recusa à emissão de visto, devendo esse direito ser exercido dentro dos limites que o direito internacional estabelece. De fato, o direito internacional vem estabelecendo, através dos instrumentos internacionais, os casos pelos quais o Estado pode negar a emissão de visto ao estrangeiro. Esse controle pelo direito internacional é necessário, desde que a circulação dos estrangeiros contribui para a paz internacional através do entendimento e do intercâmbio cultural que se estabelecem.

Nesse ambiente favorável ao incremento do turismo internacional ocorreu o terror do 11 de setembro de 2001. A partir de então, os EUA decidiram fiscalizar mais rigorosamente a entrada e a saída dos estrangeiros em seu solo. Os meios introduzidos foram a coleta de impressões digitais e a fotografia de todos os estrangeiros, exceto daqueles com visto permanente e dos provenientes de um grupo de 27 países que gozam de isenção de visto. Como o Brasil não faz parte desse grupo, todos os brasileiros que doravante adentrassem aos EUA deveriam passar pelos novos procedimentos de verificação. O Brasil, por sua vez, decidiu aplicar as mesmas medidas aos americanos que adentrassem ao território brasileiro, com base no princípio de reciprocidade. Ora, os dois países agiram e tomaram as medidas que julgaram corretas. No entanto, quem sofre com essas medidas são os próprios indivíduos dos dois países. Esse episódio demonstrou que o terrorismo internacional afeta e seguirá afetando de modo extremamente negativo o turismo internacional e, conseqüentemente, a paz internacional.

Aí estão postas as relações entre os interesses coletivos e os interesses individuais. Enquanto o Estado exerce seus direitos e deveres para o seu bem e o dos seus cidadãos, os indivíduos, em sendo livres, argumentam pela efetivação de seus direitos fundamentais e, dentre eles, o direito à liberdade de circulação. Assim, esse artigo visa discutir as relações entre o direito à livre circulação no direito internacional, o direito do Estado em recusar a entrada do estrangeiro, o princípio de reciprocidade e o impacto do terrorismo internacional no turismo internacional, objetivando uma reflexão acerca da importância da livre circulação no turismo internacional.

2. Caso Brasil "vs " EUA

Após os ataques, os Estados Unidos passaram a adotar um novo sistema de segurança para combater o terrorismo. Esse sistema de segurança exige que os estrangeiros que adentrarem ao país devem ter suas fotografias tiradas e suas impressões digitais coletadas.

Em resposta a essas medidas, o Procurador da República do MT, José Pedro Taques, via liminar, requisitou que os cidadãos americanos que adentrarem ao Brasil terão obrigatoriamente suas impressões digitais coletadas e serão fotografados, a partir de lº de janeiro de 2004. A liminar foi concedida pelo Juiz Federal do Mato Grosso, Julier Sebastião da Silva. Ele entendeu que a medida do governo americano é algo "absolutamente brutal, atentatório aos direitos humanos, violador da dignidade humana, xenófobo e digno dos piores horrores patrocinados pelos nazistas" e, assim, acolheu o fundamento do Procurador da República, que é o do princípio internacional de reciprocidade, sob a alegação de que "se eles podem supor que todo estrangeiro é um terrorista, nós também estamos autorizados a fazer o mesmo".

O Juiz Julier Sebastião da Silva ainda esclareceu que "enquanto perdurarem os atos norte-americanos discriminatórios

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quanto aos brasileiros, pelo princípio da reciprocidade, está autorizado a República Federativa do Brasil a impor aos cidadãos dos Estados Unidos as mesmas exigências que estão sendo materializadas aos nacionais aqui nascidos".2

Ora, a reação do Brasil à nova política externa americana é um claro sinal do grau de deterioração em que se encontram as atuais relações entre o Brasil e os EUA. As regras americanas foram criadas por causa da ameaça do terrorismo e, subsidiariamente, para conter a imigração ilegal. Desde o início, o governo Lula buscou expressar uma diplomacia independente, condenando a invasão ao Iraque e deixando que a negociação da ALCA caísse em um impasse. Enquanto isso, ele expandiu a atuação da diplomacia brasileira fora da América do Sul, o que é um fato novo, mas ainda não conseguiu reverter a crise no Mer-cosul.

2. 1 Medidas americanas e segurança nacional

A partir de 5.1.2004, os EUA começaram a aplicar o sistema chamado "US-VISIT", pelo qual as impressões digitais e fotografias dos visitantes estrangeiros são armazenados em computador. Logo, os visitantes estrangeiros oriundos dos países que não estão isentos, tal como o Brasil, devem ter suas impressões digitais e fotografias tiradas e comparadas com os dados de terroristas e criminosos.3

Além dessas medidas, os visitantes estrangeiros que desejarem o visto americano devem tirar novamente suas impressões digitais, para efeitos de comparação com as impressões anteriormente deixadas quando da entrada nos EUA. O governo americano explicou que essas medidas servem para checagem e comparação com dados anteriormente coletados, de tal sorte a se combater melhor o terrorismo.

Aliás, o governo americano vem exigindo que os países estrangeiros, quando da emissão de passaportes, incluam nestes os dados genéticos de seu portador. Os que criticam essas medidas argumentam que elas infringem os direitos humanos, em particular, a liberdade de corpo, ou seja, o direito à privacidade. De fato os americanos, que não têm carteira de identidade tal como existe no Brasil, nunca têm as suas impressões digitais tiradas, excetuando-se aí os criminosos. Porém, todos os estrangeiros com visto permanente nos EUA têm as suas impressões digitais tiradas, fato este que raros americanos natos têm consciência.

2. 2 Princípio de reciprocidade no direito internaciona

Nossos diplomatas entenderam que as medidas tomadas pelo governo brasileiro sobre os americanos, quando da entrada destes em solo brasileiro, estão baseadas no princípio de reciprocidade. Esse foi.o princípio fundamental vigente à época das relações internacionais tradicionais, quando a diplomacia era entendida apenas sob o viés político. Ao aplicar esse princípio, um Estado concede direitos ou vantagens a outro Estado quando esse lhe concede os mesmos direitos ou vantagens.

Com o aumento das relações internacionais em várias áreas, como a econômica, a de proteção dos direitos humanos, etc, os países ficaram mais cautelosos na aplicação do princípio de reciprocidade. Isso porque cada vez mais ocorrem casos onde o uso desse princípio pode prejudicar os interesses nacionais. Aliás, o poder discricionário do país a recorrer ao princípio de reciprocidade vem diminuindo, a partir da formação das normas fundamentais da pró-

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pria sociedade internacional. A formação das importantes normas comunitárias internacionais como, por exemplo, as normas relacionadas aos direitos humanos, não podem ser negociadas na base da reciprocidade. Assim, mesmo quando um Estado trata mal o cidadão de um determinado país, o país deste não pode simplesmente aplicar o mesmo tratamento aos cidadãos daquele país que se encontram em seu solo, alegando a reciprocidade. Já na área econômica e comercial o princípio de...

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