O limite da jurisdição no pensamento político constitucional brasileiro do império à república

AutorVera Ribeiro de Almeida
CargoMestranda em Direito junto ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro
Páginas214-241

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1. Introdução

Este estudo integra minha dissertação de mestrado em desenvolvimento junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Gama Filho e tem o fim de examinar alguns aspectos da categoria denominada de "jurisdição", através de recorte possibilitado pelo exame de algumas referências bibliográficas que traduzem o pensamento constitucional brasileiro, tais como, Christian Edward Lynch, Pimenta Bueno, Rui Barbosa e Campos Salles, entre outros, no que se refere ao "judiciarismo" e ao "antijuridiciarismo". Analiso, portanto, o grau de maior ou menor participação política do Poder Judiciário no desempenho de suas atividades funcionais. Assim, para a análise aqui pretendida emprego a metodologia descritiva com base nestas referências e em apontamentos de aula, delimitada no espaço de tempo que compreende a vigência da primeira Constituição brasileira e a instauração do primeiro período republicano.

Digo isto porque em Rui Barbosa (1960b), por exemplo, há a defesa de uma maior participação política do Judiciário, além da dificuldade em se demarcar onde o direito se inicia e termina a política e vice-versa. Já em Felisbelo Freire (1913), ao contrário, está presente a defesa da não intromissão desenfreada do Poder Judiciário, comungando da opinião de que este deveria obedecer aos limites impostos pela Constituição Federal, já que ir além disso configuraria o rompimento da harmonia entre os três poderes, com a supremacia do judiciário sobre os demais.

Tal estudo é relevante não apenas porque trata da influência da jurisdição no nosso modelo de Estado, mas por levantar pensamentos onde estão concentrados os fundamentos que acolhem uma ou outra posição e que continuam sendo empregados nos discursos contemporâneos.

Para compreender o atual "avanço" do judiciário na seara política e as circunstâncias que determinaram sua supremacia na aplicação do direito em face dos demais poderes estatais, não se pode afastar os

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contextos histórico e político que envolvem a sua criação e desenvolvimento. Nesse sentido, quando se aponta a importância atribuída aos juízes de paz no período inicial da formação do Poder Judiciário brasileiro, por exemplo, o que recebe destaque é o papel que desempenharam na solução dos problemas das províncias e o fato de que eram direta-mente indicados por elas, o que lhes conferiram grande poder político e certamente orientava suas decisões (LOPES, 2002, p. 89-90).

Em quaisquer dos aspectos ou épocas selecionadas - até mesmo na vigência do Poder Moderador, é possível verificar a idoneidade política do judiciário, constituindo, muitas vezes, em aporias de um poder sobre outro. Mas é preciso afirmar algumas peculiaridades do pensamento político brasileiro sobre o qual a atividade judicial se conforma. Por exemplo, mesmo que Pimenta Bueno ao versar sobre a autonomia e a separação dos poderes na Constituição do Império de 1824, tenha afirmado que o Poder Moderador constituía a "expressão natural e necessária da soberania nacional", fruto legítimo do liberalismo constitucional da época (2002, p. 90), vale lembrar que aqui o Poder Moderador se caracterizou pelo fato de que o "soberano constituía o centro único e indissolúvel do poder e da ordenação social", ou seja, não houve entre nós a separação de poderes estabelecida por Montesquieu. Ao mesmo tempo, o liberalismo no sentido brasileiro possuía somente o caráter econômico, esvaziado dos significados sociais igualitários que caracterizaram o ideal na sua origem (LOPES, 2002, p. 90). Desta forma, em geral, as decisões judiciais legítimas seriam aquelas que atenderiam aos interesses do imperador e do seu governo.

Ora, assim como as decisões políticas não são neutras, no sentido de que elas constituem uma opção entre valores antagônicos, o mesmo acontece com as decisões judiciais. Em outras palavras, o exercício da função julgadora não se concretiza a partir de um ponto de vista neutro, apolítico ou não comprometido com as convicções pessoais de quem a promove, mas sim, resultado da carga subjetiva extraída das experiências pessoais e profissionais vividas e acumuladas. Essas, provavelmente, estavam mais evidentes na formação da nossa sociedade,

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em face da forma complementar e sucedânea da mobilidade e do acesso aos cargos jurídicos e políticos e que caracterizaram a trajetória de diversas personalidades brasileiras. Resumindo, o magistrado está sujeito à influência do seu tempo e de suas compreensões apriorísticas do mundo.

Como afirmou o Ministro Leitão de Abreu (1965, p. 4):

A verdade é que, em todos os tempos, o juiz, para dar resposta às exigências da utilidade comum, sempre se deixou guiar por juízos de valor. (...). A sensibilidade apreciativa do juiz preside, comumen-te, por conseguinte, quer à qualificação dos fatos, que hajam de entrar no silogismo da sentença, quer à eleição do texto legal, que lhe venha servir de apoio. A juízos de feição axiológica subordina-se, igualmente, a escolha, em cada hipótese, do método de interpretação a ser utilizado, porquanto não é possível justificar-se, por via puramente lógi-co-formal, o emprego, aqui, de um método e ali de método diverso para aplicação do direito.

A indagação que permeia os discursos pró e contra o judicia-rismo gira em torno exclusivamente da liberdade judicial na interpretação de uma norma. Os que defendem a atuação política do judiciário, afirmam que a função jurisdicional, por sua natureza, não pode ser vista somente em sua técnica jurídica de interpretação definitiva do direito positivo, já que por seu intermédio não só se dirimem, de forma termina-tiva os conflitos de interesses e garantem os direitos e liberdades dos cidadãos, como também é possível opor limite à ação do governo, da legislatura e dos próprios tribunais, se contrários à Constituição ou às leis. Mas o que está no cerne da discussão sobre a pró-atividade do judiciário é essencialmente o poder, em sua conceituação bourdieriana. Trata-se, principalmente, de conferir legitimidade a uma ação pessoal e individual do juiz, que ao decidir sobre uma determinada demanda, alte-

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ra, subtrai ou extrapola o sentido de uma norma (ou de um direito) editada por um sistema democrático legítimo e representado por todo o grupo social, como é o processo legislativo e, especialmente, quando essa norma provém de texto constitucional que representa a lei máxima do país. Não se trata de verificar se esta atividade é legítima ou não, pois se está sendo praticada há mais de 50 anos, ela efetivamente já se legitimou. O que se deve investigar é que tipo de legitimidade é esta que não é eletiva?

No Brasil, a independência do judiciário e a expansão do seu papel acontecem junto com o processo de democratização do país, pelo fato de ser o poder estatal mais próximo do povo. Contudo, não é este o recorte pretendido neste estudo. Ao contrário, examino a atividade judicial prevista nos textos e discursos constitucionais em período limitado de nossa história (entre a passagem do império para a república), objeti-vando apontar as peculiares forças políticas que estavam em seu entorno, delimitando ou ampliando este poder, além de enfatizar a influência dos modelos estrangeiros importados, bem como os principais efeitos de sua adoção entre nós.

No interior desse debate estão presentes também aspectos intimamente ligados à própria construção da nossa sociedade, marcada-mente estamentária, que mantém segmentos privilegiados (FAORO, 2000), além de influenciada pelos modelos de leis e sistemas jurídicos cunhados de idealismos sociais que não se ajustaram a nossa realidade. Esse conjunto de informações contribui para as representações que essa mesma sociedade vai fazer sobre a Justiça, ou seja, como ela enxergará o Poder Judiciário.

2. A influência dos modelos constitucionais estrangeiros

A partir das Revoluções do final do século XVIII (americana e francesa, principalmente) é possível afirmar que a concepção de qualquer ordem constitucional estaria presa a dois componentes básicos: a

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separação de poderes e a garantia dos direitos individuais. Neste sentido, as primeiras constituições apresentariam conteúdo filosófico e político, no qual se refletia no modelo de Estado (de Direito), na superação do absolutismo e na hegemonia da ideologia burguesa.

O constitucionalismo teve, inicialmente, o objetivo de impor uma limitação ao Estado voltada para o respeito e proteção dos direitos humanos (BONAVIDES, p. 225-231). Contudo, as constituições liberais, de textos breves, apesar de preocupadas em garantir tais direitos e carregadas do profundo sentimento de desconfiança do poder, não se preocupavam com as relações sociais. O indivíduo era considerado em sua potencialidade máxima, sendo desprezadas fragilidades comuns nas relações sociais daquele contexto histórico. Vale dizer, as constituições liberais do século XIX disciplinavam tão-somente o poder do Estado e os direitos individuais (direitos civis e direitos políticos).

As ideias políticas constitucionais que representavam o nosso país estavam intrinsecamente ligadas à localização do Brasil no movimento político-social mundial. As ideias de modernidade que vinham lá de fora (países da Europa ocidental e Estados Unidos da América, considerados centrais) acarretavam uma dependência econômica e, principalmente intelectual, pois o país precisava organizar suas instituições, suas leis, seus pensamentos políticos, à maneira daquilo que era compreendido (e defendido) por estes países. Em outras palavras, o ideal era organizar o nosso país com o senso de modernidade dessas ideias estrangeiras. No entanto, a sociedade brasileira não era moderna: era uma sociedade escravocrata, agrária, com alto índice de analfabetismo (FAORO...

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