Limitação de responsabilidade na prática contratual brasileira - permite-se no Brasil a racionalização dos riscos do negócio empresarial?

AutorNilson Lautenschleger Jr.
Páginas7-24

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Nilson Lautenschleger Jr.1

"Das Ziel des Rechts ist der Friede, das Mittel dazu ist der Kampf"

("Objetivo do Direito é a paz, o instrumento para tanto é a luta" (tradução livre)

Rudolf von Jhering em Das Kampf ums Recht (1872),

Continua sendo a limitação de responsabilidade na prática contratual brasileira tema de extrema relevância, cujo delineamento, porém, permanece à mercê das interpretações jurisprudenciais e doutrinárias. Foi objetivo do presente trabalho perquirir a validade e eficácia das cláusulas de limitação da responsabilidade no Brasil, utilizando-se o direito comparado como base de interpretação, bem como a identificação de permissivos legais para a inclusão de cláusulas de limitação de responsabilidade em vigor no Brasil. Foi também objeto de análise a cláusula penal compensatória utilizada como instrumento de limitação de responsabilidade.

1. Introdução

Sempre, com maior frequência, deparam-se, tanto os juristas como os adminis-tradores, nas negociações dos contratos das empresas, com a indagacao a respeito da limitacao da responsabilidade contratual.

Procura-se reduzir e matematizar o risco do negócio não só com a contratação de seguros, introdução de medidas de controle de qualidade na produção, atendimento pos-venda aos clientes, mas também com a li-

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mitação da responsabilidade decorrente diretamente dos contratos da empresa, como prática reiterada e consagrada, digna, mesmo, de ser objeto de normativos internos em algumas corporações.

Referida prática, todavia, torna turva, por vezes, a real validade e eficácia de tais cláusulas, as quais não só têm sua extensão questionada na doutrina e jurisprudência brasileiras, mas também sempre estão sujeitas, quanto a sua eficácia, ao crivo judicial que, mesmo nos países de tradição jurídica continental, pode submetê-las a controle de conteúdo2 e, assim, ponderá-las sob os princípios da boa-fé, proporcionalidade e equidade, restando sua objetividade, assim, questionável. Portanto, a inclusão de tais cláusulas nos contratos, especialmente quando objeto de regulamentos internos das empresas, deve atentar para tal problemática de sua validade e eficácia, para, assim, não haver nenhuma surpresa quando da real necessidade de exigir judicialmente seu reconhecimento.

Foi intenção do presente trabalho per-quirir, de forma objetiva, a validade e eficácia das cláusulas de limitação da responsabilidade no Brasil, utilizando-se o direito comparado como base de interpretação, bem como a identificação de permissivos legais ou jurídicos para a inclusão de cláusulas de limitação de responsabilidade em vigor no Brasil. Sacrificaram-se, portanto, digressões estritamente académicas em benefício de uma crítica mais panorâmica e geral.

2. Responsabilidade civil e a lei brasileira

Diferentemente da Alemanha, o Brasil adotou o princípio da cláusula geral de responsabilidade civil.3 Tal princípio deri-va dos preceitos gerais expressos nos artigos 159 e 1.056 do Código Civil vigente e artigos 389 e 927 do novo Código Civil,4 os quais englobam tanto a responsabilidade contratual quanto aquela advinda da violação ilícita de dever não contratual (ex delictus), também chamada responsabilidade delitual ou extracontratual. A responsabilidade geral é, como nos demais países que adotam o sistema romano-germânico ou continental, baseada no princípio da culpabilidade, também conhecida como responsabilidade subjetiva. No Brasil a responsabilidade não baseada na culpabilidade, conhecida como responsabilidade objetiva, é ex lege, ou seja, decorre sempre da lei ou, ainda, na acepção do novo Código Civil, o qual sedimenta a doutrina já existente no período anterior à sua publicação, de uma atividade perigosa (ubi emo-lumentum, ibi ónus).5 Ressalte-se que tal afirmação, embora pareça ser uma obvie-dade, e, ainda que não seja absoluta, vez que em determinados casos a jurisprudência brasileira também permitiu a responsabilidade objetiva com base na presunção de culpa, como nas locações de veículos,6 não é realidade em todos os países - pois na França, somente a título ilustrativo, a responsabilidade objetiva desenvolveu-se em grande parte a partir da interpretação juris-

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prudencial do artigo 1.384 do Code civil,7 sendo que a necessidade de leis especiais se dá em muito menor extensão.8 Também, de acordo com a doutrina e lei brasileiras, a responsabilidade não inclui somente os danos diretos ou, melhor expresso, emergentes, mas também lucros cessantes e os danos morais.9 De acordo com o artigo 1.056 e seguintes do Código Civil as perdas e danos, portanto, podem sempre ser requeridas pelo credor, caso o devedor falhe ou deixe de cumprir suas obrigações, assim chamada inexecução total do contrato, ou o faça não como acordado, assim chamada inexecução parcial do contrato.

Requer também a responsabilidade contratual a violação do acordo e a culpa consistente na simples "inexecução possível e evitável" e não em abstrato.10 Claro está que tal requisito da culpa é amplo suficiente para permitir ao juiz analisar, segundo critérios de equidade, a extensão do dano ressarcível, de forma que tal responsabilidade não transforme a condenação indenizatória em condenação letal para o autor do dano, como, por exemplo, a inviabilidade total da sua atividade empresarial. Tal juízo de equidade, aliás, encontra-se de forma expressa no novo Código Civil (artigo 944 do novo Código Civil11).

3. Extensão da responsabilidade: a indenização

Não há a fixação de um limite pecuniário pela lei ou jurisprudência para a determinação dos danos. O montante dos danos diretos devidos - pode-se dizer - será equivalente ao prejuízo total e/ou ao que deixou de ser ganho (lucros cessantes). Para tal fim, a parte que alega tem de provar a

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ocorrência de tais danos. A determinação do valor da indenização por danos morais, por outro lado, fica ao talante judicial. Tribunais e doutrina12 têm considerado, assim, os seguintes critérios: (i) a situação financeira do devedor; (ii) o nível de vida médio do credor, evitando-se, assim, o enriquecimento ilícito; e (iii) a gravidade dos danos causados. Também, tal determinação deve sernorteada pelos seguintes fins; (i) a compensação dos danos causados pelo devedor e não a reparação, uma vez que a natureza do dano moral é imensurável; e (ii) a punição do causador do dano.13 Parte da doutrina tem, ainda, considerado como referência para outras relações contratuais, através do uso da analogia, o critério estabelecido sob a revogada Lei de Telecomunicações (Lei n. 4.117 de 196214), que fixou o montante da indenização em um determinado número de salários mínimos (entre 5 e 100 salários e 200, no caso de violações continuadas).15 Os tribunais têm considerado, de maneira esparsa, também pelo uso da analogia, os critérios estabelecidos pelos artigos 51 e 52 da Lei de Imprensa (Lei n. 5.250 de 1967): entre 2 e 20 salários mínimos para pessoas físicas e entre 20 a 200 para a pessoa jurídica.16 Observe-se, entretanto, que os tribunais brasileiros não têm sido consistentes ou mesmo constantes na aplicação destes critérios,17 não sendo, assim, incomum encontrar decisões fi-xando os montantes máximos acima referidos, ainda que timidamente. Cabe, outros-sim, noticiar que as decisões ocorridas recentemente no Brasil, especialmente na última década no nordeste e centro-oeste, que receberam destaque na mídia em razão do vultoso valor dos danos morais fixados, não passaram de distorções efémeras no sistema judicial brasileiro, lastreadas muito mais em casos de corrupção do que fundamentação jurídica e, portanto, não merecem, ao menos no seu atual estágio, atenção como tendência jurisprudencial já que se tratam de decisões isoladas.18

Faculta-se, ainda, às pessoas jurídicas o pleito por danos morais, pois, evidentemente, podem ter sua credibilidade e reputação comerciais também eventualmente prejudicadas.19 Tal assertiva deriva da interpretação literal do artigo 59, V da Constituição Federal de 1988 que não distingue pessoas jurídicas de pessoas físicas. Os tribunais brasileiros têm decidido neste sentido.20

4. Responsabilidade contratual e risco para o negócio empresarial

Toda a sistemática legal da organização empresarial tem por objetivo precípuo a racionalização ou matematização de riscos para obtenção otimizada do ganho ou lucro.21 O capital das sociedades anónimas ou das sociedades por quotas de responsabilidade limitada serviu, assim, no curso da história para a consecução de tal objetivo,

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na medida em que a responsabilidade do empresário ficou limitada à integralização do capital, salvo o abuso de forma.22 Todavia, tal limitação demonstrou não ser suficiente para a atividade empresarial, pois em suas operações as empresas deparam-se com negócios específicos cujos riscos transcendem, e muito, por vezes, o seu benefício económico. Como exemplo ilustrativo podemos citar o setor de fornecimento de equipamentos, onde a simples falta na entrega ou a entrega de um equipamento com defeitos pode gerar lucros cessantes ou até mesmo prejuízo para a credibilidade comercial do comprador do equipamento - em razão de atraso de encomendas -, que superam muito o próprio valor de aquisição do bem. Trata-se de um risco que pode colocar em jogo a própria sobrevivência da empresa fornecedora, e que não pode deixar de encontrar refúgio nos cânones jurídicos, pois que a...

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