A limitação da responsabilidade do empresário individual

AutorCinira Gomes Lima Melo
Páginas49-59

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O presente artigo tem como proposta estudar a realidade jurídica atual do empresário individual mostrando suas peculiaridades e o tratamento a ele dispensado pela legislação vigente. A partir dessa realidade, pretendemos abordar a questão da limitação da sua responsabilidade pelas obrigações oriundas da atividade empresarial por ele explorada.

A atividade empresarial possui dois principais elementos que a caracterizam: o empresário, que é o sujeito de direito, e o risco que sempre acompanha o seu exercício.

Nos ditames do art. 966 do Código Civil brasileiro: "Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços".

Empresário é "quem" exerce atividade econômica organizada. É um sujeito de direito que pode ser pessoa física ou pessoa jurídica.

Aquele que exerce atividade individualmente é chamado de empresário individual (pessoa física). Já se a atividade for exercida por um conjunto de pessoas (duas ou mais) que se reúnem para tanto, tem-se uma sociedade empresária (pessoa jurídica).

Para a exploração de uma atividade econômica organizada é necessário que o empresário utilize, pelo menos, alguns bens (dinheiro, equipamentos, insumo etc.) e os destine a uma finalidade específica.

De outro lado, temos o princípio da responsabilidade patrimonial, ou seja, o devedor responde por todas as suas obrigações com todos os seus bens que constituem garantia comum dos credores. Assim também ocorreria com o exercício da atividade econômica: o devedor responderia por todas as obrigações oriundas dessa atividade com todos os seus bens. Daí a questão do risco no exercício da empresa.

Assim, ao explorar a empresa, o empresário correria o risco de perder não só o patrimônio separado para essa atividade (equipamentos, insumos etc.), mas todo o seu patrimônio, o seu conjunto de bens conseguidos com o trabalho de uma vida inteira. Essa é a regra: responsabilidade ilimitada.

Ocorre que, essa regra representava e ainda representa um verdadeiro desestímulo ao exercício de qualquer empresa. Quem arriscaria o patrimônio construído com anos de trabalho para explorar uma atividade econômica por mais vantajosa que fosse?

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Assim, para se minimizar o risco empresarial, o legislador encontrou a alternativa da limitação da responsabilidade do empresário pelas obrigações oriundas do exercício da empresa.

Essa alternativa representa um verdadeiro incentivo ao crescimento econômico e social, na medida em que traz segurança jurídica aos investidores, estimulando novos empreendimentos.

Ocorre que, tal privilégio, de acordo com a legislação vigente, somente pode ser usufruído pela sociedade empresária, visto que não se admite que o empresário individual separe parcela de seu patrimônio para a exploração de sua empresa e limite sua responsabilidade pelas obrigações contraídas no exercício da atividade ao montante desse patrimônio afetado.

Assim, nesse momento, é importante demonstrar a relevância da discussão da limitação da responsabilidade do empresário individual.

O empresário individual é visto pela maior parte da doutrina como um ente sem relevância jurídica, em razão do pequeno e médio porte das empresas por ele exploradas. Tal fato pode ser facilmente constatado consultando-se os livros de Direito Comercial que quase nada trazem sobre o assunto.

Ocorre que, essa impressão não se justifica ao observarmos o número de empresários individuais inscritos, por exemplo, no ano de 2003. Foram 228.597 inscritos no Brasil,1 nada muito inferior ao número de sociedades limitadas inscritas no mesmo ano: 240.530.

Essa estatística elaborada pelas Juntas Comerciais demonstra que os empresários individuais estão presentes no mercado e representam parcela da economia do país, por menor que seja.

Por essa razão é necessário que se atente à realidade, dando ao empresário individual maior atenção, a fim de se incentivar o crescimento de suas empresas. Uma das formas de incentivo a esse crescimento, com certeza, é a limitação de sua responsabilidade pelas obrigações oriundas do exercício de sua atividade.

Nesse sentido, ensina Luiz Antonio Soares Hentz:2 "A falta de aceitação do princípio da separação de patrimônios como regra geral tem impedido o desenvolvimento da firma individual, ainda mantida com as restrições com que entrou para o direito comercial, há dois séculos, no código napoleónico. Para países como Portugal e França tem sido uma meta encontrar um sistema que dê ao empresário individual a mesma prerrogativa daquele que dispõe de seu capital para o exercício da atividade empresarial em nome coletivo. De um lado do problema está a tendência dos comercialistas à perfeição de linguagem e ao rigor no engendramento de novas fórmulas jurídicas. Não se contesta, porém, o elevado efeito prático para a atividade econômica a existência de um sistema que permita a coexistência da empresa individual e a segurança jurídica propiciada pela separação patrimonial".

Calixto Salomão Filho,3 por sua vez, entende que o principal fundamento para o reconhecimento da "sociedade unipessoal"4 com responsabilidade limitada é o apoio à pequena e média empresa.

Afirma ainda referido Professor:5 "(...) as legislações recentes que trataram do assunto da limitação de responsabilidade do comerciante individual manifestaram expressa preocupação com os fatores de ordem econômica que justificam sua introdução. Entre eles figura o incentivo às empresas que isso acarretaria, tanto porque é

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historicamente comprovado que muito do sucesso da sociedade anônima é devido à limitação de responsabilidade, como porque a limitação de responsabilidade constitui uma força de resistência mais segura à tentação de confundir contabilidade comercial e pessoal".

Clara está, portanto, a relevância econômica e jurídica da incorporação desse instituto em nossa legislação.

Outro aspecto negativo verificado em conseqüência da impossibilidade da limitação de responsabilidade é o grande número de sociedades fictícias criadas, sociedades estas que são compostas, na verdade, por um único sócio, mas que utilizam testas-de-ferro para obter o benefício da limitação de responsabilidade.

Sobre essas sociedades fictícias, vale a pena transcrever a posição de Antonio de Arruda Ferrér Correia:6 "(...) Mas também aqui, como em outros domínios e tantas vezes acontece, a lei foi sendo ultrapassada pelos fatos - por todos os lados começaram a surgir empresas com forma jurídica de sociedade limitada, para a fruição de um só individuo, graças ao expediente da intervenção de 'testas de ferro'; por todos os lados se assistiu à conservação da forma social, mesmo depois de concentradas, nas mãos de um único associado, todas as quotas ou ações da sociedade".

Com a introdução do instituto em análise, na verdade, o legislador somente estará positivando uma situação que já existe no nosso mercado: a empresa explorada efetivamente por uma só pessoa que responde de forma limitada por suas obrigações.

Por todas essas razões, há muito a questão vem se discutido em diversos países, sendo objeto, inclusive, da XII Diretiva Comunitária da Comunidade Econômica Européia que reconheceu a "sociedade unipessoal" com responsabilidade limita- da no ambiente europeu como um instrumento de incentivo à pequena e média empresa, inserindo-a no programa comunitário de crescimento da ocupação.

Assim, resta analisarmos os argumentos contrários à introdução dessa figura na nossa legislação. As principais críticas podem ser sintetizadas em dois pontos: o primeiro é a possibilidade de separação de uma parte do patrimônio da pessoa natural para a exploração da empresa; p segundo é a forma que tal limitação adotaria, a possibilidade de personificação de um ente não coletivo.

Passaremos, então, a examinar tais pontos, partindo da realidade do empresário individual brasileiro e do tratamento a ele dispensado pela legislação vigente.

1. O problema da separação patrimonial

O patrimônio é um conjunto de bens. A idéia de patrimônio apresenta seu aspecto subjetivo e objetivo.

O aspecto subjetivo do patrimônio é o que o define como um conjunto de bens pertencentes a um sujeito de direito. A cada sujeito de direito deve corresponder um patrimônio.

O aspecto objetivo apresenta o patrimônio como um conjunto de bens que pode ser destinado a um fim econômico determinado. Daí a idéia de patrimônio geral e especial, que é o patrimônio afetado.

O conceito de separação patrimonial e afetação de parte de um patrimônio a um fim específico está intimamente ligado à idéia de limitação de responsabilidade do empresário.

Ocorre que, na concepção tradicionalmente concebida pela doutrina e legislação, um mesmo sujeito de direito não pode ser titular de dois patrimônios: um geral (particular) e outro especial (destinado à exploração da atividade).

Assim, inerente ao conceito de separação patrimonial está a criação de um novo

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sujeito de direito: a pessoa jurídica. É esse ente personificado que será titular do patrimonio afetado.

Este é um dos argumentos contrários à idéia de limitação de responsabilidade do empresário individual: como poderia ele, enquanto pessoa física, ser titular de dois patrimonios? E mais: tal possibilidade não teria caráter potencialmente fraudulento?

Em resposta à primeira questão apresentada podemos citar a posição de Silvio Marcondes Machado7 que não entende...

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