Uso lícito e ilícito de posição dominante no direito antitruste brasileiro

AutorMarco Aurélio Gumieri Valério
Páginas73-83

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1. Introdução

A Lei 8.884, de 11.6.1994 - a chamada "Lei de Defesa da Concorrência" -, não visa a coibir o poder de mercado em si, mas, sim, seu abuso. Assim, caracterizar a posição dominante é condição necessária mas não suficiente para a análise antitrus-te. É preciso discutir outros critérios pelos quais também se possa avaliar seu efetivo exercício.

Segundo Paula Forgioni a caracterização do poder econômico está associada à tradição da teoria econômica que delimita a competição como processo de formação de preços a partir de condições de procura e oferta nas quais os agentes econômicos, individualmente, não influenciam. Pressupõe-se, portanto, que a concorrência parte da ausência de poder de mercado.1

À primeira vista, essa constatação da autora embasaria o antitruste naquele modelo de mercado em que o poder econômico está ausente. É o caso de se coibir seu surgimento, bem como seu exercício. Entretanto, o desenvolvimento da análise econômica aponta circunstâncias nas quais a perda de bem-estar associada ao aumento de poder de mercado pode ser contrabalançada pela geração de eficiência nesse mesmo processo.

O trabalho, destarte, torna-se ainda mais complexo; afinal, não se trata do ato de identificar estruturas de mercado ideais, nem, tampouco, de proibir a existência do poder de mercado derivado de atos de concentração ou condutas, mas, sim, de analisar seus potenciais efeitos anticom-petitivos, comparativamente aos possíveis ganhos de eficiência por eles gerados. O que realmente importa são os efeitos líquidos sobre a eficiência econômica.

Essa afirmação decorre do objetivo central da norma, qual seja, reprimir o abuso de poder de mercado, porque ele é gerador de ineficiências; logo, não deve proibir atos ou condutas que causem ganhos de eficiência. Se o fizer, ocasionará ineficiências tão ou mais significativas que as que visa a combater.2

Partindo dessa mesma premissa, Maria Teresa Mello ressalta a necessidade de se aplicar critérios jurídicos que estabeleçam a distinção entre lícito e ilícito antitruste, que dêem conta dos elementos acima enumerados e permitam considerar efeitos diversos, positivos ou negativos,

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sobre concorrência e bem-estar, sopesando-os.3

O resultado dessa ponderação definirá a tênue linha divisória entre o permitido e o proibido.

Para essa análise pode-se sair por dois pontos de partida: (a) a chamada doutrina do abuso de direito, que pode ser em parte transportada para o abuso de posição dominante. A ilicitude, do ponto de vista antitruste, é caracterizada pelos efeitos de atos ou condutas sobre a concorrência. Tipifica-se como abusivo o uso de posição dominante; e (b) o denominado princípio da razoabilidade (rule of reason), elaborado pela jurisprudência norte-americana e incorporado aos julgados do Conselho Administrativo de Defesa Econômica/ CADE. É necessário desenvolver técnica de análise que, aplicada ao caso concreto, permita dar conta dos efeitos diversos potencialmente associados ao exercício do poder econômico.4

Cumpre ressaltar que tais formas de abordagem não são incompatíveis entre si. São complementares, como será demonstrado a seguir, neste artigo.

2. Posição dominante ou poder de mercado

O poder de mercado - ou, conforme a Lei de Defesa da Concorrência, a posição dominante - é a capacidade de um agente econômico, só ou em grupo de forma coordenada, aumentar preços, reduzir quantidades, diminuir qualidade ou variedade de produtos ou serviços ou, ainda, restringir inovações com relação aos níveis que vigorariam sob condições de concorrência, por período razoável de tempo, no intuito de aumentar seus lucros. Em outras palavras, é a habilidade para atuar independen-temente da performance de seus competidores.5

Segundo Maria Teresa Mello,6 são duas as variáveis consideradas na avaliação da probabilidade de seu exercício: (a) participação relativa da empresa no mercado (market-share). Parte-se da premissa de que a maior concentração de oferta implica maior probabilidade de colusão e, por conseqüência, de preços e lucros mais elevados. Assume-se que o poder de mercado é função crescente da concentração, já que a existência de pequeno número de concorrentes, ou sua desigualdade, favorece conluios tácitos ou implícitos, pelo menos entre líderes. Essa é uma aproximação precária, pois a concentração é condição necessária mas não suficiente para surgimento desse poder. Não há correlação garantida entre essas duas variáveis;7 e (b) barreiras à entrada, definidas como grau de dificuldade de acesso ao mercado por agentes econômicos não-estabelecidos. Trata-se de elemento fundamental na análise antitruste, não apenas para atos de concentração, como também para condutas. Apesar de não diretamente mensurável, a dificuldade imposta a novos entrantes é condição decisiva para avaliação do poder econômico. Na sua ausência torna-se impossível fixar preços acima dos custos de forma persistente e significativa, inviabilizando, assim, qualquer tentativa de seu exercício. O nível de barreiras à entrada

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num mercado concentrado - seja oligopólio, seja monopólio - é o principal instrumento de avaliação do poder de mercado das empresas que nele atuam.8

Na doutrina comumente se associam ao poder de mercado atributos como independência e ausência de riscos.

Para Luiz Fernando Schuartz, poder é uma relação de dependência e controle, no que está implícita a idéia de sujeição de alguns e domínio de outros. O detentor dessa posição "é aquela unidade produtiva que pode agir com certa independência relativamente ao comportamento esperado dos concorrentes; mas o comportamento esperado do detentor de poder, por sua vez, é variável fundamental nas decisões estratégicas destes concorrentes".9

No mesmo sentido, Paula Forgio-ni destaca que o agente retentor de poder econômico pode atuar de forma independente e com indiferença à existência ou comportamento dos outros. Não sofre, em momento algum, pressão de seus competidores, adotando práticas que evitaria caso houvesse concorrência. Ademais, outro fa-tor determinante no poder econômico é a ausência de riscos, já que, se abraçar uma estratégia de mercado equivocada, nenhum competidor virá tomar-lhe os clientes.10

Mello prefere destacar que essa concepção de poder, no entanto, deve ser tomada com cautela, pois em oligopólios não se pode falar em independência total de um agente em relação a outros.11

A Lei 8.884/1994 adotou como parâmetro uma medida de market-share. Assim, em vez de "poder de mercado", utiliza a expressão "posição dominante", concretizada no momento em que determinada empresa ou grupo controla parcela substancial do mercado relevante como vendedora, compradora, prestadora ou fi-nanciadora. Presume-se existente quando detiver, pelo menos, 20% desse locus.

Como sublinha Sérgio Bruna, esse parâmetro serve como presunção de posição dominante com o efeito prático de inversão do ônus da prova. Cabe, assim, à defesa apresentar e motivar a tese de que, apesar de deter parte de mercado igual ou superior a essa percentagem, outras variáveis fazem com que a empresa ou grupo não exerça poder de mercado - por exemplo, baixas barreiras à entrada.12

A existência de posição dominante é fundamental para a relevância de um caso do ponto de vista antitruste; porém, alguns autores levantam dúvidas quanto à sua essencialidade na caracterização de infra-ções à ordem econômica previstas na Lei 8.884/1994.

Luiz Fernando Schuartz defende que, para resolver esse impasse, deve-se partir da análise do art. 20, que define essas transgressões não como hipóteses de ações ou condutas, mas, sim, como suposições de fins ou efeitos que podem ser alcançados por meio de vários comportamentos, tipificados posteriormente no art. 21.13

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No elenco desses fins ou efeitos descritos nos quatro incisos do art. 20, dois deles - incisos II e IV - mencionam expressamente a posição dominante como pressuposto. Conclui-se que a detenção de poder de mercado é requisito para que um agente possa produzir o efeito de dominar mercado relevante de produtos ou serviços ou exercer de forma abusiva posição dominante, respectivamente.

Quanto aos outros dois incisos - incisos I e III - a posição dominante não aparece como condição. Isso leva a supor que um agente econômico, mesmo sem poder de mercado, possa limitar, falsear ou de qualquer outra forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa, ou aumentar arbitrariamente os lucros, conco-mitantemente.

Todavia, não se consegue entender as possibilidades e as condições de existência dessas condutas sem recorrer à análise econômica. Um agente sem poder de mercado que quisesse prejudicar a concorrência praticando a venda casada veria seus clientes deixarem de comprar seus produtos ou solicitar seus serviços para adquiri-los de seus competidores. Do mesmo modo, um agente sem poder de mercado que desejasse aumentar arbitrariamente os lucros, por meio da elevação de preços, perderia fregueses para concorrentes, de modo que essa alternativa não lhe seria vantajosa. A diminuição da demanda não compensa o aumento de preços.14

Destaca Maria Teresa Mello que outra interpretação plausível é a de que, uma vez que a lei não estabelece posição dominante como requisito explícito das infrações para hipóteses de prejuízo à livre concorrência e de aumento arbitrário de lucros, embora a existência dessa posição seja condição para que danos sejam provocados, seria dispensável sua prova para efeito de decisão. Esse, no entanto, não é o entendimento da SDE, que considera a existência de poder de mercado como critério de admissibilidade para promoção de averiguações preliminares e como indício à instauração de processos administrativos. O mesmo acontece por parte do CADE, que...

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