Considerações sobre o licenciamento compulsório de patentes: Enfoque sobre a licença compulsória por necessidade pública

AutorLeandro Benedetti Sbrissa - Ivan Arantes Junqueira Dantas Filho
Páginas128-140

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1. Introdução

A licença compulsória de patentes está prevista e delimitada pela Lei 9.279/1996, a chamada Lei de Propriedade Industrial/ LPI ou Código da Propriedade Industrial/ CPI. As hipóteses estão definidas na Se-ção III do Capítulo VIII, nos arts. 68 a 74. Crê-se que estes casos são taxativos,1 a despeito de genericamente abordados pelo legislador.

Os casos mais relevantes contemplados pelo referido diploma legal serão classificados em quatro classes: a licença compulsória por abuso de poder econômico, por não-uso ou exploração inadequada, por dependência de patentes e por emergência nacional ou interesse público.2

Esta última hipótese consiste no foco central a ser explorado, justamente porque sua interpretação de modo pouco criterioso pode gerar extrema instabilidade quanto à justa tutela do inventor e, em um segundo plano, desestabilizar a própria sistemática econômica prestigiada pela legislação.

Primeiramente serão explorados os fundamentos da propriedade industrial, já com ênfase para o caso específico das patentes.

Em seguida serão investigadas cada uma das classes de licenças compulsórias, adentrando-se o ambiente em que se encaixa a licença por emergência nacional ou interesse público, como categoria restrita.

Por fim, a conclusão será apresentada como produto do embate entre os diversos tipos de licença. Terá sido formada a visão dos autores acerca dos problemas atuais da licença compulsória, de sua melhor inter-

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pretação dentro da legislação específica e das alterações necessárias para que seu funcionamento esteja aberto a situações mais justas.

2. O trabalho de criação: o fundamento da concessão de patentes

É inerente e necessária ao Direito a proteção da liberdade humana, no que se insere a tutela das pessoas e, em decorrência, do produto de seu trabalho.

Na medida em que o exercício da faculdade de trabalhar é uma elementar manifestação da liberdade (excluída a hipótese de escravidão, em que não se defere opção ao escravo), o produto alcançado através deste exercício pertencerá ao trabalhador, pois de outra forma sua liberdade estaria sendo totalmente esvaziada, já que sugados todos os seus benefícios por um terceiro (aquele a quem fosse atribuído o resultado econômico ou patrimonial do labor).34 Não se pode imaginar liberdade quando seu exercício não possa reverter em favor da pessoa supostamente livre. Será, aí, exercício de obrigação, não mais de liberdade.

Neste sentido, o labor intelectual, como outro qualquer, há de necessariamente reverter em favor daquele que o exerce. Está aí o fundamento dos direitos conferidos ao criador de uma invenção.

A maneira como poderá o criador gozar da vantagem patrimonial alcançada com a invenção será, porém, balizada de acordo com as circunstâncias culturais de sua época e de sua situação geográfica.

O constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, interpretando o art. 5° da CF, assegura que mesmo diante do uso da expressão "privilégio temporário" o regime jurídico aplicado não deixa de ser de direito real, além de estar configurada situação acolhida como direito fundamental em sentido estrito: "De fato, inventos e criações espelham trabalho intelectual; ajustam-se a eles, sem hesitação alguma, as observações feitas sobre o direito fundamental de propriedade, que certamente os recobre. São direitos fundamentais material e formalmente falando, de um modo ou de outro vinculando-se à eminente dignidade do ser humano".5

Vem de um desenvolvimento histórico o consenso, traduzido nos textos legais, de que a adequada retribuição ao criador de uma novidade científica, decorrente de atividade inventiva, e suscetível de aplicação industrial, reside na concessão de um privilégio temporário para sua exclusiva exploração econômico-comercial.

Se, por um lado, tal privilégio, a que se chama patente, concretiza aquela retribuição necessária, por outro, garante, após certo prazo, dada sua natureza efêmera, intensa fruição pela sociedade da conquista científica alcançada por algum de seus membros (o inventor), o qual, para tanto, fez uso do acervo de conhecimentos que esta mesma sociedade lhe ofereceu.

Ademais, o próprio período de exclusividade de exploração conferido ao titular da patente, a despeito de resultar em verdadeiro monopólio, tem, de um ponto de vista de utilidade econômico-social, uma repercussão francamente positiva. Tal aspecto utilitário, a despeito de insuficiente para fundamentar o instituto das patentes, bem revela a eficiência do modelo.

A situação de monopólio normalmente é encarada pelos economistas como um

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ônus, uma situação de ineficiência com graus variáveis de acordo com as circunstâncias.6

Entretanto, nos casos envolvendo direitos de propriedade industrial, dadas as suas repercussões relativamente ao desenvolvimento científico-tecnológico, a teoria econômica abona a suposta ineficiência, como que pondo de lado aquilo que assevera quanto aos malefícios do controle de preços por poucos agentes.

O cerne deste aparente dilema está no maior benefício gerado pela garantia do "monopólio" que pela imposição de medidas geradoras de mais concorrência.7 O incentivo à criatividade e ao investimento em pesquisa e tecnologia é a contrapartida vislumbrada pelos economistas:

"A patente oferece aos investidores o direito exclusivo de beneficiar-se de suas invenções por um período limitado de tempo. A patente oferece, pois, uma espécie de monopólio limitado. Tal proteção à patente visa a encorajar a inovação. Na ausência de um sistema de patentes, é provável que tanto as pessoas quanto as empresas não se dispusessem a investir muito em pesquisa e desenvolvimento, uma vez que as descobertas que fizessem seriam copiadas pelos concorrentes. (...).

"A vida longa para a patente tem como benefício o encorajamento da inovação e como custo o incentivo ao monopólio. A vida 'ótima' de uma patente é o período que equilibra esses dois efeitos conflitantes.

"O problema de determinar a duração ótima de uma patente foi examinado por William Nordhaus da Universidade de Yale. (...).

"Nordhaus descobriu que, para a maioria das invenções, uma duração de patente de 17 anos era em termos brutos 90% eficiente - significando que alcançava 90% do excedente do consumidor máximo possível. Com base nesses dados, não parece haver motivo para se efetuarem mudanças drásticas no sistema de patentes."89

O sistema de patentes, de concessão de privilégios temporários de exploração, como forma de tutela da criação inventiva, não exclui, porém, modos diversos de se ordenar as coisas, que possam mostrar-se mais idôneos diante de circunstâncias fá-ticas anormais.

Pode ocorrer de o privilégio estar sendo exercido de maneira abusiva ou inadequada por seu titular. Pode acontecer também de não estar sendo exercido. É igualmente possível que seu exercício dependa da utilização de invento de outrem. E, por fim, pode não ser razoável a manutenção de sua exclusividade diante de alguma necessidade social que recomende que terceiros possam também explorar a invenção. Em situações tais, a concessão ou manutenção do privilégio poderá resultar inadequada, seja por ofender direitos de terceiros, seja

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por implicar entrave ao funcionamento da economia, seja por medir-se desproporcional diante de certa contingência da sociedade.

Perceba-se que, como regra, fica garantida ao inventor a exploração exclusiva, em que pese a ser temporária, de sua invenção. Pela concessão de patentes houve por bem a sociedade tutelar o esforço aplicado no trabalho de invenção. Não é de outro modo que se manifestou o constituinte pátrio ao dispor, no inciso XXIX do art. 5° da Carta Magna, que "a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização (...), tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país".

Como há a concessão de um privilégio bastante vantajoso, um "ônus" econômico, sua aprovação necessita de uma análise criteriosa: "Portanto, sabendo-se que a concessão de um monopólio implicará a restrição da liberdade de iniciativa de terceiros, o procedimento administrativo deverá obedecer aos princípios da publicidade dos atos administrativos, de ampla defesa e do contraditório, todos contidos no princípio maior do devido processo legal".10

Se o privilégio exclusivo é a regra, restritamente devem ser encaradas as exce-ções, vez que fogem à fórmula vislumbrada como a mais adequada para a proteção do criador. Não obstante admitidas as ex-ceções, é certo que não poderão elas fulminar completamente os direitos a que faz jus o inventor por sua criação. Assim fosse, se ignorada a retribuição devida, os próprios fundamentos que justificam a regra seriam quebrados, e invadida restaria a própria esfera de liberdade do criador - o que é inadmissível em um ordenamento que se proponha protetor das liberdades públicas e dos direitos individuais, em especial da liberdade e da propriedade.11

Passa-se, pois, ao estudo de tais ex-ceções.

3. A licença compulsória

Ao titular da patente a lei confere o direito de exploração exclusiva. Este fato não impede que ele, no exercício da autonomia individual, sendo de seu interesse, ceda ou compartilhe com terceiros tal exploração.

Ao acordo de vontades pelo qual o titular da patente confere a terceiro direito de exploração do invento dá-se o nome de contrato de licença.

Por derivação, chamam-se de licença compulsória as hipóteses em que, mediante o preenchimento de certos requisitos exigidos por lei, que indicam a conveniência ou necessidade de se afastar o regime de...

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