Uma Análise da (in)Constitucionalidade da Proibição Legal da Liberdade Provisória na Lei de Tóxicos: um Breve Panorama a Partir dos Precedentes dos Tribunais Superiores

AutorMarcelo Marcante Flores - Raccius Twbow Potter
CargoAdvogado criminalista. Mestre em Ciências Criminais e especialista em Ciências Penais (PUC/RS) - Advogado criminalista. Mestre em Ciências Criminais e especialista em Ciências Penais (PUC/RS)
Páginas75-81

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O presente artigo aborda a (in)constitucionalidade da proibição legal à concessão de liberdade provisória prevista no art. 44 da Lei de Tóxicos, à luz dos princípios constitucionais inerentes ao Estado Democrático de Direito, sobretudo após a alteração ocorrida na Lei dos Crimes Hediondos. Nesse sentido, procura-se demonstrar a inaplicabilida-de dos argumentos utilizados por parte da doutrina e pelos precedentes juris-prudenciais que defendem a constitu-cionalidade do dispositivo em apreço, em razão da previsão constitucional de inafiançabilidade dos crimes hediondos (art. 5o, XLIII). Por fim, a partir da análise de diversos precedentes juris-prudenciais, mostra-se que não há uma posição consolidada em qualquer sentido, o que configura um reflexo desses diferentes posicionamentos.

1. Considerações iniciais

O tráfico ilícito de entorpecentes é constantemente escolhido como um dos principais motores da criminalidade na sociedade contemporânea1, sendo muito comum a sugestão da existência de uma forte ligação entre crimes violen-tos (como homicídio e roubo) e as drogas. Nesse contexto, percebe-se, ainda, certa influência do sensacionalismo mi-diático na política criminal de drogas contemporânea. Destes aspectos decorrem sucessivas publicações de leis penais que buscam uma maior repressão a essa espécie de criminalidade.

Escohotado ensina que a sociedade faz uso do expansionismo penal para combater um inimigo comum: "as drogas". Trata-se de uma ameaça que reúne capitalistas e comunistas, cristãos e ateus, ricos e pobres, todos unidos em uma cruzada pela saúde mental e moral da humanidade. Essa guerra desenfreada favorece a tendência geral das legislações penais sobre as drogas de afastar-se dos princípios gerais de direito, pois: requer intervenção do exército em tarefas civis, presunção de culpa ao invés de inocência, validação de mecanismos de indução ao delito, suspensão da inviolabilidade do domicílio sem ordem judicial, quebra de sigilo bancário etc.2

De fato, um dos aspectos que normalmente se verifica no texto dos diplomas legais, que são publicados com objetivos de trazer maior repressão a determinados tipos de crimes, é a vedação a priori da concessão da liberdade provisória. No Brasil, desde a publicação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), surgiu uma grande discussão, na doutrina e na jurisprudência, sobre a (in)constitucionalidade da vedação legal do direito à liberdade, em razão do princípio constitucional da presunção de inocência.

Especificamente com relação aos crimes previstos na Lei 11.343/06 (Lei de Tóxicos), o art. 44 reafirmou o conteúdo da redação original da Lei dos Crimes Hediondos, no sentido de que estes delitos são insuscetíveis de liberdade provisória. Entretanto, com advento da Lei 11.464/07, que alterou a Lei 8.072/90, a vedação à liberdade provisória para os crimes hediondos foi retirada do ordenamento jurídico.

Essas mudanças legislativas demonstram a importância de ainda se discutir a matéria, que está longe de ter uma solução definitiva e apresenta grandes divergências na jurisprudência. É muito comum a existência de decisões judiciais que determinam prisões preventivas ou negam pedidos de liberdade com base nessa vedação legal. O presente artigo busca, à luz dos princípios constitucionais, abordar de maneira crítica esta proibição genérica da concessão de liberdade provisória, fazendo alusão à forma como os tribunais superiores têm enfrentado a temática em seus julgados.

2. A vedação legal da concessão de liberdade provisória na lei de tóxicos: a sucessão no tempo de leis atinentes à matéria e o enfrentamento constitucional

A repressão à criminalidade organizada e, principalmente, ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins tem movido os organismos internacionais, extrapolando os limites da soberania da maioria dos países. Um grande número de países, inclusive, já assinou e ratificou tratados e acordos internacionais

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relativos à matéria, razão pela qual se verifica grande influência desses organismos internacionais nas diretrizes da política criminal internacional, que estabelecem como paradigma a experiência norte-americana de cunho bastante pu-nitivista3

A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 5o, inciso XLIII, aderiu a esse modelo de política criminal repressiva, sobretudo em se tratando dos crimes de tóxicos, ao estabelecer que "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os crimes definidos como hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem".

Seguindo a linha estabelecida pela Constituição Federal, o Congresso Nacional aprovou a Lei dos Crimes Hediondos, a qual não definiu um conceito a "crimes hediondos", mas elencou vários crimes que deveriam ser considerados como tal. A redação original desta legislação trouxe inúmeras inovações de caráter repressivo (e com constituciona-lidade bastante discutível), como o regime integralmente fechado e a vedação legal à concessão da liberdade provisória (especificamente no artigo 2o da Lei 8.072/904).

No caso do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, esta proibição veio a ser reiterada pela Lei 11.343/06, que, além estabelecer o aumento de penas para os crimes ali previstos, reafirmou a vedação legal apriori do direito de responder ao processo em liberdade. Então, a partir deste momento, a proibição genérica para os crimes de tóxicos estava prevista tanto na lei geral (lei dos crimes hediondos) como na lei especial (lei de drogas).

Analisando a legislação pertinente, verifica-se que a vedação legal constante no art. 44 da Lei 11.343/06 estipula que os crimes tipificados nos artigos 33, caput e § Io, e 34 a 37 são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos. Portanto, a interpretação literal do artigo é no sentido de que não cabe a liberdade provisória nos crimes de tráfico de entorpecentes, associação para o tráfico, associação para o financiamento do tráfico, financiamento e custeio do tráfico, bem como a colaboração como informante de grupo, organização ou associação.

Esse cenário, contudo, foi alterado com o advento da Lei 11.464/07 (vigente desde 29 de março de 2007). Essa modificação legislativa suprimiu do artigo 2o, inciso II, da Lei 8.072/90 a expressão "liberdade provisória". Como se vê, houve uma sucessão no tempo de leis processuais que possuem aspectos materiais, ou seja, deve-se observar que lei posterior revoga a lei anterior naquilo que for incompatível. Essa revogação pode ser expressa ou tácita; no caso, a interpretação acerca da abrangência da Lei 11.464/07 deve ser no sentido de que o artigo 44 da Lei 11.343/06, embora seja lei especial, foi revogado implicitamente pela referida alteração na Lei dos Crimes Hediondos.

Para Rangel, a supressão da expressão "liberdade provisória" do texto do inciso II do artigo 2o da Lei 8.072/90 significa que não se permite outro entendimento senão a possibilidade de concessão de liberdade provisória nesses casos. Até porque, seria um verdadeiro retrocesso social, em pleno Estado Democrático de Direito, aceitar-se a vedação legal à liberdade provisória5. Conforme ensina Luis Flávio Gomes: "quisesse o legislador perpetuar a restrição prevista na Lei de Drogas (artigo 44), optando, portanto, por um tratamento diverso e mais rigoroso, o teria feito expressamente"6.

Nesse sentido, ressalta-se que qualquer interpretação em sentido contrário se dá ao arrepio do princípio da isono-mia, pois proibir a concessão de liberdade provisória somente nos casos de tráfico de entorpecentes (e não para outros delitos elencados na Lei 8.072/90, muitos deles com penas mais graves e que atingem bens jurídicos mais relevantes, como a vida humana, por exemplo) acarreta um problema de coerência interna na legislação penal infraconsti-tucional. Isso porque o legislador acaba por criar uma nova modalidade de crime "mais que hediondo" ou "supra-hedion-do"7.

Renato Marcão, membro do Ministério Público do Estado de São Paulo e autor de obra sobre a Nova Lei de Drogas, destaca que o art. 44 foi definitivamente derrogado com a mudança legislativa ocorrida. Para ele, a vedação antecipada e genérica ao benefício da liberdade provisória não subsiste no ordenamento jurídico vigente, estando "encerrada a discussão"8

Bizzotto, Rodrigues e Queiroz além de aderirem ao entendimento de que houve revogação da vedação da liberdade provisória prevista na Lei 8.078/90 pela Lei 11.464/07, acrescentam que mesmo que houvesse legislação posterior que viesse a novamente vedar a liberdade provisória, tal não passaria pelo crivo constitucional. É que a defesa da interpretação extensiva, aplicando-se a proibição da fiança à liberdade provisória, é contrária ao sistema jurídico, pois a legislação ordinária é que deve se adaptar à Constituição e não o contrário. Deste modo, se o poder constituinte não restringiu a liberdade provisória, a legislação ordinária, fruto de efeitos sociais momentâneos, não pode atropelar garantias conquistadas em várias gerações9

Thums e Pacheco, por sua vez, referem que a proibição da liberdade provisória é um ranço autoritário do legislador que não pode ser aceito10. Nessa linha, importante fazer menção ao ensinamento de Goldschmidt no sentido de que os princípios da política processual penal de uma nação denotam as diretrizes adotadas pela política estatal. Logo, a estrutura do processo penal é o termômetro dos...

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