Lex mercatoria e Governança: A Policontexturalidade entre Direito e Estado

Autor1. Leonel Severo Rocha - 2. Cícero Krupp da Luz
Cargo1. Doutor pela EHESS-Paris. Professor Colaborador do programa de pós-graduação – Mestrado em Direito da URI - 2.Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, com bolsa CNPq. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Unisinos
Páginas73-97

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Introdução

A teoria da relatividade transformou o conceito de tempo absoluto para um conceito que leva em consideração o observador que está medindo3. DestePage 74modo, o tempo é um problema da sociedade. Isto gera a hipercomplexidade. O tempo para adquirir sentido nos diferentes sistemas sociais necessita de operações referencialmente mais redundantes. Assim, a globalização desempenha um importante papel na remontagem do tempo e na reprodução de informações, altamente dinâmicas, fazendo com que as tradicionais formas de construir o mundo não possam ser aplicadas sem ressalvas.

Isto acarreta a exigência de que as comunicações sejam auto-referenciadas e os sistemas mais indeterminados autopoieticamente. A autopoiese constrói uma possibilidade de autoreferência que explica o Direito ao reintroduzir o paradoxo de sua fundamentação lógica. O Direito é auto-observação, autodescrição, e por fim, autopoiese. A reentrada (re-entry) do código jurídico permite o sistema se estruturar de forma autônoma, permitindo um processamento da complexidade visando à sua redução, mas com a compensação de estar mais isolado e indeterminado. Só o Direito pode dizer o que é o Direito. Nasce o paradoxo.

Nesse contexto, verifica-se a emergência de uma lex mercatoria e de governança. A lex mercatoria se constrói sem a fundamentação da estutura dogmática tradicional voltada a uma estrutura hierárquica com uma Constituição no topo. A governança aparece como um novo modelo político dirigido a dar conta das necessidades da hipercomplexidade. A insuficiência da efetividade do Direito está refletida na impossibilidade de o Estado conseguir acompanhar todas as novas esferas sociais de maneira presente, fazendo com que a sociedade civil deva participar a partir de esferas políticas, pressionando e remontando o modelo de administração que contemple novos acoplamentos com outros sistemas da sociedade.

Logo, para essa redução da crescente complexidade da sociedade como um todo, é necessário a introdução de novos conceitos, como o de policontexturalidade. A policontexturalidade é a introdução da pluralidade a partir da contextura, isto é, possibilidades que transcendem a binariedade, por exemplo, entre privado/público e Estado/nação, proporcionando surgimento de formas “imprevistas” que complementam determinada função social. A distinção hierárquica tradicional da legislação (política) e a aplicação (jurídica) cederia lugar a uma multiplicidade hierárquica de ordens jurídicas estruturalmente atreladas a outros subsistemas sociais.

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1. Policontexturalidade e hipercomplexidade
1. 1 Defasagem temporal, globalização e hipercomplexidade

Para uma sociedade diferenciada funcionalmente, o tempo torna-se uma síntese de sentido simbólica, muito importante, já que a hipercomplexidade está vinculada fortemente com o conceito de globalização. Essa, por sua vez, se caracteriza principalmente pela alta dinamicidade de informações e tecnologia, vislumbrando a necessidade de respostas epistemológicas condizentes com a sua própria temporalidade e devida sofisticação. “As mudanças que afetam a operação de determinação do tempo tomam uma direção específica quando as sociedades incorporam um número cada vez maior de indivíduos e quando se orientam para uma crescente diferenciação funcional”.4 Para essa orientação, são utilizados referenciais de sentido, próprios de cada sistema social, que se dão exclusivamente dentro do tempo.

A teoria da relatividade de Albert Einstein utiliza-se do princípio de tempo e espaço proporcionais de Isaac Newton. Isto revela que onde há uma concentração de matéria muito alta, um corpo ao passar por perto com uma velocidade incrivelmente grande, como a velocidade da luz, o espaço irá se curvar. Mas para o espaço se curvar é preciso que o tempo se curve também. Portanto, percebe que o tempo pode ser dilatado em contraponto com o espaço contraído. Sempre que um corpo está mais rápido que o outro, o tempo para o primeiro irá passar mais devagar - quanto mais rápido se anda menos tempo passa.5

Essa concepção de tempo permite fazer percepções quanto a diferentes níveis de tempo que se desenvolvem em cada sistema social. Isto é, o sistema social da economia realiza suas próprias operações numa velocidade incrível: as principais bolsas de valores adquirem reações praticamente físico-psíquicas em relação a, por exemplo, escândalos de corrupção na política ou faturamentos falsos de megainvestimentos internacionais. Enquanto isso, o sistema social da religião, com uma abertura cognitiva muito menor, isto é, bem mais voltada para a operação própria (repetição) já estabelecida, por exemplo, pela Bíblia, leva muito tempo a produzir diferença.

O Direito é um mecanismo de controle do tempo, tendo sua existência vinculada ao tempo. O tempo constrói a sociedade. A sociedade, por sua vez, constrói o tempo. E, contudo, o Direito é operacionalizado de maneira predominante por uma racionalidade analítica, entendendo-se como fato social, isto é, regulandoPage 76toda decisão futura com o passado.6 A cada tomada de decisão, o Direito, entendido dessa forma, superestima o horizonte temporal do passado. Essa superestima do passado é a consulta imediata em toda tomada de decisão preponderantemente a legislações, jurisprudências, doutrina, ou melhor, a decisões que já de alguma forma foram tomadas anteriormente, isto é, fontes do passado.

Na pós-modernidade, a sociedade passa a ter uma noção de tempo instantânea, uma noção de tempo rápida, uma noção de tempo manifestada pelos meios de comunicação, pela informática e pela internet, e os juristas continuam no texto escrito, no Código, na Constituição. Ou seja, há uma defasagem intensa entre a noção de tempo, a noção de sociedade na dogmática jurídica e o que é sociedade hoje. Assim, há um terrível paralelismo temporal, pois os juristas programam normas para durarem anos, e elas não duram, às vezes, dias.7

Ao regular decisões futuras com o passado, não se produz diferença, e portanto, passado e futuro serão uma linha contínua de repetições. Destarte, tomando decisões que não produzem diferença, não se produz tempo, produzindo entre o Direito e a sociedade uma defasagem temporal. Essa defasagem caracteriza, por conseqüência, uma crise institucional que não tem como encaminhar decisões para questões centrais da sociedade: danos ambientais futuros, clonagem, transgênicos e internet e gerar “novos Direitos”.

Portanto, o Direito não vem observando sua defasagem temporal, não conseguindo corresponder efetivamente às demandas sociais, isto é, aos problemas relacionados ao tempo e, conseqüentemente, incapaz de superar os atuais desafios propostos pela sociedade, portanto estará fadado à progressiva diminuição de efetividade e poder, colocando em risco a sua sobrevivência.8 Desse modo, na globalização as decisões têm que ser tomadas de maneira urgente, mais rápidas, dificultando a idéia do questionamento, que tem que ligar o passado, e, ao mesmo tempo, desligar o passado, de ligar o futuro e, ao mesmo tempo, desligar o futuro, tentando com que o Direito ainda ocupe esse papel.9

A hipercomplexidade da sociedade surge justamente nessa dinâmica entre sociedade e globalização, com os reflexos temporais, na tentativa de uma observação sobre algum sistema social. E por isso a defasagem temporal é tão importante paraPage 77a explicação da hipercomplexidade, pois a observação sobre o observador, sobre o sistema não se dá de forma simétrica, dificultando as racionalidades e funcionalidades de convergirem operativamente.

Podemos compreender que esse problema se dá justamente entre o binômio operação-observação, onde a observação da sociedade se dá de forma hipercomplexa. Só é possível observar o Direito em relação à Política ou à Economia, de um outro plano, preferencialmente nem o econômico, nem o político ou tampouco o jurídico, precisa ser de um plano sociológico. Esse movimento para “fora” duplica a complexidade. A hipercomplexidade da sociedade é conseqüência da tentativa de convergir novamente horizontes que se perderam, como o Direito e a Política, através da sociedade, pois assim se pode perceber o porquê das imensas dificuldades desses sistemas ao continuar sua trajetória autopoiética.

O outro lado da observação é a operação. “Puesto que toda observación sólo se pude realizar en la forma del operar fáctico (aquí: del comunicar), es en este nivel donde acontece la clausura operativa del sistema de la sociedad con la posibilidad de formaciones estructurales evolutivamente divergentes.”10 Sendo a observação hipercomplexa, qual seria a operação comunicativa? Como os sistemas podem se comunicar com dupla complexidade? A reposta da pergunta precisa necessariamente passar pelos paradoxos para chegarmos à policontexturalidade. Apenas compreenderemos a dificuldade de encontrarmos a diferença se questionarmos onde está o Direito e o Estado, ou melhor, como podemos entender um Direito e um Estado numa hipercomplexidade que não confere validade recíproca tradicionalmente aceita.

1. 2 Paradoxos Autofundantes

A literatura, assim como outros ramos das artes, tem essa nobreza de poder dizer o que não se diz e, por isso, ser tantas vezes inacessível a quem não se lança como observador de segunda ordem. O paradoxo não existe em si mesmo, ele é a forma que possibilita a distinção da sociedade. E desde sua primeira distinção entre sistema e ambiente, resta nesse momento um paradoxo: ora apenas o sistema determina seu próprio sistema e diferenciação com o ambiente. A negação dos paradoxos se reflete...

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