Lex mercatoria e homogeneização jurídica

AutorRogério Emilio de Andrade
Cargo1Professor Universitário, Doutor em Filosofia do Direito/USP, Mestre em Direito Econômico/Mackenzie e Advogado da União
Páginas259-279
ANDRADE, R. E. de. 259
Rev. Ciênc. Juríd. Soc. UNIPAR, v. 18, n. 2, p. 259-279, jul./dez. 2015
LEX MERCATORIA E HOMOGENEIZAÇÃO JURÍDICA
Rogério Emilio de Andrade1
ANDRADE, R. E. de. Lex Mercatoria e homogeneização jurídica. Rev. Ciênc.
Juríd. Soc. UNIPAR. Umuarama. v. 18, n. 2, p. 259-279, jul./dez. 2015.
RESUMO: Uma vez que os limites da economia ultrapassam os limites dos Es-
tados, faz-se a separação entre Estado nacional e economia global. O direito não
permanece incólume em relação a essa diferenciação, na medida em que, i) de
um lado, recebe inuência da pretensão espacial global da economia, que rompe
com seus laços locais e, ii) de outro lado, fornece os elementos que permitem à
técnica e à economia exercerem sua pretensão de constituição de uma vontade
planetária homogênea. Nesse contexto, a Lex Mercatoria, compreendida como
versão normativa dessa vontade planetária homogênea, fornece os instrumentos
normativos à soberania econômica por meio da homogeneização jurídica dos
comportamentos econômicos globais.
PALAVRAS-CHAVE: Ambivalência Jurídica; Direito em Rede; Direito Homo-
gêneo; Lex Mercatoria; Rede de Governo; Tecnodireito; Tecnoeconomia.
INTRODUÇÃO
A sociedade pós-industrial é uma sociedade sem fronteiras, na qual os
mercados são internacionais e os agentes econômicos tendem a evitar os contro-
les estatais. É também uma sociedade na qual a economia tende a superar qual-
quer fragmentação política e tem pretensões normativas universais. Este objetivo
é atingido por meio da criação não política do direito, cuja produção é fomentada
sob a força do poder técnico e econômico.
No plano das relações econômicas internacionais, a lei que apresen-
ta característica meta-nacional, cujo alcance pretende adequar-se ao espaço dos
mercados globais, é a Lex Mercatoria: terminologia usualmente utilizada para
designar o direito criado pela classe empreendedora sem interferência do Estado
e que objetiva a homogenização e estabilização de expectativas relacionadas aos
comportamentos dos agentes econômicos, além de reduzir o nível de interferên-
cia dos poderes públicos sobre as atividades econômicas.
Nesse sentido, a Lex Mercatoria, dentro de um mundo onde os merca-
dos estão politicamente divididos em vários estados, tem por função se sobrepor
DOI: https://doi.org/10.25110/rcjs.v18i2.2015.5857
1Professor Universitário, Doutor em Filosoa do Direito/USP, Mestre em Direito Econômico/Ma-
ckenzie e Advogado da União.
Lex Mercatoria e homogeneização...
260
Rev. Ciênc. Juríd. Soc. UNIPAR, v. 18, n. 2, p. 259-279, jul./dez. 2015
a diversidade legal criada pela divisão política dos Estado-Nação, difundindo
internacionalmente as práticas contratuais no mundo dos negócios, usos comer-
ciais e parâmetros de câmeras internacionais de arbitragem, criando, assim, um
corpo regulae iuris que a comunidade comercial é induzida a observar sobre a
base da expectativa de que, em caso de disputa, essas regras irão nortear a solu-
ção e composição do conito2.
No presente texto, amplio o campo de abrangência do conceito de Lex
Mercatoria com forte na matriz interpretativa do direito homogêneo, o qual se
constitui por força das necessidades colocadas pela técnica e pela economia –
tecno-economia -, ressaltando aspectos da harmonização e uniformização global
do direito por meio de estruturas jurídicas em rede, cuja a pretensão de validade
se estende para além da Societas Mercatorum.
Neste texto, contextualizo a questão da percepção do tempo e espaço na
contemporaneidade para, em seguida, inferir sua reexibilidade na compreensão
do direito e da soberania estatal, utilizando-me de quatro linhas argumentativas:
i) vontade planetária homogênea; ii) estrutura jurídica em rede; iii) ambivalência
jurídica; e iv) soberania econômica. Argumentos que evidenciam a inuência da
técnica e da economia na interpretação e decisão jurídica e, consequentemente,
fazem premente a necessidade de acompanhar e compreender os uxos econômi-
cos e técnicos pelos quais passam as relações de poder que determinam o direito
que hoje se faz.
VONTADE PLANETÁRIA HOMOGÊNEA
A modernidade age de forma que atua para desacoplar o espaço do tem-
po, possibilitando as relações entre outros ausentes, localmente distantes e sem
necessidade de interação face a face. Assim, os lugares se tornam, de certa forma,
fantasmagóricos, uma vez que os locais acabam por ser inteiramente forjados
e penetrados por inuências sociais que deles se encontram distanciados. Ora,
nessas condições, a forma ou estrutura do local já não é apenas o que está pre-
sente, ou seja, em cena, mas, também, as relações distantes que determinam sua
natureza.
É notório, hoje, que as condições de desencaixe proporcionadas pelas
economias monetárias modernas são imensamente maiores do que qualquer civi-
lização em que existia dinheiro, uma vez que o dinheiro em si mesmo tornou-se
independente dos meios pelos quais é representado, porquanto assume a forma
de pura informação (moeda escritural armazenada como números em uma base
de dados)3. Por isso, uma das formas mais características de desencaixe da época
2GALGANO, 1995.
3“É errada a metáfora de ver o dinheiro, como faz Parsons, em termos de meio de comunicação cir-

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT