Lesões corporais praticadas no futebol e seus reflexos criminais

AutorManoel Francisco de Barros da Motta Peixoto Giordani
Páginas75-83

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1. O desporto à luz da constituição e do direito penal

A atual Constituição Federal da República Federativa do Brasil – chamada de “Constituição Cidadã” – possui interessantes preceitos que mantém estreita ligação com a prática desportiva, vejamos:

– o super-princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, previsto no art. 1º, inciso III;

– os que dizem com os objetivos da República, como a construção de uma sociedade justa e solidária, que vise erradicar a pobreza e a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais, como também a promoção do bem de todos;

– ainda, como um direito social, na medida em que promove a educação, a saúde e o lazer.

– também o art. 217, que prevê que “É dever do

Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados”, inclusive com “a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do des-porto de alto rendimento”, inciso II, além do § 3º, que estabelece que “o poder público incentivará o lazer, como forma de promoção social”. Evidente, destarte, que o desporto é tratado (ou ao menos deveria ser, segundo a Lei Maior) como uma forma de inclusão social, um meio de lazer e também de saúde, que possibilite a busca por uma melhor qualidade de vida e uma forma de educação. Entretanto, quando se sai do texto constitucional e se enxerga o cotidiano, se percebe que os poderes públicos deixam a desejar, na parte que lhes toca, no particular. Atuando como Delegado de Polícia do Estado de São Paulo, em uma área que possui algumas comunidades carentes, resta evidente a necessidade de uma maior presença e atuação estatal, em diversos setores. No que atine com as questões acima indicadas, basta diligenciar em uma comunidade carente, em qualquer dia da semana, a qualquer hora do dia, que se nota que as crianças e adolescentes que nela vivem precisam de um novo e mais demorado olhar do Estado e da sociedade, para que não fiquem relegadas à própria sorte. Não há o incentivo à prática desportiva, o que, certamente, contribuiria, sobremaneira, para o desenvolvimento da cidadania e para a educação – retirando essas crianças da visibilidade dos traficantes, promovendo o bem-estar, a saúde etc.

Posto isto, e diante da evidente importância do desporto no contexto social, não se pode aceitar que o futebol (e o esporte como um todo) se torne um meio de degradação física e da saúde corporal, o que será objeto do presente trabalho, que busca tratar das questões que gravitam ao redor das lesões produzidas quando da prática desportiva e eventual responsabilização criminal.

2. A violência desportiva e seus reflexos criminais

Há mais de uma faceta criminal intimamente ligada ao gênero “violência desportiva”. Neste sentido, vale exemplificar com questões bastante atuais e que são enfrentadas há tempos, como as brigas envolvendo torcidas organizadas (entre elas e dentro das próprias torcidas), que trazem diversos reflexos no âmbito penal, tais como os homicídios, lesões corporais, danos ao patrimônio, rixa, uso e tráfico de entorpecentes, porte de

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armas de fogo, lavagem de capitais, apostas e manipulação de resultados e outros.

Ademais, considerando o alto nível em que se desenvolve o desporto profissional nos dias atuais, a problemática de ofensas a integridade física e saúde corporal merecem atenção e análise especial, e é o que se tratará neste trabalho, sem a pretensão de exaurir o tema, mas como uma singela contribuição ao seu estudo.

Assim, embora o desporto, de maneira geral, e o futebol, no particular, e o direito penal possam parecer distantes num primeiro momento, íntima é essa relação, e quanto a isso, oportuna a lição de Albin Eser, lembrada por Leonardo Schmitt de Bem1: “sem embargo, ainda que persigam fins diferentes apresentam elemento comum: a luta pela vitória, naquele como vitória de uma representação menor, neste como triunfo da justiça”.

2.1. Tipicidade formal e material (e o princípio da insignificância)

A tipicidade, um dos elementos do fato típico, deve ser analisada sob dois aspectos: formal e material.

Tipicidade formal é o mero enquadramento da conduta ao tipo penal descrito pelo legislador, isto é, a mera subsunção entre a conduta praticada pelo agente no mundo real e a previsão abstrata daquele comportamento como crime.

De acordo com o professor Cleber Masson2, “é a operação pela qual se analisa se o fato praticado pelo agente encontra correspondência em uma conduta prevista em lei como crime ou contravenção penal. A conduta de matar alguém tem amparo no art. 121 do Código Penal. Há, portanto, tipicidade entre tal conduta e a lei penal”.

Já a tipicidade material se revela na lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal em razão da prática da conduta descrita na lei.

Ainda do professor Cleber Masson, colhe-se o seguinte ensinamento: “a tipicidade material relaciona-se intimamente com o princípio da ofensividade (ou lesivi-dade) do Direito Penal, pois nem todas as condutas que se encaixam nos moldes abstratos e sintéticos de crimes (tipicidade formal) acarretam dano ou perigo ao bem jurídico. É o que se dá, a título ilustrativo, nas hipóteses de incidência do princípio da insignificância, nas quais, nada obstante a tipicidade formal, não se verifica a tipicidade material3.

No que diz respeito aos casos em que pode haver a incidência do princípio da insignificância, nota-se, que a tipicidade formal é incontestável. Porém, no que diz respeito à tipicidade material, os estudiosos sustentam que não foi preenchida, tendo em vista a inexistência de efetiva lesão em detrimento do bem jurídico tutelado pela norma penal. Como é cediço, à luz dos princípios que regem e norteiam as ciências penais contemporâneas, a intervenção do Direito Penal só é legítima e se justifica quando a tipicidade penal apresenta as duas faces supracitadas. Este princípio, também conhecido como delito de bagatela, cuida de causa supralegal de exclusão da tipicidade material, desenvolvida pelo jurista alemão Claus Roxin, e possui ampla aceitação doutrinária e jurisprudencial, consubstanciando instrumento de justiça e de razoabilidade. Aliás, o Supremo Tribunal Federal já trouxe em diversas oportunidades, os requisitos para incidência do referido princípio: mínima ofensividade da conduta, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressiva da lesão jurídica.

Destarte, para a configuração da tipicidade penal, exige-se a presença simultânea da tipicidade formal e da tipicidade material.

Ademais, insta consignar que referido princípio, via de regra, é valorado diante de crimes contra o patrimônio. Não obstante, já foi aceito e utilizado como razão de decidir no caso em que um militar, depois de injusta provocação, desferiu um único soco contra outro militar, o que caracterizaria, ao menos em tese, o crime previsto no art. 209, do Código Penal Militar. Veja-se:

Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL. LESÃO CORPORAL LEVE [Art. 209, § 4º, DO CPM]. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE.

1. O princípio da insignificância é aplicável no âmbito da Justiça Militar de forma criteriosa e casuística. Precedentes.

  1. Lesão corporal leve, consistente em único soco desferido pelo paciente contra outro militar, após injusta provocação deste. O direito penal não há de estar voltado à punição de condutas que não provoquem lesão significativa a bens jurídicos relevantes, prejuízos relevantes ao titular do bem tutelado ou, ainda, à integridade da ordem social. Ordem deferida.4

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Assim, tem-se que o princípio da insignificância
pode ser utilizado para justificar a atipicidade da conduta, em especial diante de lesões corporais de pequena monta, haja visto que o bem jurídico tutelado tem
que ter sofrido uma ofensa juridicamente apreciável e
relevante.

2.2. A violência no desporto

Diversos fatores podem contribuir para o desencadeamento da violência no desporto de forma geral, mas o presente trabalho ficará limitado à violência ocorrida no futebol profissional, onde, via de regra, o esporte é praticado por jogadores maiores e capazes.

Muitos fatores externos e internos influenciam, de maneira muito acentuada, no desempenho individual de cada atleta: a título exemplificativo, externamente, podemos citar a cobrança das torcidas, do treinador, dos dirigentes, da família, da imprensa, do patrocinador; internamente, por sua vez, o atleta enfrenta questões de ordem pessoal, como o seu grau de instrução (o futebol é um dos esportes mais democráticos do país – se não for o mais!), o nível social de sua família (muitos jogadores são de origem extremamente humilde e acabam se tornando responsáveis pela manutenção e subsistência de toda uma família), a busca da tão sonhada e citada independência financeira. Esses e outros fatores influenciam diretamente na possibilidade da prática de violência corporal no futebol e eventual responsabilização, seja de ordem administrativa, cível e penal.

Além dos aspectos acima citados, a identificação de uma conduta penalmente relevante na prática desportiva passa, necessariamente, pela natureza, modalidade e riscos advindos daquele determinado esporte.

Leonardo Schmitt de Bem, refere que penalistas (entre nós, Capez, Fernando. Consentimento do Ofen-dido e Violência Desportiva. Reflexos à Luz da Teoria da Imputação Objetiva. São Paulo...

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