Lesões Corporais

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas247-291

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9.1. Conceito e espécies

O objeto de proteção na incriminação das lesões corporais é a integridade anatomofisiopsíquica do ser humano. Esta objetividade jurídica está implícita no próprio tipo legal delitivo (n. 1.5), que lhe estende a tutela inclusive na fase embrionária ou intrauterina

(v. n. 8.9, in fine). Em certos casos, é possível concluir pela falta de tipicidade da ofensa à incolumidade física alheia em decorrência do princípio da insignificância, a caracterizar um delito de bagatela (v. n. 1.5).

Anibal Bruno define o crime de lesão corporal como qualquer alteração desfavorável produzida no organismo de outrem, anatômica ou funcional, local ou generalizada, de natureza física ou psíquica643.

No art. 129, caput, do diploma penal apresenta-se o tipo exemplar e fundamental do crime, a reger - como única forma autônoma do delito, exceção feita à modalidade culposa - as demais espécies existentes, quais sejam, as lesões corporais qualificadas pelo resultado, que são peculiaridades do delito exclusivamente na sua modalidade dolosa

(v. n. 9.12) e estão consagradas nos par. 1º, 2º e 3º, do CP. As lesões corporais qualificadas pelo resultado nada mais representam senão a própria lesão corporal incriminada no caput do dispositivo, da qual derivam. Ao tipo reitor e básico a lei acrescentou, simplesmente para assinalar um estigma de maior reprovabilidade ao crime e sem qualquer alteração no seu título, sequelas ou consequências do próprio evento do delito. Estas se apresentam com conotação meramente casual na anatomia do crime. Denotam efeitos mais gravosos do próprio resultado do delito, tomados em consideração naquilo que excedem ao necessário para a configuração jurídica do crime. São circunstâncias simplesmente acidentais que aderem ao crime básico, já constituído, sem qualquer modificação na sua qualidade, e unicamente emitem reflexos na sua quantidade punitiva.

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As formas de lesão corporal previstas nos par. 1º e 2º do CP foram reunidas sob a rubrica lesões graves. Doutrina e jurisprudência, no entanto, distinguem essas modalidades de lesões em lesões graves (§ 1º) e lesões gravíssimas (§ 2º). Isso em razão do tratamento penal conferido ao crime em cada um destes setores. O quadro recrudesce e se acentua, qualitativa e quantitativamente, do § 1º para o § 2º, em função da intensidade do dano produzido. Daí a distinção, que é ditada pela diversidade e dicotomia que essas lesões apresentam na reprimenda estabelecida (v. n. 9.9). Alberga ainda o § 3º a contemplação do homicídio preterdoloso, ou seja, da lesão corporal que causa a morte da vítima como uma consequência não desejada pelo agente, porém previsível (lesão corporal seguida de morte).

Aquilata-se do exposto que a diferença entre as modulações dolosas do crime de lesão corporal promana exclusivamente do resultado que a ofensa produzir. O resultado, sob esta perspectiva, é o marco divisor das espécies do crime. Sob esse aspecto, chega-se ao conceito da lesão corporal leve pela exclusão de suas formas qualificadas, mediante critério eminentemente negativo. Será leve toda e qualquer lesão corporal que não se encartar nos par. 1º, 2º e 3º do CP, ou seja, a lesão que não trouxer qualquer daqueles resultados que a lei tomou em consideração como motivo de maior reprovabilidade do crime. Como ressalta Anibal Bruno, o resultado da lesão leve pode até não ser tão leve assim, pode, inclusive, ser particularmente importante, mas não produzir nenhum daqueles eventos que a faria classificar como grave (ou gravíssima - acrescentamos)644.

Em seguida, o Código Penal cuidou da lesão corporal privilegiada (§ 4º, art. 129), da substituição de pena (§ 5º, art. 129) e, finalmente, somente agora instituindo tipo delitivo dotado de autonomia e transmudando o título de sua punição, previu a lesão corporal de índole culposa, com suas qualificadoras (par. 6º e 7º), e a possibilidade, em certos casos, de aplicação do perdão judicial (§ 8º). Contemplou ainda o diploma penal, para o agravamento da pena da lesão corporal dolosa, o fato de o crime decorrer de violência doméstica (par. 9º e 10º), ser perpetrado por milícia privada (§ 7º na forma remetida ao § 4º, do art. 121), ter como vítima pessoa menor de 14 ou maior de 60 anos (§ 7º na forma remetida ao § 4º, do art. 121) ou portadora de deficiência (§ 11).

9.2. Ação e meios executivos

Núcleo do tipo do crime de lesão corporal é ofender. Significa atingir a integridade corporal alheia. Vale dizer: ferir outra pessoa ou causar-lhe um mal físico ou à saúde

(v. n. 1.5).

Crime de forma livre, o delito apresenta maneira de execução indiferente. Desse modo, a ofensa à incolumidade corporal alheia pode dar-se por qualquer forma. Só é preciso que o meio tenha idoneidade para a produção do mal almejado, sem o que tomará configuração o crime impossível.

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Quer o sujeito ativo atue diretamente contra a vítima, por valer-se do próprio corpo (socos, pontapés, mordidas etc.) ou de instrumentos contundentes ou cortantes (pedradas, pauladas, golpes de faca, tiros etc.), quer atue indiretamente, por atrair a vítima a local em que será ferida por animal ou qualquer meio mecânico, quer seja o meio de que ele se vale físico (exemplos citados), químico (culturas de germes, líquidos corrosivos, venenos etc.), térmico (ação das chamas, do calor, frio etc.), radiativo (aplicação de raios alfa, beta ou gama), elétrico (eletroplessão) ou mesmo psíquico (incutimento de pânico ou terror, de choque emocional intenso de molde a atingir ou prejudicar a saúde do ofendido: conturbação psíquica, vômitos etc.), configura-se o crime.

O elemento nuclear expresso no art. 129 do CP foi elaborado para a captação de ações ativas, vale dizer, condutas que se realizam com desprendimento de energia e fisicidade, que pressupõem a movimentação física e corpórea do agente no mundo exterior para a concreção do seu propósito. Daí a natureza comissiva do crime, a exigir ato de militante hostilidade física, ato de violência ou o uso da força muscular para a realização da conduta, em suma, um fazer algo de forma positiva e dinâmica para atingir a incolumidade alheia, o que se verifica, inclusive, pelo meio psíquico ou moral (susto, incutimento de pânico etc.).

Nada impede, entretanto, a figura comissiva por omissão, uma vez existente o dever jurídico de impedir o evento lesivo. Anibal Bruno ilustra a hipótese com a situação daquele que tem o dever de assistência e vigilância sobre outrem e não o cumpre, deixando de fornecer-lhe, com o desígnio de atingir a sua integridade corporal ou a saúde, os alimentos necessários, o socorro médico ou os medicamentos de que precisa, com a consequência de dano à incolumidade645.

Ação e ato não se confundem, posto seja o ato um simples momento da conduta, mera parte ou fragmento dela. Como a ação incriminada admite, no desenvolvimento do processo executivo, a fragmentação em diversos e sucessivos atos, o crime de lesão corporal tem natureza plurissubsistente. Desta sorte, sem o delito perder a sua unidade, é perfeitamente possível ao sujeito ativo provocar o resultado num só gesto ou em movimentos repetidos. Nesse passo, não denota qualquer importância para desintegrar a unidade do crime que a ofensa à integridade física se dê por meio de uma sequência sucessiva de atos (pontapés, socos, pauladas, pedradas etc.) distribuídos em partes diferentes do corpo da vítima, a provocar-lhe múltiplas lesões com localizações diversas (na cabeça, tórax, membros etc.). Sendo única a vítima, com violação igualmente única ao bem jurídico penalmente tutelado, único é o crime, única também será a sanção, desde, é translúcido, que o fato se dê num só processo de atividade. Nesta situação, o episódio não se fragmenta em tantos crimes e tantas penas quantos tenham sido os atos e ferimentos. O concurso de crimes somente se perfará se, no mesmo contexto agressivo, o agente atingir mais de uma pessoa (concurso formal próprio ou impróprio, na dependência da unidade ou pluralidade de desígnios - art. 70, CP), porque então

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haverá mais de um bem jurídico tutelado atingido, ou se, persistindo em atingir o mesmo ofendido, o sujeito ativo o fizer em momentos diferentes, interpondo-se um hiato, uma interrupção ou solução de continuidade entre os primeiros movimentos agressivos e os ulteriores, denotando estes últimos uma retomada da atividade delituosa (concurso material - art. 69, CP - ou crime continuado - art. 71, CP).

9.3. Sujeitos do delito

O crime de lesões corporais tem natureza comum, pelo que, por ostentar capacidade delitiva ampla e aberta, por não limitar o círculo da autoria, conclui-se que qualquer pessoa pode cometê-lo e nele figurar na posição de sujeito ativo, bastando realizar o implemento físico da ação incriminada.

Sujeito passivo será aquele que teve a...

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