A leitura literaria forma bons juizes? Analise critica da obra "Justica Poetica".

AutorBotero-Bernal, Andres
CargoResena de libro

Introducao

Primeiramente, este texto resgata e amplia a apresentacao feita no Segundo Congresso Internacional de Argumentacao Juridica, realizado no Mexico, nos dias 16, 17 e 18 de novembro de 2011 (1). E dizer, o texto que agora se apresenta amplia varios paragrafos, atualiza a bibliografia, desenvolve melhor alguns argumentos e, enfim, melhora a apresentacao do que ja foi publicado. Isto posto, este texto indaga sobre a funcao que a literatura poderia exercer na formacao de futuros advogados em geral e de juizes em particular. Nao obstante, pelo carater do projeto de investigacao que da suporte a este trabalho, assim como os planos academicos do evento no qual ele foi apresentado (2011), nos centraremos no juiz, sem negar que muito do que aqui se diz pode se estender a formacao dos juristas.

Em segundo lugar, o que afirma Nussbaum para que mereca esta analise critica? Esta autora, em "Justica Poetica" (obra de 1995 (2), ainda que, deva se dizer, muitas dessas ideias ja se vislumbravam em outros escritos anteriores da renomada autora (3) e continuam em textos posteriores (4)), assinala, de maneira geral--os detalhes se darao ao longo da analise--, que a literatura faz do juiz um bom ser humano no interior do modelo democratico e, ademais, lhe fornece ferramentas significativas para melhorar seu oficio, recuperando, portanto, o advogado da fria forma na qual e formado pelo cientificismo e utilitarismo (5). Agora, superando a vagueza do que acabo de dizer, em que medida esta proposta pode suportar criticas? Quao confiavel e esta proposta? Estas sao as perguntas que tentaremos responder ao longo do texto. Mas antes, ha que se deixar claro que perguntar pelas condicoes de possibilidade isto e, fazer critica--de uma proposta, implica, desde o inicio, tomar distancia do acostumado ato de genuflexao da academia juridica latino-americana face aos escritos estadunidenses; nao obstante, tal distancia nao leva necessariamente a rechacar abertamente as ideias, e tampouco sua autora. Isso porque, este texto e um exercicio de critica, no sentido kantiano (de pedir credenciais para apurar uma ideia) a uma proposta--tambem critica (6)--da ordem juridico-moral. Entao, este exercicio critico, em verdade, parece desafiar uma teoria com a finalidade de que ela possa dar o melhor de si, depurando-se aspectos duvidosos e fortalecento-se aquilo que se mantem frente as suspeitas. Logo vera o leitor que nao despedacamos uma autora que admiramos, mas pedimos a ela que esclareca varias partes de sua obra.

Entretanto, o que queremos deixar claro e que uma proposta, ao menos nao a partir do que entendemos ou queremos entender por jusfilosofia, nao depende da autoridade de quem a propoe, ainda que, sejamos sinceros, essa autoridade (como a que rodeia a Nussbaum) quando e conquistada pelos meritos do escrito, de fato e um bom indicio de seriedade. Porem, insistimos, uma proposta passa a ser seguida (se e que nos permite o uso desta nova metafora de convencimento) se pode resistir e responder as analises exaustivas do interprete. E e isso a que nos proporemos agora: estender a teoria da autora para ver o que se mantem, a partir de nossa perspectiva, independentemente de quao boas nos parecam, prima facie, suas ideias. Assim, se o leitor nao compartilha desta pretensao inicial, ou se ja tem uma postura fixa sobre nosso tema, o melhor e que feche o texto e busque coisas mais amaveis e construtivas aos seus olhos, porque se nao podemos convencelo ou se ele nao se deixa convencer, nao nos enganemos, sera apenas tempo perdido.

Em terceiro lugar, e importante esclarecer que, para facilitar a tarefa ao leitor hispano-americano, optamos por seguir a versao traduzida (7), a qual nos reportaremos de agora em diante, citando entre parenteses a pagina a qual aludimos o referido texto. Contudo, em alguns pontos concretos, para solucionar duvidas sobre a intencao original da autora e verificar a traducao, teremos que nos referir ao texto em ingles.

Em quarto lugar, usaremos, como e facil notar, a primeira pessoa do plural. Essa e uma forma de deixar claro que todo conhecimento, em especial este, e fruto particular e relativo, que compromete o horizonte dos autores de uma indagacao concreta. Neste sentido, apesar de tudo que foi dito sobre a intencionalidade do conhecimento em face de algo (como em Brentano e Husserl (8), dois exemplos historicos) que ja poe em duvida qualquer pretensao de um ato cognitivo puro, universal e objetivo, tudo e uma construcao e, portanto nao ha nada definitivo. Entao, este texto e uma construcao de um "nos", que abriga ao autor e seus mundos, assim como aos auxiliares da investigacao e aos colegas com os quais dialogou e que, em alguma medida, deixaram sua marca neste texto. Nao obstante, apesar do "nos" que implica uma reflexao plasmada nestas paginas que transcende o solipsismo, a responsabilidade recai, exclusivamente, em apenas um. Criacao coletiva e responsabilidade individual.

Em quinto lugar, devemos agradecer, em primeiro lugar, a equipe de investigacao: Sebastian Blandon-Tamirez, Quevin Estiven Zapata e Jose David Fernandez, todos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de Medelin. Igualmente aos meus queridos colegas que, em especial a Ramon Narvaez (Mexico), pelos continuos dialogos sobre literatura e direito, me deram boas ideias, as quais de uma forma ou outra, ficaram plasmadas neste texto. Obrigada a todos.

  1. Assumir a pergunta pela relacao entre moral, direito e literatura

    Se conferimos alguma credibilidade a Heidegger, uma boa maneira de iniciarmos uma investigacao e assumir inicialmente a pergunta ela mesma, em sua radicalidade epistemologica (9). Neste sentido, a pergunta que nos atrai tem varios indicios que devem ser enfrentados desde o inicio. Iniciemos, pois, com a pergunta mesma: a leitura de textos literarios forma bons juizes? Isto supoe, primeiro, indagar por que a literatura e qual tipo de literatura, para logo, ao longo do texto, descobrir a radicalidade da formacao moral que justifica perguntarmos pelos melhores caminhos que conduzem a ela.

    Segundo nossa autora, a leitura literaria, entendida esta ultima como expressao artistica, tem seu valor de formacao, questao ja amplamente investigada entre os gregos (paideia) (10). E e justamente a formacao adequada, o paradigma que atravessa quase a totalidade da obra desta autora, na medida em que ela acredita que uma educacao humanista e cosmopolita dos cidadaos facilitaria a convivencia nas sociedades plurais contemporaneas, alem de permitir, no futuro (11), a melhor realizacao do ideal democratico (12), pois "nenhuma democracia pode ser estavel se nao conta com o apoio dos cidadaos educados para esse fim" (13). Enfim, ha ali uma proposta educativa que funda outra de carater politico, ancorada em um projeto moral que se vale do recurso artistico, pois "as artes cumprem uma funcao dupla nas escolas e universidades: por um lado, cultivam a capacidade de jogo e empatia em modo geral, e, por outro, focam nos pontos cegos especificos (o do mal estar social) de cada cultura" (14).

    Neste ponto e que entra a literatura. E claro que, se entendemos bem a autora, ela nao e a unica que tem capacidade de formacao:

    Enquanto ao cinema, a critica recente nos demonstrou de forma convincente que alguns filmes tem potencial para realizar contribuicoes similares as que atribuo as novelas. E se poderia argumentar que em nossa cultura, ate certo ponto, o cinema teria substituido a novela como "o" meio narrativo moralmente serio mas de muita popularidade. Creio que isso desmerece o continuo poder da novela, e procederei a falar sem reservas da novela como forma viva. Entretanto nao sou relutante a admitir que o cinema tambem pode contribuir similarmente a vida publica (p. 31) (15). Nao obstante, a literatura, segue nossa autora, se erige como uma melhor maneira de atribuir "sentidos normativos a vida" (p. 26), na medida em que, citando Aristoteles: "a arte literaria ... e 'mais filosofica' que a historia, porque a historia se limita a mostrar 'o que aconteceu', enquanto que as obras literarias nos mostram 'as coisas como poderiam acontecer' na vida humana" (p. 29), de forma que a literatura, diferente da narrativa historica ou o ensaio cientifico, consegue perturbar de melhor maneira, e, por tanto, de dotar de ferramentas morais o leitor (p. 30) (16). Inclusive, a literatura se constitui como uma ferramenta de formacao melhor que a filosofia, tanto que "determinadas verdades sobre a vida humana somente podem se mostrar apropriadas e precisamente na linguagem e nas formas caracteristicas da narrativa artistica" (17)

    Dentro da literatura, a autora se centra na novela: "a novela e uma forma viva de ficcao que, alem de servir de eixo da reflexao moral, goza de muita popularidade em nossa cultura" (p. 31) (18). Assim, a literatura e o genero artistico por excelencia, e a novela, hoje em dia, nas culturas estadunidense e europeia, e o genero literario por antonomasia. E a novela, segundo a obra, tem grandes vantagens, a saber:

    Ate agora falamos de caracteristicas que a novela compartilha com muitos outros generos narrativos: seu interesse pela individualidade das pessoas e a irredutibilidade da qualidade a quantidade, sua afirmacao da importancia do que acontece com os individuos deste mundo, seu empenho em descrever os feitos da vida a partir de uma perspectiva externa de distanciamento--como se fossem os atos e movimentos de pecas mecanicas--senao a partir de dentro, como investidos da complexa significacao que os seres humanos atribuem a suas proprias vidas. A novela procura descrever a riqueza do mundo interior mais que outros generos narrativos, e mostra um maior compromisso com a relevancia moral de seguir uma vida em todas as suas peripecias e seu contexto concreto. Nesta medida se opoe ainda mais profundamente que outros generos ao reducionismo economico; esta mais comprometida com as distincoes qualitativas (60-61) (19). Porem, seguindo...

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