Lei n. 13.103/15 e a inconstitucionalidade dos novos dispositivos de duração do trabalho dos motoristas profissionais

AutorGabriela Costa e Silva
Páginas11-29

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Introdução

Todos os anos, noticiários e veículos de comunicação em massa destacam o crescente número de acidentes nas rodovias brasileiras. As causas são as mais diversas, passando pela negligência e imprudência dos condutores até causas naturais e defeitos mecânicos nos veículos utilizados.

No entanto, destacamos que muitos destes infortúnios são causados por condutas humanas que poderiam ser evitadas caso houvesse integral respeito das partes à legislação trabalhista, principalmente no que tange às normas de saúde e segurança, e mais especificamente às normas de duração do trabalho.

Assim, a problemática se instaura quando se percebe que tais condutas, não só são praticadas pelo empregador, mas também passam a ser acobertadas pelo próprio sistema legal através da edição de diplomas

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normativos que acabam por flexibilizar direitos dos trabalhadores, operando em retrocesso no âmbito do ordenamento jurídico pátrio.

Por isso é que se faz necessária a provocação do Supremo Tribunal Federal na condição de órgão exercente do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos do Poder Público a fim de extirpar do ordenamento jurídico alterações legislativas que venham a reduzir os parâmetros mais benéficos conquistados por legislação anterior que já tivesse condão de instituir normas trabalhistas visando à saúde e integridade física dos trabalhadores, nos termos do art. 7a, XXII da CFRB.

1. Lei do descanso - da edição à supressão

A Lei n. 12.619, conhecida como Lei do Descanso, teve por objetivo regulamentar o exercício da profissão de motorista. Ela foi promulgada em abril de 2012 pela Presidência da República, passando a vigorar no ordenamento jurídico a partir de 16 de junho de 2012, tendo adicionado ao corpo da Consolidação das Leis de Trabalho os arts. 235-A a 235-H, e ao Código de Trânsito Brasileiro os arts. 67-A a 67-C.

Segundo seu art. 1a, parágrafo único, a aplicação da referida lei dirigia--se àqueles que integram a categoria dos motoristas profissionais de veículos automotores cuja condução exigisse formação profissional, sendo que suas atividades deveriam ser exercidas mediante vínculo empregatício na área de transporte rodoviário de passageiros ou de cargas2.

Entre os direitos trabalhistas específicos do motorista profissional previa:

Art. 2-, V - jornada de trabalho e tempo de direção controlados de maneira fidedigna pelo empregador, que poderá valer-se de anotação em diário de bordo, papeleta ou ficha de trabalho externo, ou de meios eletrônicos idóneos instalados nos veículos, a critério do empregador.

As normas implementadas representaram um tratamento diferenciado para os motoristas no que se refere à duração de seu trabalho, sendo este um regime mais benéfico do que as regras gerais trabalhistas em virtude do alto grau de risco envolvido na atividade. Sendo assim, a legislação trazia

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uma série de conceitos aplicados à atividade da categoria, destacando-se os seguintes:

  1. Trabalho efetivo: tempo que o motorista estiver à disposição do empregador, excluídos os intervalos para refeição, repouso, espera e descanso (art. 235-C, § 2a, CLT)

  2. Jornada diária: aquela estabelecida na Constituição Federal (máximo 8 horas), podendo ser flexibilizada mediante acordo ou convenção coletiva (art. 235-C, caput, CLT);

  3. Jornada extraordinária: admitida a prorrogação da jornada diária por até 2 horas extraordinárias (art. 235-C, § 1a, CLT)

  4. Sistema de compensação: permitido se houver previsão em instrumentos de natureza coletiva, observadas as disposições da CLT (art. 235-C, § 6a, CLT)

  5. Intervalo intrajornada: mínimo de 1 hora para refeição (art. 235-C, § 3a, CLT). Este intervalo poderia ser fracionado quando realizado entre o término da primeira hora trabalhada e o início da última hora trabalhada, concedidos intervalos para descanso menores e fracionados ao final de cada viagem, desde que houvesse previsão em instrumento coletivo e os intervalos não fossem descontados da jornada.

  6. Repouso diário: 11 horas de repouso a cada 24 horas (art. 235-C, § 3a, CLT)

  7. Descanso semanal: 35 horas (art. 235-C, § 3a, CLT)

  8. Tempo de espera: horas que excedessem à jornada normal do motorista que ficar aguardando a carga ou descarga do veículo, ou para fiscalização da carga em barreiras fiscais ou alfandegárias, não sendo computadas como horas extraordinárias, mas sendo indenizadas com base no salário-hora normal acrescido de 30%. (art. 235-C § 8a CLT)

  9. Viagens de longa distância: aquelas em que o motorista permanece fora da base da empresa, matriz, ou filial e de sua residência por mais de 24 horas. (Art. 235-E CLT). Nesses casos:

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- Intervalo mínimo de 30 minutos de descanso a cada 4 horas de direção ininterrupta.

- Intervalo mínimo de 1 hora para refeição (pode coincidir com o intervalo de descanso)

- Para o transporte de cargas que compreendam viagens com duração superior a 1 semana o descanso semanal será de 36 horas por semana trabalhada (fracionável por 30+6) e seu gozo se daria no retorno do motorista à base (matriz ou filial) ou em seu domicílio, ressalvado o oferecimento de condições adequados noutro lugar.

Aquelas regras, portanto, tinham por intuito, além da melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores motoristas profissionais, a redução no número de acidentes de trânsito nas rodovias brasileiras, que no ano de 2011, segundo dados da Polícia Rodoviária Federal somaram 188.925 ocorrências em todo o país3.

Acontece que, desde sua edição, a lei foi muito criticada pelo âmbito empresarial, pois representava um grande impacto em seus interesses económicos. Nesse sentido, esforços foram envidados para a derrubada do novo diploma legal, sendo que a primeira grande derrota do novo sistema foi a revogação da Resolução n. 405/2012 do CONTRAN que regularizava o art. 67-A do CTB dispondo sobre a fiscalização do tempo de direção do motorista profissional.

A perda da eficácia imediata deste dispositivo introduzido no Código de Trânsito Brasileiro foi instrumentalizada pela Resolução n. 417/2012 do CONTRAN, que revogou aquela primeira, estipulando a suspensão por 180 dias das ações fiscais pertinentes até que houvesse publicação de Portaria Interministerial listando as rodovias federais que já tivessem "ponto de parada" como descrito na Lei n. 12.619/12.

A questão foi discutida no âmbito da Ação Civil Pública de n. 0002295-26.2012.5.10.0021 cuja sentença declarou a nulidade da Resolução n. 417/2012 por entender que o CONTRAN in casu agiu fora do âmbito de sua competência, além de a norma em questão ter estabelecido ato enunciativo

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de efeito concreto que violava frontalmente a Lei Federal n. 12.619/12, já vigente ao tempo da edição do ato normativo.

Assim, fundamenta a Magistrada do Trabalho prolatora do decisum, Martha Franco de Azevedo:

Apreciando o pedido de antecipação de tutela (fls. 206/208), acatei o pedido do autor. Considerei que a plausibilidade do pedido é encontrada na alegação de que a resolução acaba por frustrar a eficácia da Lei n. 12.619/2012, em vigor desde junho de 2012, no momento em que implicitamente suspende a fiscalização punitiva, o que implica em restrição de sua própria vigência, postergada por norma hierarquicamente inferior, caracterizando seus efeitos concretos, o que se denota pela documentação acostada à inicial, mormente às fls. 191/194 e 195/196. Em se tratando de lei federal que trata da saúde e segurança no âmbito da atividade de transporte rodoviário de passageiros e cargas, a proteção perseguida compreende direitos do trabalhador em atividade que há muito vem apresentando altos índices de acidente, dados os riscos e a forma como a atividade é desempenhada, o que se confirma pelas próprias estatísticas trazidas aos autos, com resultados extremos de morte e consumo de drogas ilícitas pelos motoristas rodoviários, para suportar as elevadas jornadas.4

Ainda assim, a resolução anulada teve sua eficácia restabelecida pela Resolução n. 437/2013 do CONTRAN em razão de decisão judicial obtida em sede do Mandado de Segurança n. 000046-34.2013.5.10.0000, que reverteu o entendimento inicial do Tribunal sobre a matéria.

Alegando não haver condições para o cumprimento das determinações estabelecidas pelo diploma legal, o núcleo empresarial investiu em diversas outras tentativas para reduzir o valor do frete e baratear seus produtos em detrimento da exaustão dos motoristas.

Assim é que, os especialistas da área de logística lançaram argumentos defendendo que a Lei n. 12.619/12 deveria ter um prazo maior para aplicação, advogando até mesmo em favor da alteração de seus dispositivos.

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Nesse sentido, citamos a seguinte nota emitida por Revista AgroAnalysis, da Fundação Getúlio Vargas:

Existem algumas dificuldades para as empresas aplicarem 100% da nova legislação. A principal é a falta de locais e postos de paradas para cumprir os horários de parada de descanso obrigatório. Os postos de combustíveis (pontos de vendas de combustível), além de não ter capacidade para atendera demanda necessária, também são obrigados a acolher caminhões parados, simplesmente com o intuito de cumprir a Lei. [...] A jornada de trabalho foi baseada na legislação de trânsito do Chile, que é de 8 horas. Aqui, ficou em 11 horas. Nem no aconchego da nossa casa, conseguimos descansar esse tempo todos os dias, imagine o motorista no leito do caminhão. O resultado é bebida, jogo e prostituição.5

Os apelos da bancada ruralista fizeram-se ainda mais fortes e no final do mês de fevereiro de 2015 foram realizadas diversas paralisações em estradas por todo o país. Segundo os boletins de notícia, o protesto era "contra a alta dos preços dos combustíveis, dos pedágios e dos valores dos tributos sobre o transporte"6. No entanto...

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