A Lei de Anistia Brasileira e o Caso da Guerrilha do Araguaia Diante das Decisões do Supremo Tribunal Federal e da Corte Internacional de Direitos Humanos

AutorMarcia Rabelo
Páginas123-135

Page 123

Introdução

Vários países da América do Sul e, recentemente, o Brasil enfrentaram o embate judicial interno e externo sobre a possibilidade de processar e julgar os agentes públicos, que praticaram violações graves e sistemáticas dos Direitos Humanos durante o período de ditadura militar.

Nos últimos anos, no Brasil, buscou-se a responsabilização, civil ou criminal, de alguns dos protagonistas da política de repressão patrocinada pela ditadura militar brasileira (1964-1985). No âmbito interno, temos duas ações judiciais importantes, que questionaram a Lei de Anistia (Lei n. 6.683/1979), que foi criada ainda no período da ditadura. São elas: o Caso Gomes Lund e outros, contra o Brasil, também conhecida como Guerrilha do Araguaia, também julgado no âmbito internacional perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

A outra é a ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 153, proposta pelo Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de controle abstrato de constitucionalidade.

Antes de adentrar ao caso da Guerrilha do Araguaia, cabe ressaltar que, em relação ao Direito Internacional dos Direitos Humanos no Brasil, a Constituição Federal de 1988 foi omissa a respeito da posição hierárquica dos tratados e convenções internacionais.

No ano de 2004, com o advento da Emenda Constitucional (EC) n. 45, se previu que os tratados e convenções internacionais sobre Direitos Humanos, que forem aprovados em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais (art. 5º, § 3º). Como exemplo, o tratado introduzido nos moldes da EC n. 45/2004 é a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 2007, e promulgados pelo Decreto n. 6.949/2009.

No entanto, não se normatizou como ficariam os tratados e convenções de Direitos Humanos an-

Page 124

teriores à EC n. 45/2004 e que já foram ratificados pelo Brasil, ou seja, não passaram por esse procedimento de status de Emenda Constitucional, cabendo, assim, ao Supremo Tribunal Federal manisfestar, a exemplo do Pacto de São José da Costa Rica1, para saber se esses tratados e convenções serão considerados de hierarquia constitucional, infraconstitucionais ou até mesmo supraconstitucional.

O plenário do STF julgou em 2008 três processos concernentes à prisão do depositário infiel, prevista no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal2, pelas ações: Habeas Corpus (HC) 87.585/ TO, publicado no DJE n. 118, Recurso Extraordinário (RE) n. 349.703/RS e RE 466.343-1/SP publicados no DJE n. 104, relativo à compatibilidade entre a ordem brasileira e o Pacto de São José da Costa Rica.

O STF firma o entendimento jurisprudencial de que os tratados de Direitos Humanos que não forem abrangidos pela EC n. 45/2004 encontram-se em posição supralegal, mas infraconstitucional, ou seja, acima da lei, todavia, abaixo da Constituição.

Contudo, o STF, nos julgados acima mencionados, considerou ilegal a prisão civil para o depositário infiel, mantendo-a nos casos de não pagamento de pensão alimentícia, visualizando, assim, a contradição ao seu próprio argumento de que, para esses casos, os tratados e convenções de Direitos Humanos seriam infraconstitucionais, visto que considerou ilegal uma prisão civil, cuja previsão se encontra no texto Constitucional, e não em lei ordinária, o que demonstra, nesse caso, em particular, a supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de Direitos Humanos.

Existe corrente que advoga nesse sentido, onde os tratados internacionais de Direitos Humanos, uma vez incorporados no sistema jurídico brasileiro, são dotados de hierarquia supraconstitucional. Um dos defensores dessa corrente e o brasileiro Celso Albuquerque de Mello (2000, p. 123), onde explicita que o Estado é sujeito de Direito Interno e de Direito Internacional, não se pode conceber que ele esteja submetido a duas ordens jurídicas que se chocam, devendo o Estado sujeito de direito das duas ordens jurídicas dar primazia ao Direito Internacional.

Observa-se que a Corte Suprema Brasileira (STF) tem proferido decisões confusas e controversas no tocante aos Direitos Humanos e, em consequência, tem recebido condenações no âmbito do Direito Internacional, comprometendo a imagem do Brasil no plano externo.

1. O direito internacional
1.1. Relação entre Direito Interno e Internacional

O direito como um todo se subdivide em direito interno e direito internacional, onde temos o primeiro tratando das relações jurídicas no interior do sistema jurídico nacional e o segundo, as relações entre diferentes sistemas internacionais.

Questão bastante complexa é o que diz espeito ao conflito entre normas internacionais e o direito interno de cada Estado. Há grandes debates entre as posições monistas e dualistas.

Segundo Caparroz (2012, p. 50/51), a corrente monista defende que o Direito Internacional e o direito interno são manifestações do mesmo sistema jurídico, portanto, pertencentes a um modelo unificado, no qual o conflito de normas deve ser resolvido com a aplicação das regras interpretativas clássicas.

O monismo, em suas várias facetas, pode nos conduzir a três possibilidades: a) prevalência do Direito Internacional sobre direito interno (monismo radical) - é a posição adotada pela Convenção de Viena, ao estabelecer, no art. 27, que um país não poderá invocar as disposições de seu direito inter-no para justificar o inadimplemento de um tratado;

  1. primado do direito interno sobre o internacional: posição minoritária, se aproxima do dualismo, pois reconhece que as normas internacionais se submeteriam à força do direito nacional, o que seria equivalente a reconhecer, na prática, duas ordens jurídicas distintas; c) equivalência entre as normas internas e internacionais (monismo moderado ou estruturado): posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil, no Recurso Extraordinário (RE) n. 80.004 em 1977.

O dualismo se baseava em duas premissas: a) que o Direito Internacional e o Direito dos Estados possuem fontes distintas; e b) que o Direito Inter-

Page 125

nacional cuida das relações entre os Estados, enquanto o direito interno regeria as condutas entre os Estados e seus súditos. A doutrina dualista (ou pluralista) pressupõe a existência de duas esferas jurídicas distintas, de forma que haveria um processo de transformação do texto do tratado em lei interna, para que os comandos pudessem ser incorporados ao direito nacional.

1.2. Direito Internacional e Direito Internacional Público

De forma sintetizada, pode-se dizer que o Direito Internacional é o conjunto de normas que regula as relações externas dos atores que compõem a sociedade internacional. Estes atores, chamados sujeitos de direito internacional, são, principalmente, os Estados Nacionais.

Na sociedade internacional, os atores são Estados soberanos que se encontram horizontalmente dispostos, em condições de igualdade, não existindo uma autoridade superior, capaz de condicionar a vontade.

Assim, na igualdade soberana das nações, as obrigações são normalmente respeitadas e cumpridas com base na boa-fé dos envolvidos.

A boa-fé no Direito Internacional foi alçada ao status de norma jurídica, conforme consta no art. 2º da Carta das Nações Unidas3.

Originalmente composta de Estados soberanos, a sociedade internacional atual observou, nas últimas décadas, o surgimento e a proliferação das Organizações Internacionais, que, ao lado daqueles, figuram como titulares de personalidade jurídica, ou seja, podem ser considerados como sujeitos do Direito Internacional Público. (CAPARROZ, 2012, p. 2.)

O Direito Internacional Público é um ramo do Direito destinado a construir um arcabouço jurídico de orientação a todas as nações e organizações no âmbito internacional, procurando estabelecer uma ordem e uma lei comum que regule todo o comportamento que extrapole a esfera da soberania.

O direito internacional trata destas relações e deste âmbito normativo, que pode ser positivado ou costumeiro. Denomina-se Direito internacional público quando tratar das relações jurídicas (direitos e deveres) entre Estados, ao passo que o Direito inter-nacional privado trata da aplicação de leis civis, comerciais ou penais de um Estado sobre particulares (pessoas físicas ou jurídicas) de outro Estado.

2. Sistema global e interamericano de direitos humanos

A Segunda Guerra Mundial4 trouxe aos olhos da humanidade as atrocidades em detrimento das pessoas, vivenciado situações de total desprezo à dignidade da pessoa humana. Milhões e milhões de pessoas mortas, muitas de maneira bárbara, a exemplo dos campos de concentração. A comunidade internacional foi confrontada; convulsionou, por sua vez, a estrutura jurídica reinante, provocando, uma mudança de pensamentos jamais vista e desaguando no surgimento da Carta da Organização das Nações Unidas, assinada em São Francisco, nos Estados Unidos da América, a 26 de junho de 1945, mudando o rumo da História, evitando que tamanha degradação voltasse a ocorrer.

Iniciando esse novo cenário, diversos países...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT