Legitimidade da Jurisdição Constitucional

AutorANDERSON JÚNIO LEAL MORAES
Páginas50-86
Legitimidade da Jurisdição Constitucional
Anteriormente, viu-se quais questões têm em comum
entre si a democracia representativa e a soberania popular.
Entendeu-se que, a despeito do modelo representativo, a
democracia moderna merece ser chamada de democracia
porque o povo não abriu mão de sua soberania. Entretanto, a
soberania popular não é tema a ser discutido apenas no que
tange à escolha de representantes no governo.
Certamente, também se discute de que modo haveriam de
se harmonizar a soberania popular e a jurisdição
constitucional, especialmente considerando a dificuldade de
conceber que um juiz não escolhido possa tomar decisões que
invalidem outras tomadas pelos representantes eleitos pelo
povo. Ao cabo, a jurisdição constitucional pode significar que
o povo não decide sobre tudo.
Todo o poder da jurisdição constitucional advém do fato
de ela ser responsável pela guarda da Constituição, ainda que
contra o trabalho do legislador representante popular. As
escolhas legislativas feitas pelos delegados do povo estão
sujeitas, em última instância, ao entendimento do tribunal
constitucional.
Essa submissão do legislador é justificada, segundo as
correntes constitucionalistas, pela superioridade de alguns
preceitos sobre outros. Neste caso, os preceitos
constitucionais sobre o restante. Entretanto, as correntes
divergem a respeito do motivo da superioridade desses
preceitos sobre os outros. A seguir, sem pretensão de esgotar
a discussão, será apresentado um resumo das correntes em
três: a que parte do Direito natural, a que se baseia na
vontade e a que se desenvolve em torno da ideia da contenção
democrática como respeito da democracia por si mesma.
A corrente jusnaturalista moderna justifica a
superioridade dos preceitos constitucionais a partir da defesa
da existência de uma lei superior dada pela natureza. Não se
trata mais de um apelo metafísico, como era o caso do
jusnaturalismo de outrora. Os iluministas entenderam que é
pela razão que se descobre o Direito natural, da mesma forma
que é pela razão que se examinam as leis universais da
natureza.
A essas leis universais e imutáveis devem se sujeitar as
leis humanas. Pode-se afirmar que o papel da Constituição,
segundo os jusnaturalistas, é elencar quais são esses direitos
naturais que nem mesmo a vontade popular poderia revogar.
A elaboração desse elenco de direitos, fruto da sede
sistematizadora iluminista, concretizada nas Constituições ou
nos códigos, terminou alimentando a transição do
jusnaturalismo para o positivismo.
Uma vez que os direitos naturais haviam sido incluídos e
consolidados em um documento, nenhum esforço seria
necessário para que os direitos fossem ditos pelos juízes. O
emprego da razão na busca dos direitos na natureza fora
substituído pelo exame mais singelo das leis deitadas nos
códigos. Ao juiz caberia aplicar aquilo que de antemão a
autoridade do monarca ou dos representantes do povo definiu
como o Direito. Nessa etapa de aplicação da lei ao caso
concreto, a vontade da autoridade havia fechado a
discussão sobre o que a razão demandava da lei, restando ao
intérprete da lei tão só o exame gramatical ou, quando muito,
da vontade do legislador, a chamada interpretação autêntica.
Assim, o positivismo jurídico foi substituindo o foco na
natureza pelo foco no voluntarismo, apregoando que as leis e
mesmo a Constituição não são dadas pela natureza, mas
construídas pela vontade dos homens. Essa mesma vontade
cria hierarquia entre leis comuns e leis constitucionais, o que
justifica a sujeição daquelas a estas. Nesse sentido, mesmo a
contenção da vontade popular por meio de sua submissão à
Constituição é também vontade, pois assim foi decidido
quando da promulgação dessa Lei Fundamental. “No que se
refere à compatibilidade da jurisdição constitucional com o
princípio democrático”, diz Gustavo Binenbojm que “o
positivismo jurídico oferece a seguinte resposta: ao realizar o
controle de constitucionalidade das leis, o juiz constitucional
atua de forma rigorosamente neutra, sobrepondo a vontade do
legislador constituinte, expressa no texto da Constituição, à
vontade do legislador ordinário. A ideia é a de que a vontade
da maioria governante de cada momento não pode prevalecer
sobre a vontade da maioria constituinte incorporada na Lei
Fundamental.” (BINENBOJM, 2010, p. 60, itálico do autor)
Contudo, ainda no seio do positivismo jurídico, a ideia de
neutralidade dos juízes terminou criticada por Hans Kelsen,
que vislumbrou a impossibilidade de o juiz aplicar a norma
sempre mediante simples subsunção. Isso porque o conteúdo
das normas é insuficiente para elencar todas as
possibilidades de decisão do juiz, sendo tarefa deste não
apenas conhecer a norma, mas também criá-la. Para Kelsen,
a diferença entre o trabalho do legislador e do juiz não é
qualitativa (como se o primeiro fosse criador de leis e o
segundo mero aplicador), mas quantitativa, possuindo o
legislador liberdade em grau maior que o juiz, no que tange à
possibilidade de escolhas substantivas. Diz ele que “[…] a
vinculação do legislador sob o aspecto material é uma
vinculação muito mais reduzida do que a vinculação do juiz,
em que aquele é, relativamente, muito mais livre na criação
do Direito do que este. Mas também este último é um criador
de Direito e também ele é, nesta função, relativamente livre.
Justamente por isso, a obtenção da norma individual no
processo de aplicação da lei é, na medida em que nesse
processo seja preenchida a moldura da norma geral, uma
função voluntária.” (KELSEN, 2003b, p. 393)
Logo, apesar de atacar a ideia de neutralidade do juiz, a
teoria de Kelsen ainda repousa sobre o voluntarismo. Afinal,
como não se pode esperar do juiz que apenas se submeta à
vontade do legislador expressa na norma, admite-se que ele
mesmo, o magistrado, embora limitado às interpretações
possíveis que caibam na moldura, atue segundo sua vontade.

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