A legitimidade da fonte da qual emana a autorização para a cobrança da comissão de permanência

AutorGlauber Moreno Talavera
Ocupação do AutorExecutivo corporativo em São Paulo; Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP
Páginas177-227

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Instado a manifestar-se, quer por via de ação, quer por via de exceção, nosso Pretório Excelso tem se manifestado, no passar dos anos, de forma linear no sentido de asseverar a legitimidade da atuação normativa do Conselho Monetário Nacional. Como assinala Guilherme Centenaro Hellwig:

“A análise da jurisprudência produzida pelo Supremo Tribunal Federal sobre os órgãos reguladores do Sistema Financeiro permite, ainda, que se extraia dos pronunciamentos da Corte uma especial preocupação com as especificidades da regulação da atividade financeira. Desde as primeiras manifestações dos ministros do STF sobre o tema, é possível observar-se, nos votos proferidos, a percepção de que o terreno econômico-financeiro exige, em face de seu caráter marcada-

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mente conjuntural, uma maior flexibilidade na sua disciplina, inalcançável com a rigidez de textos legais de caráter permanente”.12

Inseridas nesse contexto mutante, dinâmico por excelência, as instituições financeiras mutuantes foram autorizadas por normas emanadas do CMN – Conselho Monetário Nacional a cobrar a comissão de permanência nas operações de concessão de crédito firmadas com seus mutuários. Partindo da premissa de que a comissão de permanência não é senão espécie do gênero juros monetários, enquadrável, num retrato mais preciso, na categoria dos juros compensatórios, sua disciplina é, sem dúvida, atribuição afeta ao CMN, que no exercício do poder normativo que lhe foi conferido pela Lei
4.595, de 31 de dezembro de 1964 – recepcionada com hierarquia de lei complementar na ordem constitucional inaugurada pela promulgação da Carta Magna de 1988 e ainda hoje vigente – atua como autoridade do Sistema Financeiro Nacional no sentido de ordenar e regular o mercado bancário.

Conquanto o raciocínio esboçado nos pareça de uma congruência e linearidade patentes, não são poucos os que buscam, lançando mão de argumentos de variados matizes, deslegitimar a fonte da qual promana a permissão concedida aos bancos mutuantes para exigir a comissão de permanência daqueles que lhe tomam recursos. Nesse sentido, dedicamos o capítulo que segue a uma análise pouco mais

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pormenorizada sobre a atuação do Conselho Monetário Nacional no Sistema Financeiro Nacional.

2. 1 Conceito de mercado financeiro

Se pretendemos analisar a regulação do sistema financeiro nacional pelo ente estatal encarregado de ordenar essa seara econô-mica, devemos, preliminarmente, entender, na sua completude, a dinâmica do contexto em que se encontram inseridas autoridades reguladoras e instituições reguladas. Nesse mister, lançando mão de conceitos basilares, passamos a tecer alguns breves comentários com o objetivo primaz de propiciar uma visão panorâmica do mercado financeiro.

Numa economia monetária, como a imensa maioria das economias contemporâneas, a moeda tem duas funções básicas: serve de unidade de troca, ou seja, funciona como instrumento de consumo que permite a aquisição de bens independentemente do puro e simples escambo de mercadorias típico das economias amonetárias; e constitui reserva de valor, ou, noutras palavras, representa instrumento de acumulação de riqueza.

Do conceito de moeda, extraído de suas funções fundamentais, podemos deduzir que o volume de recursos de que um agente dispõe pode ser canalizado, modo geral, em duas direções: consumo, representativo da função unidade de troca da moeda, pelo qual troca-se a disponibilidade dos recursos amealhados pela aquisição de bens e/ou serviços; e poupança, expressão da parte da renda cuja disponibilidade foi adquirida mas não foi direcionada ao consumo.

Aqueles que optam por poupar e não consumir o montante integral arrecadado constituem unidades econômicas superavitárias. Existem, todavia, aqueles agentes cuja pretensão de utilização de recursos monetários suplanta, do ponto de vista quantitativo, o nível de poupança mantido – são as chamadas unidades econômicas deficitárias. Quem faz a intermediação entre poupadores e tomado-

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res são os agentes financeiros, instituições que integram o chamado mercado financeiro, no qual são realizadas operações de captação de recursos e concessão de créditos, através do manejo dos instrumentos destinados a viabilizar o fluxo de recursos dos poupadores para os tomadores. É função precípua do mercado financeiro, portanto, a canalização da poupança para investimento.

Embora seja até certo ponto indutivo, não nos custa repisar que o crescimento econômico sustentado, desafio de todas as equipes econômicas mundo afora – consubstanciado na repetição de um círculo virtuoso que tem como estágios sucessivos e simultâneos a expansão em escala da produção de bens e serviços, propiciada pelo incremento tecnológico e pela elevação da capacidade instalada, que desencadeia o aumento do nível de emprego e alavanca o nível de renda, fomentando o apetite para o consumo e desencadeando a reprodução do ciclo – tem como pressuposto imprescindível o nível de investimento. E o nível de investimento de uma economia está intrinsecamente associado à atuação dos agentes financeiros. Afinal, são os agentes financeiros, autênticos intermediários – que celebram operações passivas pelas quais assumem a obrigação de restituir valores depositados que lhes são custodiados e operações ativas pelas quais adquirem o direito de reaver o capital emprestado – que canalizam os recursos poupados para aqueles que pretendem investir na produção de bens e serviços. Constitui função essencial para prover a economia com um nível de liquidez adequado para viabilizar o crescimento, à medida que o estoque de moeda em circulação é determinado conjuntamente pelo volume de emissão de papel moeda autorizado pela autoridade monetária e pelo efeito multiplicador que a função de intermediação tem na criação de moeda escritural.

A maior ou menor eficiência dos agentes financeiros no cumprimento da missão de otimizar a alocação da poupança em investimentos produtivos depende basicamente do nível de desenvolvimento do mercado financeiro, medido pela diversidade de ativos

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disponibilizados e pelo acesso mais ou menos restrito a uma gama maior ou menor de pretensos participantes. Esse desenvolvimento pode ser reativo ou induzido. No primeiro caso, o mercado reage a uma demanda pela sofisticação e diversificação dos instrumentos de intermediação que se origina no incremento das atividades produtivas. Na segunda hipótese, um projeto de aperfeiçoamento do mercado é pré-concebido, refletindo uma antevisão dos fatos.3À evidência, o aprimoramento contínuo do mercado financeiro, à luz dos objetivos macroeconômicos que se pretende alcançar, deve ser planejado, implementado e monitorado pelo Poder Público. Imperativo, pois, nessa ordem de idéias, que o Estado disponha de entes e instrumentos ágeis, céleres e flexíveis de intervenção no segmento financeiro, orientando esse processo dinâmico de evolução, estimulando a manutenção da poupança em determinado patamar e criando as condições necessárias para sua eficiente alocação nos investimentos que promovem o crescimento da economia e, por via reflexa, que têm como desdobramento um maior bem estar social.

2. 2 A estruturação do Sistema Financeiro Nacional

Antes de tratarmos propriamente da regulação da atividade desenvolvida pelos intermediários financeiros, aos quais incumbe primacialmente prover a economia com um estoque suficiente de ativos líquidos, atuando no sentido de transferir recursos das unidades de dispêndio com superávit para unidades de dispêndio com déficits planejados, é necessário traçarmos uma panorâmica histórica da intermediação financeira no Brasil, ainda que de forma meramente perfunctória e singela.

No horizonte estritamente nacional, o marco inicial da atividade de intermediação financeira – consistente na captação de recursos e re-empréstimo a terceiros, também descrita como de multiplicação

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dos meios de pagamento –, é a chegada da família real portuguesa nestas plagas, seguida da abertura dos portos às nações amigas, decretada por D. João VI; em janeiro de 1808, da fundação do Banco do Brasil – com funções múltiplas de banco comercial, agente financiador do governo e emissor de papéis pagáveis à vista ao portador – ainda em 1808, e da celebração dos primeiros acordos comerciais, o Tratado de Comércio e Navegação e o Tratado de Aliança e Amizade, ambos firmados em 1810.4Foram os lusitanos que, a partir da sua chegada, introduziram no país o modelo europeu de banco, associado quase que exclusivamente às operações de depósitos e empréstimos. De acordo com Otavio Yazbek: “(…) boa parte das instituições então surgidas era autorizada a emitir títulos que funcionavam como meios de pagamento, o que se fazia em profusão, levando a problemas diversos e à promulgação, em 1860, de uma legislação restritiva desse tipo de atividade – a ‘Lei dos Entraves’. A redução de liquidez da economia que se seguiu foi, em parte, responsável pela quebra da casa bancária Antônio José Alves Souto & Cia., em 1864, a primeira verdadeira crise bancária ocorrida no país. Esta quebra demandou a tomada de medidas excepcionais e levou à promulgação das primeiras regras específicas para a quebra das instituições bancárias”.5

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Já sob a forma republicana de governo, o país assiste à “Crise do Encilhamento” durante o governo provisório de Deodoro da Fonseca, acarretada pelo estouro de uma autêntica bolha especulativa inflada por emissões bancárias de títulos sem o devido lastro, estimuladas por políticas econômicas pretensamente voltadas para o...

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