Legitimação do ministério público do trabalho para atuação em políticas públicas - breve estudo à luz do estado social, da dogmática dos direitos sociais e do empirismo

AutorAndré Luís Spies
CargoProcurador Regional do Trabalho
Páginas28-68

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1. Introdução ao tema

Existe farta produção científica sobre os chamados direitos econômicos, culturais e sociais, ou simplesmente direitos sociais1.

Presentes ou ao menos mencionados nos diversos ordenamentos jurídicos, constitucionalistas de variadas latitudes têm buscado desvendar sua justificação, e enfrentar a complexa problemática de sua efetividade. A discussão do tema pode tomar em conta a experiência do Welfare State, como demonstra Pedro Cruz Villalón ao definir tais direitos como “una de las variadas formas de manifestar el Estado social”,2 ainda que este não possua exatamente o mesmo cariz, por exemplo, na Lei Fundamental de Bonn, ou nas Constituições italiana ou portuguesa.3

Num tempo em que os direitos ostentam “gerações”4 os sociais são comumente entendidos como da segunda, na medida em que reconhecidos universalmente num momento posterior àquele do aparecimento das chamadas liberdades, estas constitucionalizadas como direitos fundamentais clássicos. Os direitos sociais podem ser entendidos como direitos do homem enquanto “ser necessitado”, e a partir da concepção de tais necessidades como “direitos”, mais tarde erigidos ao predicamento constitucional como direitos “sociais”, como “princípios reitores”, ou como “objetivos básicos” — dependendo do ordenamento jurídico estudado — é que sobre eles tem-se prospectado juridicamente, com pretensão científica.

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Luigi Farrajoli, em prefácio do denso “Los Derechos Sociales como Derechos Exigibles”, anota5 que os direitos à saúde, educação, subsistência e assistência social têm sido objeto de restrições crescentes, em que pese serem “a conquista mais importante da civilização jurídica e política do século passado”. O italiano argumenta que essa debilidade política também é fruto de uma debilidade teórica, na medida em que não poucas vozes sustentam que eles não constituem propriamente direitos, porquanto sua violação configuraria simples omissão estatal. Teria surgido “uma classe de direitos cuja tutela não parece existir”: a dos direitos sociais, segundo um quase perplexo José Reinaldo de Lima Lopes6.

Nesse contexto controvertido da eficácia e efetividade desses direitos, destaca-se no Brasil uma instituição governamental, genuinamente nacional, com potencial para contribuir para a solução de parte das graves questões sociais locais: o Ministério Público do Trabalho (MPT), com o perfil constitucional que lhe foi conferido pela Constituição de 1988. Aqui reside o tema do presente trabalho: uma análise de seu papel promocional, exercitável no “campo minado” do planejamento, implementação e fiscalização das políticas públicas.

Uma doutrina nacional sobre os direitos sociais, a permitir uma boa base reflexiva sobre a realização deles, no Brasil, já se encontra disponível. E essa construção dogmática deve muito, no particular, aos estudos (críticos) do Direito Constitucional alemão. Como adverte Andreas Krell, “doutrinas germânicas disseminaram-se através de doutrinadores da Espanha e de Portugal, países que, por sua proximi-dade cultural e linguística, exerceram forte influência nas ciências jurídicas brasileiras, sobretudo no âmbito do direito público”7. É igualmente encontradiça abundante literatura sobre essa figura evolutiva do Estado, apelidado de social, providência, ou de bem-estar. E como os direitos sociais, em sua dimensão prestacional, encontram

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-se intimamente ligados às tarefas daquele — cuja função é zelar por adequada e justa distribuição e redistribuição dos bens existentes8, afigura-se condizente com os lindes do presente ensaio um olhar sobre suas características e trajetória histórica.

Assim, desenvolvem-se primeiras linhas por uma incursão ao Estado social, do qual são produtos os direitos sociais. Estes, por seu turno, são abordados a seguir, à luz da dogmática mais atual, e que se pode dizer relativamente bem estabelecida nacionalmente; contextualizamos, depois, as políticas públicas, a princípio assunto dos Poderes Executivo e Legislativo, mas que cada vez mais vêm sendo, para nossa alegria ou nossa tristeza, judicializadas. As seções finais são dedicadas ao Ministério Público enquanto defensor dos direitos sociais e, consequentemente, como partícipe ou “novo ator” na cena da politização do Judiciário, destacando-se uma abordagem específica do MPT — o qual, estrategicamente, dá os primeiros passos na arena da discussão das políticas públicas, um tema relativamente pouco explorado, até o momento9.

Essa divisão esquemática não é fruto do aleatório. Para bem abordar a questão da ampla salvaguarda dos direitos sociais pelo MPT, como indutor de policies, nada melhor que situá-lo a partir de uma reflexão sobre o Estado Democrático de Direito de matiz social, constitucionalmente estabelecido (ao menos “no papel”) também no Brasil. A dogmática, que costuma ser ponto de partida da investigação jurídica, não foi esquecida, tampouco “seu” inseparável e complementar empirismo — aqui representado pelo direito positivo posto (constitucional ou não), e pelas primeiras e exitosas experiências que vivencia o MPT, ao lograr pioneiras vitórias no âmbito das políticas públicas sociais — no Judiciário, ou fora dele.

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2. Contornos do estado social

Como é sabido, escravatura, feudalismo e capitalismo diferem frontalmente10. No pré-capitalismo, a “obtenção do excedente” dava-se ideologicamente, vale dizer, com a manutenção do trabalho escravo, ou do trabalho servil. Tal realidade é alterada com o capitalismo, na medida em que sob sua égide o excedente se obtém “pelo mercado”. Terminada a Segunda Guerra, as possibilidades de acumulação capitalista e suas exigências (do capital), por um lado, e as demandas da luta de classes, por outro, tencionarão o Estado duplamente, produzindo o que se convencionará denominar “Estado social”11. E ele intervirá (“Estado-interventor”) para satisfazer pretensões do capital e do trabalho. Dual a pressão, dupla por igual a intervenção: no econômico para fomento da produtividade. Ou seja, em áreas onde o capital, em princípio, não investe, porque fora de sua lógica (transportes, comunicações, infraestrutura ou investigação)12. A lógica é a seguinte: elevada a produtividade, estão criadas condições para “concessões ao social”, ou para a “conciliação objetiva” entre o capital e o trabalho — imprescindível para funcionamento do “sistema”. Nesse campo da intervenção econômica, o Estado social ainda fará, eventualmente, as vezes de “cruz vermelha” do capitalismo — absorvendo empresas em crise, auxiliando setores, etc.

Quanto à intervenção no campo social, consistirá no custeio da reprodução da força de trabalho (seguridade, saúde, habitação, etc.), na qualificação dela (ensino), e em políticas de aumento de demanda inspiradas no modelo keynesiano. Os direitos sociais como produto da intervenção estatal no campo social atuam, então, como “legitimadores do Estado” — porque dão a impressão de que ele “é de todos” —, e

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como “integradores” (apenas quem se dispõe a aceitar, ao menos por um tempo razoável, as condições do mercado laboral, terá condições de pleitear benefícios de prestação, como seguro-desemprego).

Outro importante papel ainda estará reservado aos direitos sociais: absorver tensão da luta de classes, enquanto transformadores de possíveis intuitos de mudança radical, em reivindicação concreta de benefícios específicos — sem ameaçar paz ou estabilidade sociais.

Nesse concerto, a relação entre o econômico e o social passa a ocorrer, basicamente, através do Estado — “um lugar privilegiado da luta de classes”. Por outro lado, se antes o econômico e o político seguiam mais ou menos estanques (primeiros estágios do capitalismo “liberal”), agora aparecem visceralmente interdependentes, o que vai exigir uma transformação do Estado para as sempre novas exigências do capitalismo13.

Mas o Estado de bem-estar nunca constituiu uma completa unanimidade, nem mesmo nos anos do “milagre econômico” europeu do pós-guerra14. Social-democracia e forças conservadoras, ideologicamente, sempre divergiram quanto aos temas sociais: a primeira defendendo a provisão coletiva de serviços básicos, e a segunda, a provisão do mercado. Sem embargo, o pragmatismo político nunca permitiu mesmo aos governantes mais conservadores ousarem pregar a devolução total ao mercado dos serviços básicos de saúde, educação, ou previdência. Assim, o pleno emprego, os serviços básicos universais e a luta contra a miséria traduziram-se em uma parte fundamental da

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sociedade do pós-guerra, que converteu esses postulados em algo praticamente irreversível15.

Dentre as críticas ao Estado social, merece menção a forjada na Inglaterra dos anos 50, quando ele foi questionado pelo discurso da denominada “sociedade opulenta”. Pleno emprego e crescimento econômico da época, notórios, conferiam à sociedade “opulenta” uma espécie de autossuficiência que, em tese, dispensaria um intervencionismo estatal. Entretanto, intelectuais daquele tempo, como Galbraith, alertavam para um suposto traço “residual” da pobreza16: a sociedade do pós-guerra seria “menos benigna e igualitária do que se pensava”17.

A investigação social dos anos 60 revelou, portanto, que na Inglaterra, nos Estados Unidos e em outros lugares, no que se referia à desigual-dade, a promessa do Estado de bem-estar estava longe de ser cumprida. Logo, em vez de desmantelamento dos serviços sociais, eles deveriam ser intensificados e melhorados. Se nos anos 50 foram vivenciadas idas e vindas quanto às ideias do Estado de bem-estar, na década seguinte pesou com folgas o...

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