Legítima Defesa

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas309-348

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11.1. Conceito, teorias e requisitos

A legítima defesa consiste num encontro de agressões: uma, inicial, mola propulsora da situação que se desencadeará, que ataca, e outra, como resposta, que procura afastar a consumação do mal buscado pela primeira. Essa causa de exclusão da ilicitude sempre subentende uma agressão oposta a outra. É a repulsa ao ataque, visando a obliterá-lo.

A descriminante em apreço não se configura como revide ou vingança. Não constitui represália ou retaliação, mas proteção (non ad summendam vindictam, sed ad repulsandam injuriam).

A legítima defesa sempre existiu como ato instintivo de conservação ou força natural de reação contra as agressões. Daí assinalar Geib que ela não possui história634.

Roque de Brito Alves ressalta a respeito:

"Primordialmente, o ato de defesa entende-se como um ato instintivo, reflexo, como um fato biológico (fisiopsicológico) antes de ser um fato conforme ao Direito. É sob tal compreensão que se justifica a proposição de Cícero - em sua oração Pro Milone - de non scripta sed nata lex. Ainda, sob tal perspectiva, oriunda da necessidade, faz nascer o direito: ex necessitate jus oritur"635.

O certo é que a legítima defesa nunca trouxe a punição ao seu autor. Diversas, porém, foram as teorias formuladas para a sua justificação.

O fulcro no direito natural foi o primeiro passo para a explicação da excludente: ato instintivo e inato a todo ser humano. Todavia, a fórmula aventada, se adotada integralmente, também tornaria legítima a repulsa a atos justos, mas prejudiciais aos interesses do sujeito ativo. Acarretaria, ainda, a impossibilidade de ser proclamada lícita a defesa em favor de outra pessoa agredida (um terceiro) ou no tocante a bens do agente que não se relacionassem à vida ou integridade corporal.

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Procurou-se, igualmente, explicar a legítima defesa como causa excludente não do ilícito, mas da culpabilidade, fincadas as suas raízes na perturbação de ânimo produzida no agredido ante o ataque injusto que lhe foi desfechado. A doutrina teve berço, como realçam autores do Direito Penal, com Pufendorf. A coação moral a que o agente seria levado pela agressão sofrida é que justificaria a defesa. O fato come-tido em defesa teria ilicitude, mas não a culpabilidade. No entanto, como advertem Anibal Bruno636e Giuseppe Maggiore637, com isso não se explicariam a legítima defesa de terceiro e os casos em que o agredido reage de ânimo firme e sereno, a par da contingência de também se ter que propugnar pela licitude da defesa em relação a atos justos, mas lesivos.

A teoria da retribuição do mal pelo mal, preconizada por Geyer, asseverava que a defesa privada é essencialmente injusta, porque o direito de punir pertence apenas ao Estado; mas, se direito alheio é injustamente agredido, esse mal injusto pode ser retribuído com um outro mal. Contudo, esse fundamento para a impunidade da repulsa resulta de resquício da lei de talião, pois atribui legitimidade à vingança. De outra parte, salienta Nélson Hungria: "admitindo-se que o mal ocasionado pela defesa é retribuição suficiente, não se compreenderia que o agressor sobrevivente continuasse passível de pena pelo mal que haja efetivamente causado ao defensor"638.

Buscando ainda emprestar à legítima defesa contornos de eximente da culpabilidade, exsurgiram as doutrinas dos motivos determinantes (o agente não tem a finalidade de ofender bem alheio e, se o faz, é com a intenção de defender-se) e da inexistência de antissociabilidade ou periculosidade do sujeito ativo.

Von Buri, por sua vez, trouxe ao campo dos debates (agora no intento de afastar a antijuridicidade do fato) a teoria da colisão de bens ou interesses. Segundo sua proposição, o interesse ou direito do agente, exatamente porque atacado, sempre teria maior importância que o direito do agressor, violado pela reação privada. Desta sorte, porque o direito do agressor se revestiria de menor importância, o seu sacrifício, para a salvaguarda do bem agredido, seria de se impor.

Carrara vislumbrou na legítima defesa, como causa de justificação, constituir defesa pública subsidiária, de natureza contratualista. Se ao Estado é impossível prevenir concretamente pela defesa pública a agressão a bens jurídicos tutelados, ao particular é conferida a autodefesa, subsidiária da pública, para o resguardo de seus bens ou direitos. Essa proposta foi abraçada por muitos penalistas, a exemplo de Maggiore639, os quais, entretanto, refutaram a natureza contratualista, posto que a defesa, como direito primário e instintivo, preexistiu à sua regulamentação legal, pelo que o apregoado contrato social redundaria numa incongruência.

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Hegel sustentou que se a agressão injusta revela ato contrário à ordem jurídica e consiste na negação do Direito, a repulsa a essa agressão não pode ser taxada de antijurídica, tendo caráter de secundum jus por defender de forma imediata a ordem pública e a paz social e, mediatamente, proteger o bem jurídico ameaçado.

Na realidade, sucede que as teorias apresentadas interagem, de forma mais ou menos intensa, e conferem à legítima defesa força excludente não da culpabilidade, mas da ilicitude do fato típico.

No entanto, para a excludente em tela aperfeiçoar-se juridicamente, não é suficiente a existência de uma agressão oposta a outra. É preciso que se conjuguem no fato concreto os demais requisitos da defesa lícita, id est, uma agressão injusta e atual ou iminente e a repulsa com o emprego de meio necessário, utilizado com a devida moderação, na preservação de direito próprio ou alheio.

Satisfeitos estes pressupostos insculpidos na lei, a descriminante cobre de juridicidade o fato principal, assim como qualquer residual ou remanescente típico (v. n. 24.4), e ainda compreende aquele que concorre para a defesa alheia (v. n. 21.11).

11.2. Agressão injusta e atual ou iminente

A agressão constitui o primeiro requisito da legítima defesa. É ela seu elemento desencadeante, sua mola propulsora, pois representa a energia que confere ensejo à reação. É o ato humano, praticado pela vítima do fato típico, que tem potencialidade para causar danos a direitos alheios. É, na expressão de Asúa, a ingerência ou intromissão humana na esfera dos interesses de outrem.

Dizer que a agressão é ato humano deixa claro que a reação a ataques de animais irracionais não configura a excludente, mas caracteriza o estado necessário. Os animais são considerados semoventes pelo Direito Civil, isto é, coisas móveis dotadas de força própria e, como tais, resulta inegável que não possuem aptidão para o cometimento de agressões ilícitas (v. n. 4.1). Diferente é a situação (legítima defesa, e não estado de necessidade), tão só no caso de o irracional servir de instrumento para a agressão, por dele utilizar-se o dono açulando-o para atacar o agente (v. n. 4.1).

Não é necessário que a agressão sempre encontre correspondência típica, ou seja, que se dirija à realização de um tipo legal delitivo ou contravencional. Ela também pode atacar bens tutelados de forma extrapenal, na condição de mero ilícito civil. Seria o caso do esbulho possessório pacífico, atípico do ponto de vista penal, que, sem violência ou grave ameaça, apenas duas pessoas efetuassem (v. n. 4.3) ou de furto de uso, irrelevante sob o prisma do direito repressivo (v. n. 7.4), que alguém praticasse, ambas as situações possibilitando uma reação (comedida) em legítima defesa.

De outro turno, a violência à pessoa nem sempre representa a tônica da agressão. No furto (art. 155, CP) ou usurpação (art. 161, CP), por exemplo, ela é inexistente e nem por isso há negar-se possa o patrimônio atacado ser defendido legitimamente (com moderação).

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Não é requisito indispensável à defesa o ataque ser comissivo. A agressão pode, igualmente, ser cometida de forma omissiva, desde que existente o dever jurídico de atuar. Exemplo: carcereiro que, maldosamente, deixa de soltar o presidiário, embora este já houvesse cumprido a pena e em seu favor já se tivesse expedido o alvará de soltura. A força física empregada pelo preso contra o carcereiro, a fim de alcançar a liberdade devida (art. 352, CP), teria a cobertura da descriminante, embora oposta a reação a uma omissão.

Nélson Hungria afirma não ser necessário o dolo na agressão, de forma que ela pode apresentar natureza culposa sem impedir a descriminante. Na mesma direção o entendimento de Welzel, que admite legítima defesa contra agressão culposa.

Dissentimos, porém, dos insignes mestres. Se a agressão é um ato de ataque, parece-nos irrefutável que deve estar dirigida com intenção (ao menos na finalidade da vontade, e não necessariamente no conteúdo - v. n. 3.1) para a lesão do interesse alheio, ainda que o agressor não atue de forma culpável. Por conseguinte, contra atos culposos a excludente não tem ensanchas para se perfazer. De tal arte, em nosso pensar, comportamentos de índole culposa não constituem agressões e, assim, não toleram a legítima defesa. Podem render ensejo, tão somente, em face da situação que se apresente, ao estado de necessidade defensivo (v. n. 12.8).

Digamos que certa pessoa tome uma bicicleta, sem equilíbrio suficiente para conduzi-la, e - com insegurança e instabilidade na trajetória - adentre corredor onde há valiosa obra de arte. O proprietário, apercebendo-se do risco ao seu patrimônio, e para resguardá-lo, intercepta a bicicleta, quando esta vai em direção àquela obra, e derruba o ciclista aventureiro, ferindo-o640. Nessa hipótese, o fato típico (art. 129, CP) carece da...

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