A legalidade das uniões e o crime de bigamia

AutorEduardo Luiz Cabette - Bianca dos Santos Cabette
CargoProfessor de direito do UNISAL - Bacharel em direito
Páginas144-154

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Os casamentos poliafetivos e, porventura, o casamento poligâmico colocam em xeque os fundamentos que sustentam o crime de matrimônio duplo (e simultâneo)

Tem sido comum, na área civil, mais especificamente na seara do direito de família, atualmente chamado por muitos de "direito das famílias"1, o reconhecimento de uma enorme "mutação" no conceito de família que ultrapassa o modelo tradicional para abranger várias novas modalidades, inclusive sem, necessariamente, a interposição do casamento2.

No seio desse quadro plural e diferenciado exsurgem as propostas de reconhecimento jurídico das chamadas "uniões poliafetivas" (que se constituiriam não somente entre dois parceiros ou parceiras, mas podendo ampliar o número de conviventes), o que, certamente, ao menos de forma indireta, atinge o chamado "princípio monogâmico", tradicionalíssimo na conformação das famílias.

Eventual mutação que venha realmente a ocorrer de forma ampla e definitiva no campo civil provavelmente deverá ser avaliada com relação às suas possíveis repercussões na seara criminal, especialmente no que se refere ao crime de bigamia, previsto no artigo 235 do Código Penal. A questão tem grande relevância, dadas as suas potenciais consequências quanto à retração do direito de punir estatal ou a manutenção do status quo perante as mudanças que se apresentam na conformação do conceito de família no âmbito civil.

Anote-se, por oportuno, que tudo quanto será exposto não versa sobre conceitos morais, sejam eles pessoais dos autores, sejam aqueles cultivados pela população em geral. O problema será analisado com absoluta imparcialidade e isenção, estritamente sob o ângulo jurídico.

1. Uniões poliafetivas: descrição do presente e vislumbre do futuro

Nada mais óbvio do que o fato de que as chamadas "uniões poliafetivas" ensejam uma resistência no mundo social e jurídico, tendo em vista a tradição monogâmica que constitui o modelo tradicional de família no Brasil.

Não obstante, Tartuce noticia que já há dois casos de lavratura de escrituras públicas de reconhecimento de uniões poliafetivas. A primeira, no ano de 2012, do Tabelionato de Tupã - SP, envolvendo um homem e duas mulheres. A segunda, em 2015, do 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - RJ, na

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Barra da Tijuca, incluindo três mulheres ("união homopoliafetiva"). Segundo o autor, esses atos notariais não padecem de nulidade por "ilicitude do objeto", nos termos do artigo 166, II, do Código Civil, conforme alegado por outros juristas3.

ADEMAIS, O CASAMENTO É QUE IMPLICA DEVER DE "FIDELIDADE" NOS TERMOS DO ARTIGO 1.566, I, DO CC. QUANTO À UNIÃO ESTÁVEL, NÃO SE FALA EM "FIDELIDADE", MAS EM "LEALDADE" (ART. 1.724, CC)

Para Tartuce a monogamia é princípio do casamento e não da união estável, pois o que o Código Civil estabelece é que não podem se casar as pessoas já casadas, "sob pena de nulidade do segundo casamento" (inteligência dos arts. 1521, VI, c/c 1548, CC)4.

Ademais, o casamento é que implica dever de "fidelidade" nos termos do artigo 1.566, I, do CC. Quanto à união estável, não se fala em "fidelidade", mas em "lealdade" entre os companheiros (art. 1.724, CC). Pode-se pensar que a "lealdade" implicaria "fidelidade", mas isso não corresponde à reali-dade. Conforme leciona Tartuce:

[É] possível que alguém seja leal sem ser fiel. Imagine-se, nesse contexto, um relacionamento de maior liber-dade entre os companheiros, em que ambos informam previamente que há a possibilidade de quebra de fidelidade, e que aceitam tais condutas.5Por isso o autor critica a posição da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (Cnj) que, por meio de resolução, determinou o impedimento de lavratura de escrituras públicas de uniões poliafetivas no ano de 2016, questão que continua em suspenso no aguardo de uma decisão final6.

O fundamento da recomendação de suspensão feita pelo Cnj seria a alegação de que a expressão "união poliafetiva" visa validar relacionamentos com formação poligâmica, em violação ao § 3o do artigo 226 da Cf, que limita "a duas pessoas a constituição de união estável"7. Porém, a simples leitura do dispositivo constitucional aponta para o fato insofismável de que não há ali nenhuma menção expressa à limitação da união a somente duas pessoas. Na verdade, o que o § 3º do artigo 226 da Cf afirma é que é reconhecida a união estável "entre o homem e a mulher" como entidade familiar. O constituinte se refere, portanto, ao homem e à mulher, mas não limita, em momento algum, o número de homens e mulheres, fazendo menção clara e evidentemente aos sexos em que se bipartem os seres humanos. É claro que alguém poderia interpretar que o dispositivo se refere restritivamente a um homem e uma mulher. No entanto, essa interpretação não pode ser considerada como aquela que se faz de um texto expresso e induvidoso. Muito ao reverso, ao fazer referência ao homem e à mulher, parece muito mais correto que esteja trabalhando com os sexos e não estabelecendo um número de integrantes da união, pois, se assim o quisesse, poderia simplesmente ter escrito na Constituição um homem e uma mulher.

Como já mencionado anteriormente, há, porém, entendimento de que as escrituras públicas lavradas a respeito de uniões poliafetivas constituiriam atos jurídicos nulos por ilicitude de seu objeto, ao menos no que tange aos seus efeitos na área do direito de família.

Simão, por exemplo, afirma que essas escrituras são nulas, sequer admitindo eventual aproximação com o caso dos casamentos homoafetivos já admitidos pelo stf e por Resolução do Cnj. Em suas palavras:

O Código Civil e a Constituição Federal brasileira não exigem dualidade de sexo como elemento de existência do casamento. Se muda a realidade social, mudam também os elementos de existência do casamento. Assim, o StJ, ao admitir o casamento de pessoas do mesmo sexo, apenas percebeu que o conceito de casamento se alterou com o passar dos séculos. Não se trata mais de união entre o "homem e a mulher", mas sim de união entre "pessoas".

O mesmo não pode se dizer da poligamia escriturada. Não se trata de elemento de existência, mas sim de requisito de validade do negócio jurídico. Havendo causa de proibição legal, seja ela culminada de sanção penal ou civil, a afronta à norma cogente acarreta nulidade absoluta da escritura poligâmica.

A única conclusão que se chega é que a escritura é nula, nos termos do artigo 166, por motivo evidentemente ilícito (contra o direito) e por fraudar norma imperativa que proíbe uniões formais ou informais poligâmicas.8O autor em destaque faz uma diferenciação entre "elemento de existência" do casamento e "requisito de validade do negócio jurídico", com indicação de fundamento da nulidade da união poliafetiva no artigo 166, II, do CC (nulidade do negócio jurídico por ilicitude do seu objeto). A nulidade se daria devido ao fato de que o Código Civil, no ar-

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tigo 1521, VI, prevê expressamente impedimento de que uma pessoa já casada venha a casar-se, e o artigo 1548, II, do CC, determina a nulidade do casamento por "infringência de impedimento".

Afirma Simão, porém, que nem o Código Civil nem a Constituição apresentam como "elemento de existência" do casamento a dualidade de sexos. No entanto, o artigo 1.514 do CC é expresso ao dizer que o casamento se perfaz quando "homem e mulher" expressam sua vontade perante o juiz de paz. Realmente, o Código Civil e a Constituição não conceituam "família" nem "casamento", de modo que não fazem, num "conceito", menção expressa ao sexo dos nubentes. Entretanto, a referência é expressa à dualidade sexual no momento em que o ato jurídico do casamento se concretiza (inteligência do art. 1.514, CC). E isso então também poderia ser erigido a requisito de validade do negócio jurídico, dependendo da interpretação que se dê à questão. Também o artigo 1.723 do CC exige, para o reconhecimento da união estável, que esta se dê entre um "homem e uma mulher", assim como a Lei da União Estável (Lei 9.278/96), em seu artigo 1º, faz a mesma exigência expressa. Por outro lado, a Constituição também exige expressamente o requisito de dualidade de sexos para o reconhecimento da união estável no artigo 226, § 3º.

Dessa forma, parece que não assiste razão a Simão em sua pretensão de afastar qualquer similitude entre o casamento ou união estável homos-sexual e a união poliafetiva. Tem razão o autor ao afirmar que o Stf reconheceu que o conceito de casamento teria "evoluído" com o tempo, não mais se restringindo à união entre "homem e mulher", mas ampliando-a para a união entre "pessoas", independentemente do sexo ou orientação sexual. Não obstante, não é sustentável seu intento em distanciar totalmente a abordagem feita pelo pretório excelso no caso do casamento ou união homossexual e as uniões poliafetivas, sob o argumento de que se tratava num caso (homossexuali-dade) de uma nova interpretação de "elementos de existência" e noutro (união poliafetiva) de "requisitos de validade do negócio jurídico". Logo de início, não é verdade que a lei e a Constituição não mencionam expressamente os sexos dos companheiros ou cônjuges (basta ler os dispositivos). Isso não impediu o reconhecimento dos casamentos e uniões homossexuais. Depois, embora seja fato que a lei proíbe o casamento de quem já é casado, e isso possa ter aplicação por extensão expressa para as uniões estáveis, nos termos do artigo 1.723, § 1º, CC, que aplica às uniões estáveis os mesmos impedimentos previstos para o casamento, inclusive o do artigo 1.521, VI, do CC, a não ser que a pessoa casada...

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