Legal positivism x historical materialism: a reading of the foundations of the legal systems of Kelsen and Pachukanis/Positivismo juridico x materialismo historico: uma leitura acerca das fundacoes dos sistemas juridicos de Kelsen e Pachukanis.

AutorFonseca, Alexandre Muller

Introducao

O seculo XX foi adequadamente adjetivado de Era dos extremos por Eric Hobsbawn (2009), titulo de seu livro--originalmente publicado em 1990--que descreve os acontecimentos entre o inicio da Primeira Grande Guerra ate o colapso da antiga Uniao Sovietica em 1991. Durante esse periodo, nunca a humanidade vivenciou guerras capazes de vitimar tantas pessoas em tao pouco tempo. (2) Alem das duas Grandes Guerras, o periodo foi palco de profundas disputas intelectuais. No ambito juridico, por exemplo, uma escola de pensamento com grande influencia--ao menos nos paises nao-alinhados ao bloco sovietico--foi o positivismo capitaneado por Hans Kelsen.

Na Teoria pura do direito (2012)--cuja primeira edicao foi publicada em 1934--Kelsen defendia que o direito fosse concebido a partir de uma concepcao cientifica propria. Para ele, a estrutura de qualquer sistema juridico e essencialmente hierarquizada. Ha normas gerais, dispostas a partir de uma Constituicao, que orientam--e justificam--a estrutura do Estado e tudo o que rege a vida em sociedade. Mas a Constituicao nao e justificada por si mesma. Qualquer sistema legal pressupoe a existencia de uma norma hipotetica basica que o valida sem ser contaminada por questoes alheias ao direito, tais como a politica ou a sociologia.

Contrariando Kelsen, uma critica surgiu do seio do bloco sovietico atraves do jurista Evgeny Pachukanis. Em seu Teoria geral do direito e marxismo (1988)--obra originalmente disponibilizada ao publico em 1924--(3), Pachukanis afirma que a concepcao kelseniana colocaria, por assim dizer, "a carroca na frente dos bois". Afinal, Kelsen nao questionava como surgiam as estruturas juridicas ou estatais. Para ele, os Estados sao formas politicas oriundas do conflito entre os donos dos meios de producao e os trabalhadores. Portanto, os conceitos mais basicos do direito ("sujeito", "igualdade" ou "liberdade") deveriam ser pensados a partir das relacoes conflituosas oriundas da luta de classes. Nesse caso, o materialismo historico de Karl Marx forneceria o metodo adequado para a compreensao do direito.

Dito isso, os objetivos deste artigo sao (a) apresentar os elementos dessas duas concepcoes--principalmente as fundacoes dos ordenamentos juridicos--e (b) avalia-las criticamente. Para tanto, analiso a discussao do seguinte modo: na primeira secao, apresento a concepcao de Kelsen (subsecao 1.1) seguida da critica de Pachukanis (subsecao 1.2). Na sequencia (secao 2), avalio as lacunas (eventuais) de cada uma das concepcoes (subsecoes 2.1 e 2.2) e finalizo o artigo avaliando em que medida o modelo de Kelsen poderia ser harmonizado com uma perspectiva socialista (secao 3). Argumento que a estrutura piramidal juridica de Kelsen nao contradiz as concepcoes socialistas e suas consideracoes pontuais sobre formas de organizacao politica sao compativeis com uma modelagem socialista, como a defendida por Carlos Nelson Coutinho.

  1. O metodo de Kelsen e a objecao de Pachukanis

    Kelsen e Pachukanis sao herdeiros de movimentos intelectuais dispares surgidos na Europa no sec. XIX. Enquanto este e fruto da tradicao marxista originaria dos escritos de Marx (e Friedrich Engels) desde a decada de 1840, aquele pertenceu ao chamado "Circulo de Viena" na Austria do inicio do sec. XX. E sob essas tradicoes filosoficas diferentes que surgirao suas concepcoes de sistema juridico e seus modos de pensar o direito. (4)

    1.1 A concepcao cientifica do direito de Kelsen

    Em meados do sec. XIX, concepcoes juridicas com grande influencia no meio intelectual juridico eram justificadas com base no direito natural. Em geral, essas concepcoes--chamadas de "jusnaturalistas"--afirmavam que havia direitos fundamentais intrinsecos aos homens e que as leis por eles criadas deveriam respeita-los. Essas ideias nao eram novas. Ja na Retorica, Aristoteles (apud INGRAM 2010, p. 28) dizia que "se a lei escrita depoe contra o nosso caso, devemos claramente apelar para a lei universal, e insistir em sua maior equidade e justica". Outras concepcoes de direito natural foram posteriormente formuladas por autores medievais como Santo Agostinho e Santo Tomas de Aquino e tambem por autores modernos como John Locke e Jean-Jacques Rousseau, cada um com suas motivacoes especificas e particularidades. (5) O positivismo de Kelsen acabou sendo, em certo sentido (mesmo sem ser essa a sua intencao), uma reacao a essas concepcoes. Afinal, justificar o direito com base em algo externo--como algo ainda nao incorporado ao ordenamento juridico--abriria margem demasiada a escolhas subjetivas do julgador. (6) Respondendo a Erich Kaufmann, Kelsen disse que

    O jusnaturalismo e metafisica juridica. E a invocacao de metafisica ecoa agora--depois de um periodo de positivismo e de empirismo--em toda parte e em todos os ambitos cognoscitivos. Mas aonde nos leva este apelo a metafisica e ao direito natural no campo da jurisprudencia? Acima de tudo, leva-nos a um subjetivismo radical. (7) Com isso, Kelsen afirma que, para essas concepcoes, ha uma ausencia de criterios juridicos claros se o fundamento primeiro do direito for algo externo a si proprio. (8) Portanto, seu esforco intelectual consistiu em formular uma concepcao cientifica de direito que inibisse (ou pelo menos minorasse) esse problema. Para tal empreitada, seu ponto de partida era o direito tal como se apresentava nos Estados nacionais de sua epoca. Ele nao elaborou uma concepcao de como o direito deveria ser (ao menos, nao em seu sentido etico e/ou politico) e restringiu seu objeto de estudo as normas legais (preocupado essencialmente com seu aspecto formal). (9)

    Segundo Kelsen, a ciencia juridica deve se ocupar do seu objeto de estudo: a norma positivada. Pesquisar as fontes primarias ou fundacionais do direito nao e papel do cientista do direito, mas pode ser do sociologo (LOSANO, 2011, p. xvi). Afinal, a sociologia ou a ciencia politica lidam com questoes factuais. Mas para Kelsen, que incorporou a intransponivel dicotomia humeana entre ser e dever-ser, enunciados prescritivos (ordens) nao sao extraidos de enunciados sobre fatos. (10)

    Ja com relacao a estrutura do sistema juridico, Kelsen adotou de Adolf Merkl a ideia de sistema piramidal em que normas (juridicas) estao hierarquicamente dispostas dentro de um sistema (juridico) e o que as tornam validas e sua pertenca ao sistema. As orientacoes gerais da conduta de individuos em sociedade sao previstas em uma Constituicao que orienta todas as normas hierarquicamente inferiores. As normas mais basicas das diversas esferas do direito (penal, civil, direito do trabalho) sao justificadas por normas hierarquicamente superiores que, por sua vez, sao validadas em virtude de outras normas superiores assentadas na Constituicao. (11) Portanto, no plano da validade das normas, para evitar um regresso ad infinitum, Kelsen supos uma norma que justifique a existencia das demais (e do sistema juridico como um todo) sem precisar de outra que a justifique. Essa e a norma fundamental, que acaba sendo a

    [...] fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o ultimo fundamento de validade e a norma fundamental desta ordem. E a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa. (12) Ha duas maneiras de interpretar a norma fundamental (e que sao complementares): (a) na esteira da epistemologia kantiana e (b) como fonte de validade do ordenamento. (13) No primeiro caso, a norma e, a Kant, transcendental, isto e, ela confere condicao de possibilidade para apreensao dos fenomenos percebidos:

    As semelhancas entre a proposta kantiana no terreno das ciencias naturais e a de Kelsen na seara juridica sao bem conhecidas. [...] Do mesmo modo que as categorias [...] do entendimento (quantidade, qualidade, relacao e modalidade) de Kant sao formas puras, ou seja, conceitos sem qualquer conteudo, que nada prescrevem em termos materiais as leis naturais, mas, todavia, as tornam possiveis, i.e., pensaveis, a norma fundamental dinamica, propria de ordens juridicas contemporaneas, tambem e vazia de conteudo e nao determina nenhuma prescricao juridica especifica, ao contrario de normas fundamentais estaticas que orientam os ordenamentos de matriz jusnaturalista. (14) Como condicao de possibilidade que estrutura aquilo que e objeto de conhecimento, a norma basica admite que os argumentos juridicos escapem da guilhotina de Hume. Agora, a premissa de um argumento juridico que leva a conclusao de que, por exemplo, "Todos os individuos devem pagar seus impostos" tem como sua pressuposicao basica--ou premissa--um enunciado prescritivo. Ou seja, as conclusoes dos silogismos juridicos sao justificadas por um ponto de partida prescritivo. (15) Assim como Kant rejeitava que tivessemos acesso epistemico as coisas em si (noumenon), para Kelsen nao ha nada em si em um modelo cientifico de direito. Nossos objetos de cognicao juridicos (as normas) sao modelados segundo nossos interesses e construcoes teoricas. Portanto, pressupor a norma basica e condicao necessaria para a fundamentacao racional do direito enquanto sistema teorico.

    A outra forma de entender a norma fundadora enquanto fonte de validade do ordenamento implica (genericamente) que se deve seguir a orientacao constitucional vigente: "para se pressupor a norma fundamental basta a eficacia global da primeira Constituicao historica" (MATOS, 2012, p. 39). Entretanto, como a norma basica e essencialmente teorica, ela pode se moldar as exigencias de novas ideologias ou interesses dos homens que habitam um territorio, o que nao implica que seja desprovida de valores, por isso a exigencia de conduzir-se conforme a Constituicao vigente:

    Kelsen esclareceu repetidamente que a sua teoria e uma teoria pura do direito positivo e nao uma...

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