Legal heteronormativity and the LGBTI identities under suspicion/Heteronormatividade juridica e as identidades LGBTI sob suspeita.

Autorde Araujo, Dhyego Camara

Introducao

Tratar a respeito da sexualidade no interior do campo juridico e tensionar as questoes relativas aos direitos de lesbicas, gays, bissexuais, (trans) (1) e intersexuais (LGBTI) (2) e sempre um desafio por inumeras razoes. Primeiro, porque esse conjunto de sujeitos nao se organiza como um grupo homogeneo de reivindicacoes, a despeito de na maioria das vezes ser apresentado como tal. Ao contrario, suas pautas possuem contornos e contextos que lhe sao proprios e, portanto, falar em diversidade sexual implica em levar para o interior do direito toda essa diversidade de demandas que possuem, de maneira peculiar, um significado muito pontual dependendo do grupo ao qual se esta reportando.

Por outro lado, falar sobre sexualidade e direito evoca um arsenal teorico que pretende a desconstrucao dessas redes de controle e normalizacao dos individuos pelos marcadores de sexo/genero, ao mesmo tempo em que nos confronta com uma realidade de violencia sistematizada contra pessoas LGBTI. Situacoes de discriminacao e preconceito, de marginalizacao, de odio social e de repudio institucionalizado convivem com o paradoxo juridico consistente na protecao pela especificacao e esteriotipacao dos sujeitos.

Assim, a apreensao do grupo LGBTI como uma minoria a ser protegida pelo direito deve levar em conta essas questoes que se pode ilustrar com os seguintes questionamentos: superada a questao da uniao estavel composta por pessoas do mesmo sexo, podem os nao-heterossexuais celebrarem casamento? Poderao eles e elas adotarem filhos? Realizar procedimentos de reproducao assistida? Se aceitarmos tais condicoes, ao tratarmos do direito ao casamento e a adocao, a quem estamos nos dirigindo? Casal de dois homens-cis; duas mulheres-cis; dois homens (trans); uma mulher (trans) e um homem-cis; duas travestis; uma travesti solteira; etc?

Alem do conjunto de direitos que gravitam em torno do ambiente das relacoes de afeto, importante se faz denunciar as praticas sistematizadas de violencia levadas a cabo tanto pelos individuos como pelo proprio Estado. Assim, no primeiro capitulo, Nao ao sexo rei: as realidades LGBTI numa ordem heteronormativa, abordaremos algumas questoes a respeito do enquadramento juridico das demandas da populacao LGBTI na atualidade. Busca-se com isso problematizar a compreensao das relacoes de forca que estao em jogo quando se discute a efetividade e (in)eficacia dos direitos ora discutidos, a fim de que se possa promover um deslocamento do olhar no tocante ao debate envolvendo genero e diversidade sexual, sobretudo no campo do direito.

Posteriormente, partindo da compreensao de que a ordem juridica vigente se pauta por uma logica heteronormativa, bem como do arcabouco teorico de Michel Foucault, perseguiremos uma arqueogenealogia do sexo a fim de verificar o solo de emergencia da sexualidade enquanto modelo regulatorio de condutas e acoes na contemporaneidade, concebendo-a como dispositivo de normalizacao dos corpos e das populacoes (FOUCAULT, 2011).

Desse modo, pretende-se a seguir tracar um panorama a respeito do tema a partir de algumas perspectivas dos direitos humanos, cuja racionalidade se organiza por principios de resistencia capazes de abrir espacos de luta pela dignidade humana, estabelecendo, na sequencia, um dialogo com outros autores, tais como Michel Foucault, cujas ideias, em um primeiro momento, parecem conflitar com aquelas conflitar. Alerta-se, de antemao, que nao se busca apontar para uma solucao de tal controversia, senao apresentar o atual cenario no que diz respeito ao arcabouco teorico-filosofico, as demandas juridicas, bem como a realidade social da populacao LGBTI. 1

  1. NAO AO SEXO REI: as realidades LGBTI numa ordem heteronormativa

    Caracteristica da nossa contemporaneidade, a luta pelo reconhecimento de direitos LGBTI representa hoje um dos maiores desafios a ordem juridica. Tais individuos estao atravessados por uma simbologia expressada em suas identidades tidas como pecadoras, criminosas, abjetas, sujas, monstruosas, as quais, por sua simples manifestacao, atentam contra uma certa regularidade no jogo das identidades, de modo que os seus direitos estao desde sempre implicados nessa relacao de transgressao da ordem, seja ela etica, politica, moral e, tambem, juridica.

    Nao que atualmente vigore um sistema de silenciamento, supressao e interdicao dessas identidades de forma total e macica, mecanismos tipicos de um tipo de poder que Michel Foucault denominou por juridico-soberano (FOUCAULT, 2011). Esse modo de exercicio do poder que predominou ate meados do seculo XVIII deu lugar a novas tecnicas e taticas de sujeicao, cujos efeitos nao se expressam mais em termos de um estabelecimento de contornos negativos da liberdade, ou mesmo na sua supressao total, mas que atuam pela constante e intensa fabricacao de corpos e comportamentos desejados (FOUCAULT, 2008; 2010). Por meio da perspectiva foucaultiana, o que vemos funcionar a partir do final do seculo XVIII ate os dias atuais e totalmente diverso, o que sera explorado com mais precisao posteriormente.

    No plano nacional, inumeras foram as conquistas alcancadas pela populacao LGBTI nos ultimos anos, mas tal trajetoria mostra-se marcada por avancos cujo perigo de retrocesso esta sempre iminente.

    A despeito do atraso, em 1993 a Organizacao Mundial da Saude (OMS) deixou de classificar a homossexualidade como "Desvios e Transtorno Sexuais" no Codigo Internacional de Doencas (CID), removendo-a de tal lista, mas realocando-a no capitulo de "Sintomas Decorrentes de Circunstancias Psicossociais". Sua eliminacao definitiva do codigo de doencas so aconteceu, no entanto, em 1995, sobre o que, inclusive, ha atualmente inumeros influxos por parte de bancadas fundamentalistas na Camara dos Deputados para que se implemente em nivel nacional um projeto de coordenadas para a "Cura Gay".

    Em maio de 2011, ao julgar a Acao Direta de Inconstitucionalidade n. 4277-DF conjugada com a Arguicao de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132-RJ, o Supremo Tribunal Federal se posicionou pela proibicao de discriminacao, alargando a interpretacao do dispositivo legal que apenas possibilitava a uniao estavel entre "homens e mulheres", ao reconhecer que a manifestacao da sexualidade e integrante da autonomia individual de cada pessoa, fator este tutelado constitucionalmente no plano da intimidade e da vida privada. Foi do entendimento da Corte brasileira que a norma elencada na Constituicao Federal, ao ser interpretada sistematicamente, nao pode ser aplicada de forma tao reducionista tendo em vista a proibicao do preconceito como capitulo do constitucionalismo fraternal (PIOVESAN; SILVA, 2015, p. 2637).

    Como se tratava apenas de reconhecimento de uniao estavel, varios casais nao puderam celebrar casamento diante das negativas a tal direito, vindas inclusive do Judiciario. Posteriormente, em julgamento cujos efeitos restringiam-se apenas as partes do processo, o Superior Tribunal de Justica reconheceu o direito a conversao da uniao estavel em casamento. Com fundamento nessa decisao, em 2013, o Conselho Nacional de Justica editou a Resolucao n. 175, garantindo a vedacao da recusa de habilitacao para o casamento de casais formados por pessoas do mesmo sexo.

    Importa destacar o Partido Social Cristao se insurgiu contra a resolucao do CNJ por meio de Acao Direta de Inconstitucionalidade, autuada sob o numero 4.966 e ajuizada em 7 de junho de 2013, de modo que o Supremo Tribunal Federal tera oportunidade de manifestar-se sobre a incidencia do art. 226, [section] 3 da Constituicao sobre qualquer uniao estavel, independendo para tanto do sexo biologico, da identidade de genero ou da orientacao sexual dos individuos que compoem tal arranjo familiar.

    Em recente decisao (Recurso Especial n. 1.540.814-PR), o Superior Tribunal de Justica reiterou o entendimento da Corte sobre a adocao por casais formados por pessoas do mesmo sexo, todavia, tal decisao nao possui efeitos vinculantes, de modo que nao obriga os demais orgaos jurisdicionais do pais ao reconhecimento do direito de adocao por parte desses individuos.

    Mais recentemente, em 1 de marco de 2018, o Supremo Tribunal Federal na ADIN 4275/DF decidiu, por unanimidade, o direito de pessoas (trans) alterarem o nome e o designativo de sexo no registro civil, sem a necessidade de se submeterem a cirurgia, bem como dispensando decisao judicial.

    Ha, ainda, atualmente, intensa discussao a respeito do direito de criancas intersexuais nao terem o seu "sexo biologico" determinado por uma comissao medica, sendo obrigada a passar por procedimento cirurgico poucos dias depois do seu nascimento, ou de sofrer processo quirurgico ate idade determinada pelos criterios da medicina. A contrariedade a obrigatoriedade de intervencao cirurgica/quirurgica nos corpos intersexos busca enfatizar que, para tais procedimentos, existe um unico modo "correto" de se relacionar com o genero bem como com o desejo, e esse modelo e "determinado" pela coerencia exigida pelo orgao genital, ou seja, se penis, comportamento dito masculino e desejo por mulheres; se vagina, condutas consideradas como femininas e desejo dirigido aos homens--movimento elucidado por Butler, em Problemas de Genero, de construcao do sexo biologico pelo genero em sua atuacao performativa (BUTLER, 2016), e nao o contrario.

    O espectro juridico acima revela um cenario de uma ampla tendencia de judicializacao das agendas LGBTI, reflexo de um bloqueio institucional perpetrado por outras esferas do Estado que se mostram, quando nao indiferentes, hostis com as reivindicacoes dos movimentos sociais. Situacao atualmente ilustrada a partir das inumeras ofensivas executadas por setores mais conservadores e fundamentalistas existentes na cena politica nacional, os quais, nao satisfeitos com a situacao anterior, caracterizada pela omissao sistematica de discussao de questoes de genero e sexualidade nas escolas, passaram a aprovar projetos de lei municipais que proibem professoras e professores...

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