A law without facticity: An (un)reading theory of legal fact/ Um direito sem faticidade: Uma (des)leitura da teoria do fato juridico.

AutorStreck, Lenio Luiz
CargoResena de libro
  1. Introducao

    Harold Blomm (1) diz que o olhar para um texto e, na realidade, uma abertura para as diversas (inter)relacoes de textos. Assim, qualquer leitura se perfaz como um ato critico de constante (des)apropriacao de sentidos. Partindo dessa premissa, descortina-se esta reflexao.

    A proposta e situar a Teoria do Fato Juridico de Pontes de Miranda neste ambiente textual e inter-relacional sob o prisma de uma perspectiva denominada de Filosofia no Direito (2). Ou seja, buscar-se-a compreender quais seriam os pressupostos filosoficos subjacentes nesta construcao teorica pontesiana.

    Diante da vastidao intelectual da producao de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, o objeto de analise deste trabalho circunscreve-se a sua Teoria do Fato Juridico (3). E dentro desta, as questoes de base, tais como: 1) a relatividade do conhecimento; 2) o conceito de mundo (juridico); 3) o direito como sistema logico; 4) a regra juridica enquanto uma proposicao logicamente estruturada; a interpretacao como "revelacao". Neste sentido, nao sera feita uma abordagem dogmatica sobre os tres planos--existencia, validade e eficacia--, tampouco acerca dos tipos de fatos juridicos existentes.

    O objetivo primaz e a assentar o lugar de fala em que repousa a teoria de Pontes de Miranda. Note-se que o jurista brasileiro foi um erudito, transitava por diversas areas do saber, com isto nao se quer reduzir em demasia as diversas influencias que provavelmente teve, mesmo que nem sempre as referenciasse. A ideia e perceber certas aproximacoes com uma determinada concepcao filosofica--o que nao significa que seja esta exclusiva--mas que teve algum predominio.

    Sob o aspecto metodologico, este estudo fara uso do metodo fenomenologico hermeneutico que, de modo resumido, pode ser entendido como um revolver do chao linguistico em que se assenta certa tradicao no intuito de se obter uma compreensao mais originaria do fenomeno. No caso, a teoria do fato juridico sera deslida no intuito de descobrir o que se esconde por detras de sua formulacao, ou seja, o arcabouco filosofico que lhe sustenta.

    O artigo esta dividido em tres partes. Na primeira e feita uma abordagem expositiva da teoria do Fato Juridico de Pontes de Miranda. Na segunda sera feita a sua (des)leitura teorica desta, demonstrando suas aproximacoes com Hans Kelsen bem como as influencias que sofreu do Neopositivismo Logico, com destaque, a Filosofia da Linguagem do primeiro Wittgenstein. Na terceira e ultima, a discussao se volta ao segundo Wittgenstein e de como este desconstruiu seus proprios pressupostos, fragilizando, assim, consequentemente, a teoria de Pontes. Ademais, sera feita uma abordagem critica demonstrando como a proposta ponteseana era de um Direito sem faticidade a luz de uma compreensao hermeneutica.

    Espera-se que ao final este escrito possa contribuir para leituras e escritos outros acerca do empreendimento teorico de Pontes de Miranda, certamente, um dos expoentes mais elevados da Ciencia Juridica em terrae brasilis.

  2. A teoria do Fato Juridico de Pontes de Miranda

    Antes de tratar especificamente sobre a teoria do fato juridico cumpre destacar, mesmo que de forma muito breve, alguns apontamentos basilares do pensamento de Pontes de Miranda desenvolvidas em sua obra Sistema de Ciencia Positiva do Direito.

    Pontes defendia a ideia de uma relatividade gnosiologica (4) em que o conhecimento do real nao resulta de um conceito das coisas em-si, mas sim de suas interelacoes (5). Partindo do sofista Protagoras e de sua maxima--"o homem e a medida de todas as coisas"--o jurista argumentava inexistir verdades independentes do sujeito, ou seja, objetivas. Sendo, portanto, a finalidade da ciencia a formulacao de uma conviccao subjetiva (6).

    Nao obstante ao relativismo, ao menos uma afirmacao seria inconteste, a que o mundo material existe. Contudo, a perspectiva humana que se tem da realidade seria uma (re)construcao do real circundante. As ciencias, portanto, estariam circunscritas no conceito de fato, ainda que de ordens diferentes. Nesta linha, Pontes afirma que:

    Tudo o que pode ser conteudo da consciencia e fato. Somente o que nos da a sensacao ou representacao sao elementos do nosso mundo: assim, para os seres, nao o proprio ser, mas as cores, o som, a elasticidade, o espaco, o tempo, e que constituem tais elementos. A coisa, o ser, e simbolo de pensamento para certo complexo de sensacoes de relativa estabilidade. O objeto do conhecimento sao as relacoes e nao os seres (7). Diante disso, o direito deveria afastar-se das abstracoes para viver da realidade social, pois sao as relacoes sociais os fatos a serem observados, sobretudo, em sua conexao simbolica com as regras juridicas. Estas, por sua vez "incidem no espaco e no tempo a que elas se destinam. Uma vez que compoem todo o suporte fatico, a regra juridica como que colore o que se compos" (8).

    Assim, para Pontes na aplicacao do Direito dois processos deveriam ser sublinhados: "1) a analise dos conceitos contidos na norma juridica e, mais profundamente, da classe das normas; 2) a analise das relacoes que tem de ser regradas pela lei" (9).

    No tratado de Direito Privado (Tomo I) ja no inicio do prefacio o jurista faz um afirmacao categorica e lapidar: "os sistema juridicos sao sistemas logicos, compostos de proposicoes que se referem a situacoes da vida, criadas pelos interesses mais diversos (10)". Esta logicidade seria proveniente da estrutura das regras juridicas, que nao diferente das demais proposicoes, usariam conceitos correspondentes a realidade, a fim de assegurar a certeza quanto a sua incidencia (11).

    Com este processo os simples fatos seriam marcados pela "imposicao" da regra tornando-se juridicos, e, por isto ingressariam no mundo juridicus. Com isto, nas relacoes sociais, o direito seria uma especie de ordenador do caos (redutor de complexidade), isto e, imporia ao devir certa ordem que lhe permitisse a estabilizacao das relacoes sociais (12).

    A aplicacao de uma determinada regra juridica decorreria da determinacao semantica de seu conteudo, o que seria realizado pelo interprete e de modo nao arbitrario. E isto somente teria sentido dentro de uma concepcao de linguagem em que cada conceito juridico presente na regra pudesse ser observado nas relacoes sociais, afastando, portanto, duvidas quanto a sua aplicabilidade. Neste sentido, Pontes declara:

    O sistema juridico contem regras juridicas; e essas se formulam com os conceitos juridicos. Tem-se de estudar o fatico, isto e, as relacoes humanas e os fatos, a que elas se referem, para se saber qual o suporte fatico, aquilo sobre o que elas incidem, apontado por elas (13). O jurista exemplifica isto a partir do art. 1[degrees] do Codigo Civil, a epoca, que assim prescrevia: "Todo homem e capaz de direitos e obrigacoes na ordem civil". Para Pontes, este seria um suporte fatico muito simples, centrado no conceito de "Homem". Deste modo, havendo um ser humano vivo, logo se teria a incidencia do comando legal (14). Destarte, os conceitos deveriam ser exatos e precisos dirimindo assim duvidas quanto a incidencia ou nao de uma determinada regra juridica.

    Todavia, sendo o direito entendido de modo sistematico a interpretacao de um comando legal nunca se daria de modo isolado, ao reves, demandaria uma compreensao do todo, para apos revelar seu conteudo, mantendo a consonancia sistemica (15).

    Pontes observa que essa "revelacao" nao seria de uma vontade objetiva da lei insculpida pelo legislador, pois diante do carater historico haveria sempre verificar os conteudos diante da realidade presente, e isto em conformidade com as possibilidades do sistema (16).

    Deste modo, a ciencia do direito teria como funcao precipua efetuar uma limpeza semantica do conteudo das regras a fim de manter a pureza logica e a completude do sistema juridico. Em suas palavras, Pontes define que:

    A atividade mais relevante da ciencia do direito consiste, portanto, em apontar quais os termos, com que se compuseram e com o que se hao de compor as proposicoes ou enunciados, a que se da o nome de regras juridicas, e quais as regras juridicas que, atraves dos tempos foram adotadas e aplicadas. A sucessao historica dessas regras obedece a leis sociologicas. Outra atividade, que nao e menos inestimavel do que aquela, esta no interpretar o conteudo das regras de cada momento e tirar delas certas normas ainda mais gerais, de modo a se ter em quase completa plenitude o sistema juridico (17) Dentro da proposta teorica pontesiana a nocao fundamental do direito e a de fato juridico (18), que surge a partir da incidencia de uma regra (19). A soma destes fatos constituiria o mundo juridico, que por sua vez estaria contido no mundo dos fatos. Este esquema pode ser explicado num raciocinio desenvolvido pelo proprio Pontes, que assim expos:

    (a) O mundo juridico esta no conjunto a que se chama o mundo.

    (b) O mundo concorre com fatos seus para que se construa o mundo juridico; porem este seleciona e estabelece a causacao juridica, nao necessariamente correspondente a causacao dos fatos.

    (c) A juridicizacao e o processo peculiar ao direito; noutros termos o direito adjetiva os fatos para que sejam juridicos (= para que entrem no mundo juridico) (20).

    Esta distincao entre o mundo fatico e o mundo juridico tambem e retomada por Pontes jurista no Tratado das acoes (Tomo I). Neste ele afirma que:

    Os conceitos que usa o jurista sao conceitos de dois mundos diferentes: o mundo fatico, em que se dao os fatos fisicos e os fatos do mundo juridico, quando tratados somente como fatos do mundo fatico e o mundo juridico em que so se leva em conta o que nele entrou, colorido pela regra juridica que incidiu (21). A respeito do surgimento das regras juridicas Pontes formula um argumento historico-antropologico. Para o jurista, o ser humano, diante de toda a sua experiencia concreta com a realidade circundante, passou a reconhecer-se como sujeito (sub-iectus). Neste processo, na tentativa de ordenar o caos, passou a dar ordem e...

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