Law, violation and technicality: Law & Economics in Coase's and Brown's Conceptions/Direito, violacao e tecnicidade: a Analise Economica do Direito nas concepcoes de Coase e Brown.

AutorUchimura, Guilherme Cavicchioli
CargoTexto en portugues - Ensayo

Introducao

Em meados do seculo vinte, teoricos estadunidenses comecaram a produzir um olhar para o direito a partir de modelos economicos. Ainda que bastante heterogeneo, esse movimento tem sido genericamente denominado, em ingles, de Law & Economics, abrangendo tanto vertentes positivas quanto normativas, indo de discursos liberais mais radicais a moderados (BOWLES, 1991; ZANATTA, 2012).

No Brasil, a maioria dos autores tem optado por empregar a propria terminologia anglofona, Law & Economics, ou a expressao Analise Economica do Direito (AED). Para nao se valer desnecessariamente do estrangeirismo, a nomenclatura adotada doravante neste trabalho sera essa ultima--na forma de sigla, por brevidade e pela facilitacao visual na leitura.

Trata-se de campo do conhecimento que, em nivel nacional, tem se desenvolvido de forma crescente, sobretudo em programas de pos-graduacao estrito senso na area do direito e em associacoes privadas de pesquisadores, entre as quais, por exemplo, a ADBE--Associacao Brasileira de Direito e Economia e a ADEPAR--Associacao Paranaense de Direito e Economia, ambas com objetivos institucionais ligados ao desenvolvimento da AED. Em ambito nacional, porem, com a excecao de trabalhos filiados a corrente garantista do pensamento juridico, nao se conhecem analises criticas aprofundadas sobre o significado historico da AED e sobre o que esta corrente representa enquanto mediacao entre o discurso teorico e o planejamento empresarial.

O problema de investigacao que se coloca pode ser assim formulado: enquanto corrente teorica, qual relacao se pode apreender entre a AED e o planejamento empresarial ligado a violacoes de direitos? Mais especificamente, o objetivo do presente trabalho e investigar como a AED, enquanto movimento teorico, no periodo de 1960 a 1973, em sua gestacao na academia estadunidense, se relaciona com o fenomeno da violacao de normas juridicas por organizacoes empresariais. Tem-se por hipotese que em decorrencia das bases lancadas por Ronald Coase e John Prather Brown, dois de seus primeiros formuladores--a AED constitui inicialmente, nos recortes temporal e espacial delimitados, uma mediacao entre o plano teorico e o planejamento empresarial que, sob a forma de premissas assumidas e do uso de ferramentas analiticas, revela uma concepcao tecnico-instrumental e calculista dos efeitos da violacao de normas juridicas.

Com essa proposta, o presente artigo se divide em tres etapas de exposicao. Na secao um, o fenomeno da violacao de normas juridicas e examinado sob os marcos da historia da forma juridica e da teoria geral do direito, tendo por base principalmente a perspectiva materialista do fenomeno juridico desenvolvida em Teoria geral do direito e marxismo (TGDM), de Evguieni Pachukanis.

Na secao dois, expoem-se os resultados da analise de The problem of social cost (COASE, 1960) e de Toward an economic theory of liability (BROWN, 1973), obras que marcam etapas do desenvolvimento da AED enquanto movimento teorico. Tratando-se de uma primeira aproximacao da AED, a pesquisa e realizada nos limites da vertente positiva e da gestacao estadunidense desse movimento (1960-1973), delimitado pelas obras citadas, o que sera exposto e justificado na mesma secao.

Na secao tres, culminando no momento de sintese do trabalho, realiza-se um estudo sobre o caso do modelo Ford Pinto com a finalidade de verificar o grau de proximidade entre o momento inicial da AED e o planejamento estrategico empresarial apreendido em concreto. O estudo de caso sera realizado a partir de registros jornalisticos e da analise de documentos internos da empresa Ford Motor Company, enquanto os aportes teoricos desenvolvidos a partir da obra de Pachukanis fundamentarao a compreensao critica do fenomeno da violacao de direitos em sua especificidade capitalista.

1 A especificidade capitalista da relacao juridica e a concepcao instrumental da violacao de normas juridicas

Desde a filosofia moderna, a possibilidade de cumprir ou descumprir normas sociais tem sido deduzida como corolario necessario da propria normatividade, ou seja, dos discursos do tipo dever-ser em geral. Trata-se de uma especie de exigencia logica que, em Kant, "filosofo moral da burguesia em ascensao", foi sintetizada no ditame "deve, logo pode" (MESZAROS, 2012: 258-259).

Sob essa concepcao, portanto, pode-se afirmar didaticamente que onde quer que exista dever, tambem existira possibilidade de descumprimento. Trata-se, sob estes termos, de uma premissa obvia, autoevidente. No caso, porem, e esta uma daquelas obviedades que nos convida ao espanto e ao questionamento metodico. Espantar-se com o que e obvio, afinal, e o que move e da sabor ao esforco historiografico (VEYNE, 1998).

A premissa kantiana--deve, logo pode--encontra especificidade na area da teoria geral do direito. Kelsen, por exemplo, frisa em sua Teoria Pura que "o ilicito (delito) nao e negacao, mas pressuposto do Direito" (1998: 124). Pachukanis, por sua vez, fala em "liberdade" de cometer delitos como uma "posicao inicial" na sociedade capitalista (2017: 183). Dai se pode constatar que, nesse campo do saber, mesmo em abordagens antagonicas do fenomeno juridico, o descumprimento das normas juridicas e concebido como uma possibilidade autoevidente e, alem disso, como uma condicao de existencia do proprio direito.

A partir dai, nota-se que o descumprimento das normas juridicas pode se dar em situacoes opostas: tanto pode se constituir como meio para populacoes exploradas realizarem movimentos de contestacao da ordem, quanto pode servir para que sejam violados os direitos mais basicos dessas mesmas populacoes e, consequentemente, se aprofunde a sua exploracao. Sobre essa segunda situacao, a qual esta pesquisa se dirige, vale citar um exemplo mais concreto antes de entrarmos especificamente na analise proposta.

Em O Capital, ao investigar como se dava a inspecao do trabalho na Inglaterra do seculo XIX, Marx (1996) percebeu que as fraudes aos limites legais a jornada de trabalho eram mais recorrentes do que meros eventos acidentais. Isso se explicava--segundo relatos de inspetores do trabalho--na medida em que os fabricantes contavam com "a chance de nao serem descobertos" e calculavam que, na hipotese de o serem, "o pequeno valor da multa e dos custos judiciais" lhes asseguraria um saldo lucrativo (apud MARX, 1996: 356) (1), motivo pelo qual o descumprimento lhes aparecia como a escolha mais racional. Assim Marx pode comprovar que, independentemente da existencia de limites formais estabelecidos em lei, e abstraindo limites muito elasticos, "da natureza do proprio intercambio de mercadorias nao resulta nenhum limite [real] a jornada de trabalho" (1996: 349), chamando a atencao ao carater violavel que a relacao juridica assume na troca de forca de trabalho por salario.

Ao faze-lo, de certo modo, Marx indicou uma condicao laboral que ainda hoje se comprova na realidade brasileira das relacoes de trabalho. Em geral, a limitacao legal da jornada de trabalho a oito horas diarias nao impede, absolutamente, que os empregadores exijam jornadas superiores de modo habitual. Como sintese, tanto para o capitalista da morna revolucao industrial vivenciada por Marx quanto para a organizacao capitalista nacional atual, o ditame kantiano assumiria o mesmo conteudo: devo cumprir os limites legais a jornada de trabalho, logo posso frauda-los.

Considerando esse panorama, por concepcao instrumental da violacao de normas juridicas aqui se quer fazer referencia ao fenomeno pelo qual o cumprimento ou o descumprimento das normas juridicas e concebido pelos seus destinatarios como possibilidades, a principio, igualmente elegiveis. A concepcao do fenomeno juridico adotada para fundamentar essa conceituacao encontra-se, principalmente, na teoria geral do direito de Pachukanis, na linha de raciocinio exposta a seguir.

A compreensao do pensamento de Pachukanis se inicia por algumas anotacoes metodologicas. De inicio, cabe pontuar que o direito, na obra do pensador sovietico, e percebido como "a forma mistificada de uma relacao social bem especifica" (2017: 92). O papel da critica ao direito, nesse sentido, seria desmistificar a forma juridica, ou seja, descobrir o seu condicionamento historico. Com isso, a forma juridica assume o lugar de uma categoria central e diferencial na teoria de Pachukanis. Opondo-se aos normativistas (Kelsen, em especial), o autor investiga o fenomeno juridico nao da maneira tradicionalmente abstrata, mas sim procedendo "a analise da forma juridica, como de fato a encontramos" (2017: 75).

Basicamente, apoiando-se na critica a economia politica marxiana, Pachukanis aponta que a forma juridica e o reflexo inevitavel "da relacao entre os proprietarios de mercadorias" (2017: 95). Mais especificamente, o principio da troca de equivalentes--elemento estrutural da economia capitalista na teoria de Marx--e identificado como uma condicao fundamental da existencia da forma juridica nessa concepcao teorica. Em sintese, portanto, pode-se afirmar que Pachukanis encontra o condicionamento historico da forma juridica no desenvolvimento completo das relacoes de producao capitalistas.

As normas juridicas, assim, nao criam relacoes sociais; pelo contrario, surgem como necessidade da relacao de troca de mercadorias, na qual "aqueles que realizam a troca devem ser egoistas, isto e, devem guiar-se pelo calculo economico nu e cru" (2017: 154). O que interessa aqui e que, como consequencia dessa percepcao critica do fenomeno juridico, Pachukanis torna possivel a visualizacao das relacoes juridicas para alem de sua aparencia normativa.

Fazendo isso, Pachukanis acaba identificando que a obrigacao juridica nao possui um real sentido de dever enquanto comprometimento, mas apenas enquanto "responsabilidade" (2017: 114). Em um contrato, citando o exemplo utilizado pelo autor, os contratantes podem sempre escolher entre cumprir as normas pactuadas ou assumir a responsabilidade pelo descumprimento delas. No...

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