Lavagem de dinheiro no direito comparado: a experiência americana

AutorJairo Saddi
Páginas117-125

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Este artigo pretende contribuir para o debate do novo cabedal legislativo de lavagem de dinheiro que, entre nós, iniciou-se com a Lei 9.613, de 3.3.1998.

Como foi amplamente divulgado, nossa legislação inspira-se na Convenção de Viena de 1988, da qual o Brasil é signatário e cujo tratado foi ratificado em 1991, pelo Decreto 154/91.1 No entanto, não há como negar a grande influência dos Estados Unidos no processo de combate ao crime da lavagem de dinheiro. Segundo estimativas mais conservadoras, lá se encontra o maior mercado para tal crime: são cerca de 500 bilhões de dólares "lavados" anualmente.2 Assim, mesmo que nossa tradição de direito romano possa seguir modelos de sistematização legiferantes europeus, foram os americanos quem exerceram pressão para que nosso Congresso emanasse aquele diploma legal.3

Por meio deste artigo, pretende-se dar uma visão atualizada dos mecanismos legais que existem no direito norte-america-no sobre o assunto. Para tanto, será dividido em três partes, a saber: a história da lavagem de dinheiro nos Estados Unidos, o surgimento do termo e o contexto histórico; os vários diplomas legais existentes que dão forma jurídica ao combate a tal crime e, finalmente, quais as entidades e instituições existentes relacionadas com o tema e o seu envolvimento com a prevenção e a repressão ao crime em questão, sempre sob o prisma americano.

A própria expressão lavagem advém do direito americano, já que, em Portugal, se utiliza a terminologia branqueamento de dinheiro, evitada pelo nosso legislador porque, segundo ele, continha denotações racistas (sic).4

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Luiz Flávio Gomes estabelece uma diferenciação importante, talvez a principal distinção entre nosso diploma e o arcabouço jurídico americano. Ele escreve: "Em termos político-criminais o que se pode questionar é a distinção que se faz (desde a Convenção de Viena) entre o 'dinheiro sujo' e o 'dinheiro negro': este decorre da sonegação fiscal, da economia paralela; aquele deriva de outros ilícitos penais. Cabe observar, desde logo, que a lei brasileira acabou não criminalizando a lavagem do dinheiro 'negro', o que é politicamente cri ti -cável".5

No plano do direito internacional, muitas foram as iniciativas para combater a lavagem de dinheiro. Após a Convenção de Viena, destacamos os seguintes tratados, declarações ou convenções celebrados entre as nações: Declaração Conjunta dos Sete Países mais Industrializados (Paris, 1989); Declaração de Ministros de Estado (Londres, 1990); Programa de Ação Global da ONU (1983); Recomendação R-80 do Conselho Europeu da Comunidade Económica Europeia (1980); Convenção dos Bancos Suíços (1987); Declaração dos Princípios da Basileia (1988); Convenção e Diretiva da União Europeia (1991); Declaração de Ixtapa (México, 1990); Recomendação da OEA (1990); Declaração de Caracas (1990); Declaração de Cartagena (1991), apenas para citar algumas entre tantas.6

Nunca é demais situar o direito comparado em relação ao nosso. O intuito de nosso legislador ao elaborar a Lei 9.613 foi incluir o Brasil entre as nações que seguiram a já citada Convenção de Viena. Segundo Adrienne de Senna, presidente do Coaf, conselho governamental criado em cumprimento a essa lei, "vamos montar uma central de inteligência no Brasil, e, para isso, contamos com uma das mais modernas legislações do mundo".7 Muito se tem falado (e criticado) a lei em foco - que de fato é bastante imperfeita -, mas talvez poucos tenham se debruçado sobre o estudo de quais sejam as "mais modernas legislações do mundo".

A legislação americana, como veremos adiante, certamente não é - se é que há algo assim - uma legislação moderna. Neste caso, o Direito sempre acompanha mal os fatos sociais e não existe a menor possibilidade de uma legislação contra lavagem de dinheiro não se tornar anacrónica num curto período de tempo. Enfim, é o que resta. É útil, porém, mostrar que as influências recebidas pela lei americana não são "modernas" e elas mesmas sofrem de uma avassaladora carga de críticas.

1. Antecedentes históricos

Há muito que lavagem de dinheiro se relaciona intrinsecamente com tráfico de drogas. Segundo o penalista Luiz Flávio Gomes, a atividade ilícita manobra cerca de 1 trilhão de dólares e a criminalização de sua conduta constitui uma necessidade imperiosa. Diz o emérito jurista: "Para o controle do crime organizado é fundamental a criminalização da conduta de quem iava' (regulariza, legaliza ou legitima) o dinheiro obtido com as atividades da organização criminosa. Sem a possibilidade de legalização desse dinheiro haveria maior chance de controle das associações criminosas".8

Em Nápoles, em 1994, a ONU destacou o assunto nos seguintes termos: "A identificação dos grupos empresariais que aplicam o dinheiro do crime, um acordo para identificar as pessoas que movimentam mi-

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lhões de dólares sem ter como justificar, o sequestro dos bens adquiridos com o dinheiro do crime e o congelamento das fortunas conseguidas pelos criminosos são alguns pontos que necessitam de tratamento legal".9

No plano internacional, em geral se classificam as leis de lavagem de dinheiro em três grandes gerações: nas de primeira geração, o único crime antecedente é o crime do narcotráfico. Se for de qualquer outra natureza, será outro ilícito penal - a receptação: receber dolosa ou culposamente valores oriundos de qualquer tipo de crime. Já a segunda geração prevê como crimes antecedentes não somente o narcotráfico, mas também outros delitos graves que a lei elenca. De acordo com Joseph Beck-ford, o modelo de penalização instituído pela Convenção de Viena é de primeira geração, enquanto o regulamento do modelo da OEA, a Cicad (Conselho Internacional de Disposições sobre Drogas), de segunda geração. Entre os países que dispõem de legislações de primeira geração, ainda de acordo com Beckford, temos a Argentina (1989), e de segunda, Alemanha, Espanha (1993) e Portugal (1995).

Finalmente, as legislações de terceira geração se caracterizam pela universalidade. Neste caso, a lavagem de dinheiro abarca todo e qualquer tipo de ilícito, ou seja, os ilícitos antecedentes da lavagem são todos e quaisquer que tenham produzido recursos, transmutados ou não em fins lícitos. Eis alguns países que adotaram tal abordagem: Bélgica (1995), França (1996), Itália (1993), México (1990) e os Estados Unidos, objeto deste ensaio.10

Os antecedentes da lavagem de dinheiro datam de 1930. Meyer Lansky, contador de Al Capone, é citado como o precursor das técnicas de lavagem. Em outubro de 1931, Al Capone se deixa prender e é enviado para Alcatraz por uma razão excessivamente óbvia: evasão fiscal.11 Ele desenvol-ve então um raciocínio simplista, que seria mais tarde a base da lavagem de dinheiro: tudo aquilo que estivesse fora da jurisdição do IRS (Internai Revenue Service, a Receita Federal americana) era, por definição, ativos sobre os quais jamais incidiriam nenhum tipo de imposto. O historiador T. Clark afirma que foi Lansky quem financiou Fulgêncio Batista, apenas para se enganar posteriormente sobre a estabilidade política da pequena ilha que vinha servindo de refúgio para o dinheiro da Máfia.12

No desenrolar da Segunda Guerra Mundial deu-se um grande desenvolvimento, por assim dizer, primitivo, das técnicas de lavagem de dinheiro. Sabe-se hoje, com certo grau de certeza, que foi a Máfia que obteve permissão para o desembarque das tropas aliadas na Itália, assegurando a vitória sobre os países do Eixo. Igualmente se sabe que a Máfia americana expandiu em grande escala seus negócios - até então concentrados em atividades que surgiram em face da Lei Seca - e que passou a ter maior demanda por produtos voltados à lavagem de dinheiro.13

De toda forma, a própria expressão lavagem de dinheiro surge no cotidiano americano, segundo o Oxford English Dictio-nary, com o escândalo de Watergate. Em fevereiro de 1972, John Mitchell, chefe da CRP - Comité para a Reeleição do Presidente - e ex-sócio de Richard Nixon, consegue uma doação ilícita por parte da American Airlines e é obrigado a utilizar-se de mecanismos de lavagem de dinheiro para o financiamento da campanha e a invasão do prédio do Partido Democrata, mais tarde revelados pelo Washington Post, fatos que culminaram com a renúncia do Presidente Nixon.14

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Curiosamente, inexistiam leis de lavagem específicas salvo o Bank Secrecy Act, cuja origem datava da obrigação do dis-closure de origens de recursos - com finalidades tributárias muito mais do que penais. De qualquer forma, foi com base nessa lei e em razão do episódio de Watergate que o assunto se tornou importante nos Estados Unidos.15

A evolução histórica da lavagem de dinheiro...

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