O laudo CMS e a potencial orientação jurisprudencial nos casos contra a Argentina junto ao CIRCI

AutorLuis Fernando Corrêa da Silva Machado
Páginas77-108

Luis Fernando Corrêa da Silva Machado. Diplomata; mestre em Relações Internacionais pela UnB; bolsista da Academia de Direito Internacional da Haia; bolsista da Comissão Jurídica Inter-Americana; ex-diretor regional para a América Latina da International Law Students Association. lf@mre.gov.br

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1 Introdução

No plano internacional, desde a década de 1960, com o objetivo de estimular a atração de Investimento Estrangeiro Direto (IED)2, além de contratos de investimento entre

Estados e empresas, já se firmavam Acordos para a Promoção e Proteção Recíproca de Investimentos (APPIs) entre países industrializados e exportadores de capital, de um lado, e países em desenvolvimento – africanos e asiáticos, de outro, interessados em atrair IED, com vistas a prover segurança contra riscos não-comerciais aos investidores, ao estipular princípios, normas e remeter as contendas à esfera internacional. Somente a partir de meados da década de 1980, porém, os países latino-americanos passam a participar desse processo, pois, confrontados com a crise da dívida, passaram a exercer políticas voltadas para a maior integração à economia mundial. Esses países sempre foram reticentes quanto à adoção, em sua legislação interna, de convenções relativas ao IED e de solução de controvérsias internacionais. Nesse contexto, sobressai a doutrina Calvo3.

Diante desse cenário, também foi criado o Centro Internacional para a Resolução de Conflitos sobre Investimentos (CIRCI)4, cuja tarefa é prover facilidades para conciliação e arbitragem em relação às controvérsias sobre investimentos entre Estados-membros e nacionais de outros Estados-membros. De início, parece estranho que uma instituição financeira, mesmo que seja agência especializada das Nações Unidas, patrocinaria acordo sobre conflitos de investimentos entre Estados e investidores estrangeiros. No entanto, além de ser instituição de financiamento, o Banco Mundial, ao mesmo tempo, tem como uma das principais tarefas a promoção do desenvolvimento e acredita que o IED atua de forma benéfica para o crescimento das economias.

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Até outubro de 2005, 142 países depositaram instrumentos de ratificação da convenção no CIRCI. Embora o número de casos trazidos ao Centro tenha sido pequeno, com a proliferação de Acordos Bilaterais de Investimentos5, a partir do final da década de 1980, quando a maioria submete qualquer controvérsia entre investidores e Estados à jurisdição do CIRCI, o número de caso aumentou substancialmente6. Com o divisor de águas da década de 1990 para a política direcionada ao IED na América Latina, os países do continente tornaramse parte da Convenção7, inclusive a Argentina em 1994, com a permanência da recusa brasileira8. É o advento do direito transnacional, parte do direito internacional econômico, e a superação da fase na qual só se concebiam arbitragens intra-estatais.

A Argentina acedeu ao CIRCI por acreditar que, desse modo, geraria maior influxo de IED e encetaria vantagem competitiva importante no plano regional. Desde então, até setembro de 2004, cinco casos foram concluídos sob a jurisdição do Centro, e mais de trinta casos estão sob a análise dos árbitros do CIRCI. Em vista disso, a reflexão sobre se a adesão argentina ao CIRCI trouxe benefícios para aquele país é pertinente de ser avaliada pelo Brasil. Para países desprovidos de mercado nacional relevante, como o Uruguai e o Paraguai, é válida a construção de moldura jurídica e liberal relativa a investimentos. Nos casos brasileiro e argentino, por sua vez, deve-se ponderar se realmente serão vantajosas a assinatura de tais acordos e a submissão à jurisdição do Centro e às regras internacionais nessa matéria, em prol da atração de IED.

Vale ressaltar que, com o advento da crise financeira argentina de 2001, as demandas perante o CIRCI aumentaram de maneira vertiginosa, em decorrência daPage 79 reclamação dos investidores estrangeiros pela compensação das perdas sofridas pelas indústrias de gás, petróleo, telecomunicações, eletricidade e distribuição de água. Apenas em 2003, vinte corporações transnacionais recorreram a arbitragens contra a Argentina, sob a alegação da violação da garantia dos tratados de investimentos. Mais quatorze casos foram iniciados no CIRCI até outubro de 2005, o que levou à cifra de 34 casos atualmente sob julgamento. Ante esse quadro, o governo argentino, em 14 de outubro de 2004, emitiu comunicado, para solicitar o encerramento dos casos sem julgamento do mérito, uma vez que todos seriam injustificados, pois a Argentina estaria sob estado de calamidade pública, e não se aplicariam as disposições dos APPIs. Esses últimos acontecimentos tornam ainda mais relevante o estudo da experiência da Argentina para o Brasil e o Mercosul.

Neste trabalho, em primeiro momento, ao analisar os casos julgados pelo CIRCI envolvendo a Argentina até a crise de 2001, procurar-se-á destacar as principais contribuições para a consolidação da jurisprudência do Centro, pois, apesar de pouco numerosos, os laudos são estudados até hoje como leading cases na área, cuja repercussão condiciona outras nações a respeito de prós e contras de possível acessão ao Centro. Posteriormente, descrever-se-ão as razões apontadas pela literatura e por especialistas da crise argentina de 2001 e os litígios perante o CIRCI surgidos a partir de então. Para tanto, é necessário discorrer sobre os aspectos teóricos da modificação de contratos com Estados e os efeitos para a Argentina, dissecar a estratégia do país para a defesa perante as reclamações no CIRCI, o que engloba a criação de unidades para renegociação de contratos de serviços públicos e defesa arbitral. Em seguida, relatar-se-ão, brevemente, os casos iniciados com o fim da paridade cambial e os possíveis desdobramentos. Em outra seção, destacar-se-á o laudo “CMS Gás Transmission Company”, dada a importância para as orientações das futuras contendas com base nessa decisão. Por fim, serão tecidas considerações finais e condensadas as principais conclusões do artigo.

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2 Os casos julgados pelo circi envolvendo a Argentina até a crise de 2001

Antes da crise de 2001, cinco casos foram iniciados no âmbito do CIRCI envolvendo a Argentina9. Também foi julgado caso em que um nacional argentino, Emílio Agustín Maffezini, ganhou laudo contra o Reino da Espanha (doravante “Maffezini”)10. Entre os cinco procedimentos arbitrais, apenas em dois houve a condenação do Estado argentino, quais sejam, Compañia de Águas de Aconquija S.A. & Vivendi Universal (doravante “Vivendi”), relacionado à rescisão de contrato de concessão de água na província de Tucumán, e Houston Industries Energy, Inc and others (doravante “Houston”), que diz respeito a conflitos na distribuição de energia elétrica na província de Santiago del Estero, registrado no Centro em 25 de fevereiro de 1998. Nos outros casos, após iniciado o procedimento arbitral, as partes chegaram a acordo, e o procedimento arbitral foi interrompido11 conforme a regra 43(1)12 dos procedimentos de arbitragem.

3 Da questão da publicidade dos laudos arbitrais

Cabe ressaltar que os termos em que foram concluídos os acordos não estão disponíveis ao público. Esse é direito inerente das partes na arbitragem, reforçado pelas regras de arbitragem do CIRCI. O artigo 48, inciso 5 da Convenção de Washington reza que: “O Centro não publicará o laudo sem o consentimento das partes”. Entretanto, o Centro poderá incluir, em suas publicações, extratos das normas jurídicas aplicadas pelo Tribunal. Os únicos laudos que estão disponíveis ao público dessa época são o Vivendi e a decisão preliminar sobre jurisdição do caso Lanco International Inc. (doravante “Lanco”), referente à disputaPage 81 sobre terminais portuários em Buenos Aires, iniciado em 14 de outubro de 199713. Em recente pedido de parecer para a Procuradoria do Tesouro Nacional, tanto o laudo Vivendi quanto o laudo CMS Gás Transmission Company14 (doravante “CMS”), este último posterior à crise cuja análise mais apurada será realizada em seção abaixo, estão disponíveis ao público.

Em dezembro de 2003, por meio do expediente n. 2606, requereu-se o parecer da Procuradoria do Tesouro Nacional dos efeitos de publicar as decisões dos casos Vivendi e CMS. De início, o parecer ressaltou que a publicidade é erigida a princípio constitucional15. A rigor, a audiência pública encontra-se entre os direitos dos cidadãos ao controle e à participação dos aspectos reguladores dos serviços públicos, que deve ser prévia à decisão administrativa quando se tratar de atos de grave transcendência social. O princípio da publicidade, assim, é a regra. Excepcionalmente, em alguns casos que comprometam os direitos dos particulares ou em razão de defesa nacional, será válido romper esse postulado. Ao final, o parecer da Procuradoria conclui que a defesa do Estado argentino e as estratégias processuais utilizadas para a adequada defesa dos interesses nacionais não se encontravam comprometidas pela comunicação dos laudos à opinião pública.

Se é verdade que houve poucas decisões desse período e apenas uma disponível ao público alcançou a análise do mérito, tanto o caso Vivendi, cujo laudo condenou a República Argentina, quanto o caso Maffezini, que, apesar de não envolver a Argentina, conta com a participação...

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