Latifúndio, reforma agrária e políticas públicas para o campo brasileiro na crise sistêmica (1994-2015)

AutorJoaci de Sousa Cunha
CargoDoutor em História, assessor do CEAS e bolsista de pós-doutorado pela CAPES (PPGPSC-UCSAL)
Páginas10-37
Cadernos do CEAS, Salvador, n. 237, p. 196-224, 2016
LATIFÚNDIO, REFORMA AGRÁRIA E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA
O CAMPO BRASILEIRO NA CRISE SISTÊMICA (1994-2015)
Landlordism, land reform and public policies for the brazilian countryside in systemic
crisis (1994-2015)
Joaci de Sousa Cunha
Resumo
Este artigo discute as interfaces da crise sistêmica do capital com o processo de reprodução da estrutura
latifundiária no Brasil. Refletindo essa problemática, identifica as articulações do capital financeiro
especulativo com a agro-minero-exportação na apropriação dos recursos ambientais do país, o que,
dentre outros aspectos, vêm violando e restringindo a aplicação das políticas públicas sociais destinadas
aos povos do campo mesmo durante os governos Lula e Dilma, e que tende a se agravar com a assunção
do governo Michel Temer. A análise busca demonstrar a influência da agropecuária empresarial e da
mineração sobre as políticas públicas agrária e agrícola, setores que passaram a compartilhar com os
bancos e as corporações ligadas a construção pesada e ao petróleo, a condição de atores hegemônicos
da economia brasileira. A medida em que a agro-minero-exportação ganhou essa dimensão configurou-
se uma dependência político-econômica estatal cada vez maior em relação aos capitais que exploram
diretamente a natureza. Como consequência desse processo, o latifúndio reforçou a sua posição de eixo
dominante de reprodução do capital no Brasil, tornando-se também um campo privilegiado da
associação subordinada e submissa do capital nacional ao capital estrangeiro, pela qual o país exporta
sob a forma de commodities os seus recursos naturais estratégicos, sem qualquer planejamento soberano.
Palavras-chave: Crise estrutural. Latifúndio. Políticas públicas rurais. Agronegócio. Reforma agrária.
INTRODUÇÃO
Cotejando elementos da estrutura e da conjuntura brasileiras é possível perceber
efeitos da crise mundial sobre as políticas públicas de saúde, educação, transporte e segurança
etc. desde a década de 1990. As sucessivas reformas neoliberais desde essa década têm nos
levado a um contínuo processo de enfraquecimento das políticas públicas essenciais, elas
próprias objeto de um permanente processo de privatização e ou precarização. Sem desconhecer
o potencial do golpe de 2016 para desfigurar ainda mais essas políticas, não cabe aqui esconder
o fato de que para grande parte dos camponeses e sem terras, objeto deste artigo, a precarização
desses direitos está em curso há muitos anos, influenciada pela ampliação do setor primário da
economia. De fato, no novo contexto da divisão mundial do trabalho, essa ampliação do setor
primário significou para a economia brasileira voltar à condição essencial de fornecedor de
produtos agrícolas e minerais para os demais países industrializados do mundo.
Doutor em História, assessor do CEAS e bolsista de pós -doutorado pela CAPES (PPGPSC-UCSAL). E-mail:
2
Cadernos do CEAS, Salvador, n. 237, p. 196-224, 2016
Em boa medida, o ritmo de regressão das políticas públicas agrárias voltadas aos povos
do campo vem sendo ditado pelo crescimento da produção e exportação de commodities.
Tendência essa que, de resto, casa-se perfeitamente com o agrarismo das classes dominantes
nacionais, projeto este legado por nosso passado colonial, modelado pela história latifundiária,
escravista e agro-minero-exportadora.
Neste artigo, argumenta-se que no Brasil a hegemonia mundial do capital financeiro
especulativo tem promovido, sob o aspecto econômico, uma crescente exploração dos recursos
naturais, através de setores voltados para a exportação de produtos agrícolas, minerais e de
energia. Assim, observa-se uma acelerada mercantilização de bens como a terra, água e os
ventos. Esses bens, originalmente não mercantis, são consuetudinariamente de uso coletivo das
populações tradicionais, mas vêm sendo coercitivamente convertidos em propriedade privada,
por diferentes mecanismos de violência física e simbólica.
Sob o aspecto institucional, essa hegemonia interfere restringindo as políticas públicas
voltadas para os camponeses. Apesar da constante mobilização social desses sujeitos e da
permeabilidade institucional às suas pautas, o que se observa na análise é a sistemática renúncia
do Estado em regular o uso do território em termos de acesso à terra como um direito social. E
o que é mais grave, o Estado permanece como um instrumento direto da transformação das
terras públicas em ativos físicos do capital, facilitando uma intensa exploração da natureza pelos
grupos monopolistas-financeiros ou ainda o seu uso como reserva de valor. Aqui a análise
confirma a tese, segundo a qual o desenvolvimento capitalista dependeu e continua a depender
essencialmente das ações do Estado, inclusive para a “acumulação por espoliação” de que nos
fala David Harvey (2004).
Essa dependência leva à discussão de como o Estado sob governos presididos pelo
Partido dos Trabalhadores (PT) levou a cabo o projeto desses setores para o campo brasileiro.
A esse respeito, a análise dos outputs organizacionais do capital, realizada por Offe e
Wiesenthal (1984), pode ser usada para explicar a capacidade desse setor em influenciar o poder
estatal. Assim, supomos que a posição privilegiada ocupada pela agro-minero-exportação nos
aparelhos de estado no Brasil decorre do “sucesso estratégico” alcançado por ela na base
econômica nacional. De fato, controlando as decisões de produção sobre as principais
mercadorias de exportação do país, e vinculando-se ao capital estrangeiro, interessado em
commodities e na aquisição especulativa de terras, a agro-minero-exportação acabou por se
impor como modelo prioritário do desenvolvimento econômico-ambiental. Essa hegemonia foi

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