Lanches Acompanhados de Brinquedos: Comunicação Mercadológica Abusiva Dirigida à Criança e Prática de Venda Casada

AutorEkaterine Karageorgiadis
CargoAdvogada da Área de Defesa do Instituto Alana
Páginas11-39

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Excertos

“Quando adulto, o consumidor deixa de se interessar pelo brinquedo sem, no entanto, desinteressar-se pela marca que o fidelizou na infância, em cujas lojas encontrará um portfólio de produtos que atende a todas as faixas etárias”

“Se a publicidade por si só já influencia o público infantil, a possibilidade de proporcionar entretenimento à experiência de consumo é capaz de potencializá-la”

“Sem a oferta de qualquer prêmio as crianças sempre preferem os alimentos conhecidos como fast food. Mas os prêmios podem influenciar o desejo por qualquer tipo de produto”.

“A criança se acostuma a adotar o consumo pouco consciente e sustentável, pois desejará os combos pelo simples prazer imediato de ter um brinquedo em sua mão e poder colecioná-lo”

“Ao associar diversão, entretenimento, bens materiais como brinquedos e inserção social à ingestão de alimentos na sua grande maioria com altos teores de sódio, gordura e açúcares, as redes de lanchonetes criam uma lógica que incentiva a internalização de valores materialistas e consumistas, e a adoção de hábitos alimentares prejudiciais à saúde, em patente desrespeito a normas fundamentais de proteção dos direitos das crianças e dos consumidores”

“A consequência da exposição das crianças a conteúdos mercadológicos abusivos, que se aproveitam da fase de desenvolvimento em que se encontram, é a intensificação de fatores prejudiciais ao seu desenvolvimento, como transtornos alimentares e obesidade infantil, materialismo, consumismo, transtornos de comportamento, estresse familiar, dentre outros”

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1. Introdução

A venda de alimentos acompanhados de brinquedos ou “brindes”1 – exclusivos, efêmeros, colecionáveis e, na maioria das vezes, relacionados a personagens licenciados do universo infantil – pelas redes de fast food é prática antiga e corriqueira, mas nem por isso deixa de ser ética e juridicamente condenável.

A partir do que é verificado no Brasil, o artigo tem como objetivo analisar a venda de um “combo infantil” pelas lanchonetes enquanto estratégia de comunicação mercadológica abusiva dirigida a crianças e como prática de venda casada, condutas vedadas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Buscase ainda analisar o estímulo ao consumo de alimentos não saudáveis desde a infância e seu impacto para a conformação da epidemia de obesidade e sobrepeso infantis, que já atinge aproximadamente 15% e 30% da população brasileira, respectivamente (IBGE, 2008-20092).

Serão abordadas as normas federais brasileiras de proteção dos direitos das crianças e dos consumidores sob o aspecto das práticas comerciais abusivas, como também a discussão em torno do tema, envolvendo recentes iniciativas legislativas estaduais e municipais no Brasil que indicam a necessidade de regulamentação mais específica da venda de alimentos acompanhados de itens atrativos para as crianças.

O objetivo principal é fomentar o debate público, especialmente para fornecer subsídios para que os órgãos competentes promovam a efetiva fiscalização da conduta dos fornecedores, a fim de que as empresas adequem suas condutas em respeito ao seu público-alvo e ao mercado de consumo.

2. Lanches com brinquedos: influência sobre o público infantil

Hábitos alimentares se formam na infância e, cientes disso, as empresas buscam fidelizar desde muito cedo as crianças às marcas, pensando nelas como consumidoras não só no presente como também no futuro, quando adultos virem a ser.

Nesse sentido diversas redes de fast food oferecem diretamente às crianças brinquedos ou outros produtos atrativos acompanhados de um determinado conjunto de alimentos3, que caracterizam um “combo” promocional infantil4. A “surpresa” é anunciada nos pontos de venda e também nos meios de

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comunicação – publicidade em televisão, rádios, banners, páginas de internet etc. – e, em razão do interesse que desperta, passa a ser não um elemento acessório ao alimento, mas a razão principal da sua compra.

Os itens que acompanham os lanches caracterizam-se por serem exclusivos (ou seja, não podem ser adquiridos em outros lugares), efêmeros (ao fim da promoção de prazo determinado são substituídos por outra série de brinquedos) e quase sempre colecionáveis (são ofertados vários brinquedos associados a uma mesma temática, como um filme infantil, por exemplo, e o conjunto possui uma quantidade de brinquedos igual ou superior ao número de semanas em que a oferta vige).

A publicidade e o desenvolvimento de promoções com a distribuição de brinquedos associados a alimentos são fatores que interferem significativamente na conformação dos hábitos e valores, inclusive alimentares, das crianças, na medida em que transformam práticas de consumo necessárias – como, por exemplo, alimentar-se – em atitudes consumistas: alimentar-se em determinada rede de lanchonete para adquirir o brinde que completa a coleção. Quando adulto, o consumidor deixa de se interessar pelo brinquedo sem, no entanto, desinteressar-se pela marca que o fidelizou na infância, em cujas lojas encontrará um portfólio de produtos que atende a todas as faixas etárias.

Certo é que há variantes quanto aos alimentos que integram o combo das redes de lanchonetes, sua composição nutricional e tipo de brindes oferecidos. Mas em todos os casos o direcionamento do produto e de sua publicidade é feito à criança, por meio de um conjunto de estratégias que buscam atrair seu interesse e despertar seus desejos e vontades, como a associação com personagens pertencentes ao imaginário infantil, o uso de animações, jingles, cenários lúdicos e coloridos etc. Com isso, a ação interfere na sua esfera de liberdade, e na de seus pais. Frequentemente, o adulto, enquanto responsável por uma criança, é por ela pressionado a comprar o lanche para adquirir o brinquedo. E, enquanto consumidor, é induzido pelo fornecedor a acreditar que a oferta lhe é vantajosa, por ganhar “de graça” o presente.

Ademais, não são poucas as cadeias alimentícias que adotam essa prática, não sendo impossível imaginar uma criança que deseje completar todas as coleções disponíveis, em curto período de tempo – que sempre são seguidas por novas coleções, sucessiva e indefinidamente.

Pablo José Assolini (2008)5, estudioso do tema, em artigo sobre o eatertainment, ou seja, a associação de alimentos a entretenimento, aborda a influência dos brinquedos sobre o comportamento das crianças:

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Se a publicidade por si só já influencia o público infantil, a possibilidade de proporcionar entretenimento à experiência de consumo é capaz de potencializála. A estratégia tem crescido muito, principalmente na indústria de alimentos. (...) Segundo Linn (2006, p. 133) nos últimos anos, a literatura de marketing centrou-se na necessidade de a comida ser ‘divertida’. A indústria de alimentos refere-se ao fenômeno como ‘eatertainment’ (comertimento). (...)

Essa estratégia funciona especialmente com o público infantil, porque ele dá preferência às escolhas que resultam em ganhos imediatos. Um dos exemplos da prática é o fornecimento de ‘brindes’, frequentemente atrelado à compra de determinado produto. Para Kapferer (1987, p. 151) ‘o brinde que vem dentro da embalagem é o preferido das crianças, por ser imediato e palpável, diferente de desconto sobre o preço do produto, vale brinde. (...) Em geral, elas preferem a certeza de um prêmio pequeno à incerteza de um prêmio grande’.

A ideia de proporcionar entretenimento no ato de consumir um produto alimentício torna-se ainda mais atraente quando envolve um personagem que faz parte do cotidiano das crianças, como um herói da televisão, por exemplo. Isso porque a criança, em nossa sociedade, tem a TV como uma mídia familiar. A pequena reprodução do herói no brinde permite que ela reveja seus personagens favoritos. Melhor que isso: ela ainda pode levá-lo para casa, para que possa fazer parte de suas brincadeiras (KAPFERER, 1987, p. 152). Para Linn (2006, p. 129-130) ‘as corporações estão tentando estabelecer uma situação na qual as crianças fiquem expostas às suas marcas no maior número de lugares possível (...) no decorrer de suas atividades diárias’.

As referências que grande parte do público infantil tem sobre alimentação estão diretamente ligadas às que são apresentadas para ela na TV, na internet e em outros meios tecnológicos. E o que é posto em destaque pela propaganda não é o valor nutricional dos alimentos, mas a capacidade de entreter, de tornar o cotidiano da criança mais divertido. (grifos nossos)

No mesmo sentido, pesquisa publicada pela American Marketing Association6avaliou se a presença de brinquedos colecionáveis, oferecidos por meio de publicidade, poderia influenciar a percepção de determinados alimentos por crianças em idade pré-escolar. Foram usados brinquedos colecionáveis e não colecionáveis, além da ausência deles, associados com alimentos denominados pelos pesquisadores como “saudáveis” (na pesquisa utilizou-se como parâmetro um combo composto por sopa, vegetais e leite) e “não saudáveis” (no experimento usou-se pizza pequena, fritas e refrigerante).

Segundo seus autores, pesquisas internacionais realizadas desde a década de 1970 revelam que a oferta de um prêmio em publicidades de alimentos,

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como cereais matinais, influencia a escolha de determinadas marcas por crianças, o que é verificado em observações realizadas nos corredores de supermercados, que demonstram que seus pedidos são baseados em publicidades televisivas direcionadas a...

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