Neoescravidão Urbana: Condições Laborais Degradantes de Trabalhadores com Deficiência no Setor Terciário

AutorAriolino Neres Sousa Júnior
CargoMestre em Direito das Relações Sociais e Interesses Difusos (UNAMA)
Páginas33-41

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1. Introdução

A presente pesquisa é reflexo de uma preocupação acadêmica e pessoal que começou a se desenvolver a partir do término da graduação em direito, chegando até o momento atual. Logo, associar o estudo das pessoas com deficiência em relação ao mundo do trabalho se constitui a principal trajetória científica que vem sendo percorrida. Entretanto, é importante afirmar que grupos socialmente mais vulneráveis, como as mulheres, as populações afro-descendentes e as demais populações socialmente excluídas, com destaque para as pessoas com deficiência, sempre foram vítimas, ao longo da história da humanidade, de atitudes discriminatórias praticadas pelos detentores do poder, isto é, o Estado, empregadores, grupos religiosos conservadores e extremistas, entre outros.

Especificamente retratando as pessoas com deficiência, a atribuição de adjetivos pejorativos que consideravam como "serem inferiores", "inúteis", "inválidos" etc, sinalizava a prática da discriminação promovida pelos grupos dominantes do poder, cujo resultado foi promover o afastamento delas do convívio social, reduzindo-as, assim, a condições subumanas de vida. Muito embora, atualmente, haja uma legislação nacional e internacional direcionada à defesa dos direitos em prol das pessoas com deficiência, no Brasil a discriminação praticada por alguns empregadores ainda continua sendo uma triste realidade, presenciada principalmente no interior de alguns ambientes laborais de empresas públicas e privadas da economia brasileira, com destaque ao setor terciário em suas ativida-des de construção civil, comércio lojista, artesanato, serviço doméstico, entre outras. Este setor é re-

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ferenciado, pois é o que tem absorvido o maior contingente de mão de obra de trabalhadores com ou sem deficiência nos últimos anos. comparado aos demais setores da economia, conforme a comprovação de dados estatísticos recentes divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em seu órgão Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED)1.

Por outro lado, estudar as condições degradantes do trabalho di-recionado às pessoas com deficiência não é uma tarefa simples. Pelo contrário, órgãos como Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e Justiça do Trabalho têm constantemente verificado, perante o setor terciário nacional, a presença de elementos específicos que caracterizam o advento de trabalho em condições degradantes para as pessoas com deficiência, dentre os quais está, por exemplo, o não fornecimento de equipamentos de segurança e proteção individual (EPIs) para aquelas atividades laborais de riscos à saúde; o descumprimento legal da promoção à acessibilidade2 locomoção; a baixa remuneração salarial paga aos trabalhadores com deficiência comparada aos demais trabalhadores sem deficiência voltada para um mesmo ramo de atividade laborai; o exercício de atividades laborais totalmente incompatíveis com o tipo específico de deficiência apresentada por aquele trabalhador; a violência psicológica advinda do assédio moral ou de atitudes discriminatórias praticada por alguns empregadores, entre outras práticas.

Portanto, apesar da presença dos elementos elencados anteriormente, poder contribuir na ampliação dos conhecimentos sobre a temática em questão, com o propósito de promover uma discussão e análise acerca da atual situação de condições degradantes do trabalho vivenciada por uma parcela de trabalhadores com deficiência, com suporte contratual válido, no ambiente laboral do setor terciário brasileiro, é meta a ser explanada neste trabalho.

2. Neoescravidão urbana: conceito e características

Cotidianamente, tem-se presenciado situações que, vez ou outra, são noticiadas pelos veículos de comunicação relatando a ocorrência do "trabalho escravo". Segundo José Cláudio Brito Filho2, "de todas as formas de superexploração do trabalho, com certeza o trabalho em condição análoga à de escravo, ou, como é mais conhecido, o trabalho escravo, é a mais grave", além do quê, o trabalho escravo "é a violação mais grave da dignidade da pessoa humana"3. Não obstante a doutrina majoritária considerar a ocorrência do trabalho escravo, há posicionamentos doutrinários que discordam de sua existência, por entenderem que há apenas o desrespeito de algumas normas da CLT no que tange às "condições inadequadas de alojamento e alimentação, ainda mais quando se consideram os padrões, sempre bastante elevados e completamen-te irrealistas requeridos pelas normas trabalhistas"4.

Por outro lado, ressalta-se que, inicialmente, o Brasil ratificou as Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)5 acerca da proibição e combate ao trabalho escravo. Porém, a análise do conceito de "trabalho escravo", perante o ordenamento jurídico nacional, foi ampliada após o advento da Lei 10.803, de 11 de dezembro de 2003, na regra do artigo 149 do Código Penal, que passou a considerar o trabalho escravo como género, aceitando quatro novas espécies de sua exe-cução: sujeição alheia a trabalhos forçados; sujeição alheia a jornada exaustiva; sujeição alheia a condições degradantes de trabalho, e restrição, por qualquer meio, da locomoção alheia em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.6

Antes do advento da legislação penal, a compreensão acerca do trabalho escravo era genérica, pois a redação original do artigo 149 informava que o delito em tela se consumava, a partir do momento em que a vítima obtinha a restrição de sua liberdade, reduzindo-a, tão somente, a condição jurídica de coisa6. Com o surgimento da nova lei, o conceito de "trabalho escravo" foi ampliado, sendo que a análise da "liberdade" ficou restrita a um dos elementos que é o "trabalho forçado", ao passo que a "dignidade da pessoa humana" passou a assumir o fundamento maior para a proibição de todas as formas de redução do homem à condição análoga à de escravo. Por esse motivo, o trabalho escravo pode ser considerado como "o exercício do trabalho humano em que há restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador, e/ ou quando não são respeitados os direitos mínimos da dignidade do trabalhador"7.

Além disso, é notório que o trabalho escravo ainda continua vitimando muitos trabalhadores brasileiros, cuja maior incidência é presenciada no meio rural em virtude de heranças históricas deixadas por um passado colonial que insiste em perpetuar aquele cenário social. Contudo, é importante afirmar que o ambiente urbano brasileiro também tem sido palco do crescimento do trabalho escravo, principalmente no setor terciário de economia, pois este último, nos últimos anos, é o que tem obtido o maior crescimento económico, absorvendo

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um maior contingente de mão de obra de trabalhadores. Ratificando o crescimento do trabalho escravo no ambiente urbano, Wilson Ra-mos Filho8 chama atenção para o fato de que: mais conhecido como "neoescravidão urbana", tem-se a presença de trabalhadores que, mesmo estando com seu registro devidamente realizado em seu contrato de trabalho, são reduzidos à condição de trabalho escravo urbano, uma vez que seus direitos fundamentais sociais, dentre os quais está o direito do trabalho, vêm sendo descum-pridos por parte dos tomadores de serviço. No caso específico dos trabalhadores com deficiência, tal situação também é vivenciada em decorrência do descumprimento da legislação constitucional e in-fraconstitucional de proteção aos direitos desses sujeitos, dentre os quais está o direito à acessibilidade; direito ao trabalho; direito à proteção à discriminação/preconceito, entre outros10.

"Do ponto de vista analítico, além do trabalho escravo rural contemporâneo, mais frequentemente explorado e, por tal razão, noticiado, diferenciem-se duas outras espécies de 'trabalho escravo urbano contemporâneo', a primeira, o trabalho prestado nas cidades em condições análogas à de escravo sem suporte contratual válido, e, a segunda, o trabalho oferecido nas cidades com suporte contratual prestado em situações análogas à de escravos, cuja descrição e tipi-ficação encontram-se no Código Penal, em seu artigo 149, alterado pela Lei n. 10.803/2003. A essa segunda espécie, prestado nas cidades, com suporte contratual válido, por trabalhadores em situação análoga à de escravos, propõe-se a denominação 'neoescravidão urbana' ou a denominação de 'trabalho urbano prestado em condições de neoescravidão'."

Considerando o comentário retro, o trabalho escravo urbano contemporâneo sem a presença do suporte contratual válido assemelha-se com o trabalho escravo rural realizado no período do Brasil colonial, em que havia o trabalho exercido pela mão de obra escrava negra, laborando em condições aviltantes, cujas vítimas tinham sua liberdade totalmente tolida pelos senhores escravocratas. Atual-mente, o trabalho escravo urbano contemporâneo sem a presença do suporte contratual válido reconhece na figura dos trabalhadores imigrantes clandestinos um de seus exemplos de ocorrência, além de outras situações como o tráfico de pessoas para fins sexuais ou dos "soldados do tráfico de drogas", ou, ainda, pessoas empregadas em casas de jogos, e outros tantos9. Com relação ao trabalho escravo urbano contemporâneo com a presença do suporte contratual válido.

Conforme ressaltado anteriormente, a Lei 10.803/03, ao modificar a regra do artigo 149 do Código Penal, possibilitou que o trabalho escravo passasse a ser analisado sob novas espécies ca-racterizadoras, dentre as quais estão as "condições degradantes de trabalho".10 Mesmo com o advento da nova legislação, porém, continua não havendo um conceito fechado e pré-definido acerca da definição de "trabalho degradante", pelo...

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