Kant e Nietzsche: ascensão e queda da moral moderna

AutorPatrícia Pavesi
Páginas202-225

Patrícia Pavesi. Mestra em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (2003). Professora titular do Departamento de Ciências Sociais da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo). Pesquisadora dos temas: cultura contemporânea, antropologia do consumo e cybercultura.

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Colocação do problema

Muito se fala hoje em dia em crise de paradigmas, queda de referenciais e fragmentação. Não só se fala como são apontados fatos históricos que evidenciam tal tendência no comportamento coletivo das sociedades ocidentais.

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Para que se proceda qualquer tipo de fragmentação, é pressuposto que em algum momento tenha havido algum tipo de solidez, de univocidade. Tal conceito de fragmentação traz em si, já implicada a noção de unidade como condição de sua vigência.

Pode parecer tolo diante das discussões filosóficas atuais, a insistência na compreensão do “uno”, do “sólido”, universal e a priori, haja vista que é corrente a consideração de que esta noção seja coisa ultrapassada, mas lembremos que o conteúdo de qualquer negação é condição mesma para que ela exista.

Pensando desta forma, antes de qualquer crítica, desejamos compreender um pouco mais o que por força do nosso tempo, e teórica e politicamente buscamos superar.

O que buscamos superar no plano das discussões teóricas é classificado hoje como Tradição Filosófica Ocidental. O que classificamos como Tradição Filosófica Ocidental constitui o esforço sistemático que nossa civilização empreendeu no intuito de construir e cultivar referências sólidas como meio para a consolidação de sua existência cultural e política. Tal esforço se expressa nas diferentes dimensões da experiência de todos e de cada um de seus protagonistas, desde o seu limiar até as mais recentes configurações de sua história.

Dedicar-nos-emos à apreensão de uma destas dimensões, ou seja, a moral. Dada a amplitude desta, e a profunda limitação de qualquer investigador, limitar-nos-emos ainda a estudá-la em uma de suas expressões situada num tempo e num espaço específicos. O cenário será a Modernidade por ser apontada como o apogeu do projeto metafísico, empreendido pelo esforço ontológico característico da Filosofia no Ocidente.

O estudo das perspectivas éticas modernas objetiva exatamente compreender o momento de plenificação do projeto metafísico da Filosofia Ocidental. Momento de afirmação do “fixo” e da “estabilidade”, da negação máxima do caos e do devir. Em contrapartida, a escolha de tal período se justifica também no fato deste conter, a nosso ver, inversamente proporcional ao que o faz vigorar, as sementes de sua própria ruína, processo que se verificará nos chamados tempos contemporâneos, contexto histórico imediatamente posterior ao tempo em questão.

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Por termos consciência da ambivalente riqueza dos tempos modernos, expressa em seus postulados morais, buscando limitar a discussão, destacaremos as reflexões éticas do filósofo que consideramos uma das expressões mais fiéis de seu espírito, Immanuel Kant.

Os apontamentos acerca da moral kantiana visam explicitar, justamente, o processo de plenificação do projeto metafísico da Tradição levado às últimas conseqüências na Modernidade e, o engendramento de sua própria dissolução, possibilidade aberta por uma tendência crítica a partir daí instaurada.

Para efeitos didáticos, primeiramente, procuraremos dar conta, de uma maneira geral, do caminho per-feito pelo sujeito ocidental em seu processo de autoconstituição, expresso na história de suas idéias. Para tal, partiremos de seus primeiros passos na construção da Filosofia, no mundo grego. passando pela Idade Latina, alcançando finalmente os Tempos Modernos. Designaremos inicialmente o momento Tradição, o momento greco-latino, posteriormente, mais precisamente a partir do momento de crítica a Kant, chamaremos Tradição toda a filosofia produzida até Nietzsche.

Paralela à caracterização da Filosofia, buscaremos situar em termos éticos os momentos destacados.

Traçada uma abordagem mais atenta à ética, adentraremos à moral kantiana, partindo da apresentação de sua antropologia filosófica, passando por sua epistemologia, finalmente alcançando o domínio da razão prática enfocando a noção de vontade boa e interioridade. Na crítica aos princípios kantianos, será privilegiada a argumentação de Nietzsche, fala mais próxima das especulações éticas atuais, que se apresenta como uma das fontes mais importantes de argumentação relativa à desconstrução dos valores no interior da Filosofia, a partir do século XIX. Desta forma julgamos que, como se pode ver, no retorno ao “velho”, a intenção maior não é a de reafirmá-lo, mas não incorrer no erro de negá-lo, sem compreendê-lo. Discutir os princípios da moralidade moderna a partir de Kant pode contribuir para uma percepção mais clara da já mencionada queda de padrões nas formas culturais contemporâneas, alcançando assim, paradoxalmente a serena e ao mesmo tempo dilacerante consciência de que carregamos em nosso ser e fazer, na posição histórica de sujeitosPage 205 contemporâneos, em graus próximos de intensidade, tanto a tendência a desejar solidez quanto fragmentação em nossas experiências, das mais simples às mais complexas.

A ética e a busca da arché

A Antigüidade é a parideira da Filosofia. De fato, é o mundo grego o chão fértil em que se articulam as primeiras experiências de pensamento do homem ocidental conforme critérios de racionalidade, sistematicidade, universalidade e rigorosidade; critérios estes que, diga-se de passagem, são formulados nos próprios Bálcãs.

Os traços da Filosofia nascente vão se constituindo a partir da lenta passagem da representação dos mitos a uma crescente racionalização tanto na maneira de formular as questões, quanto na construção das respostas. Obviamente, fatores de ordem histórica vão atuar de forma determinante neste processo: fatos relevantes como a difusão da escrita alfabética, o contato crescente com povos de procedência cultural distinta, a crescente urbanização do mundo grego, o advento da moeda como unidade simbólica de troca etc.

O que se verifica desde os Pré-Socráticos é um notável esforço de encontrar uma possível raiz primeira que servisse de resposta a todas as coisas. O que consistiria na busca do fundamento, da essência, do princípio:

Tales foi o primeiro a afirmar a existência de um princípio originário único, causa de todas as coisas que existem (...) Princípio (arché) não é um termo de Tales (talvez tenha sido introduzido por seu discípulo Anaximandro, mas alguns pensam numa origem ainda mais tardia), mas é certamente o termo que indica melhor que qualquer outro o conceito daquele quid do qual derivam todas as coisas. (ANTISERI&REALE, 1993, p.30)

Esta tendência será o fio condutor de todos os que se seguem a Tales. Embora atribuam nomes e conteúdos diferentes a este fundamento, será a busca pela arché que orientará o trabalho dos filósofos ocidentais nos diferentes tempos e espaços históricos. A arché é compreendida como o elemento que, dando origem às coisas, nelas impera garantindo seu vigor enquanto gozam de existência presente, e permanecem após sua desintegração não deixando que se esgotem.

Assim o princípio é: a) a fonte e origem de todas as coisas; b) a foz ou termo último de todas as coisas; c) o sustentáculo permanente que mantém todas asPage 206 coisas (a substância, poderíamos dizer, usando termo posterior). Em suma, o princípio pode ser definido como aquilo do qual provêm, aquilo no qual se concluzem e aquilo pelo qual subsistem todas as coisas. (ATISERI & REALE, 1993 p.30)

Será exatamente na determinação do lugar do fundamento que Filosofia Clássica e Modernidade tomarão rumos diferentes. Muito mais que mudança no conteúdo, o que se verificará na passagem da Filosofia Clássica à Modernidade, é a alteração na concepção do cerne, do espaço em que se enraizará. Na configuração do fundamento nas diversas escolas de pensamento da Tradição, pode se verificar uma gradual elaboração representativa. A princípio, são estabelecidas determinações de ordem naturalista, que podem ser explicitadas nas definições do próprio Tales e de Heráclito quando atribuem água e fogo, respectivamente, à origem de todas as coisas. À vigência do naturalismo, emerge, num grau de crescente racionalização, a Escola Pitagórica que substituirá a realidade material do fundamento, por uma de regime conceitual, com a atribuição das formas categorizadas por símbolos matemáticos como substrato do real, como a sua arché.

Certamente Sócrates, Platão e Aristóteles com os conceitos de idéia e forma, que deram cabo ao que consistirá no que podemos chamar de “esforço metafísico”, inclinação que dará a tônica às investigações posteriores que se elevarão em torno do fundamento. O “esforço metafísico” já é o momento da colocação das respostas à realidade num plano metaempírico, num mundo etéreo, não identificável a qualquer elemento de ordem material. O que já representava dentro da própria tradição, alterações na disposição qüiditativa.

A Metafísica é um conhecimento racional apriorístico, isto é, não se baseia nos dados conhecidos diretamente pela experiência sensível ou sensorial (nos dados empíricos), mas nos puros conceitos formulados pelo pensamento puro ou pelo intelecto. (CHAUÍ, 1998, p. 207)

O entendimento de que subjaz um fundamento a todas as coisas, inspirou o homem ocidental não apenas a erigir certos conceitos em resposta à possibilidade de construção do conhecimento, mas sobretudo, tem orientado sua conduta ao longo da história.

O fazer cotidiano, as ações diante da natureza e dos outros de si têm sido profundamente marcadas pela busca da arché. Conhecer o fundamento torna-se experiência que envolve a totalidade do ser do homem, procura assumida...

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