Processo justo: o ônus da prova à luz dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo

AutorFlávio Mirza
CargoDoutor em Direito (UGF). Professor Adjunto de Direito Processual da UERJ (graduação, mestrado e doutorado). Professor Adjunto no Centro de Ciências Jurídicas da UCP. Advogado
Páginas540-559

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1. Delimitação e justificativa

O objeto do singelo estudo restringe-se ao ônus da prova, em seu aspecto objetivo, nas ações penais condenatórias. 1 Tal será analisado à luz dos princípios da Presunção de Inocência e do in dubio pro reo, considerando-se que, ao final do processo, depare-se o julgador com inarredável incerteza sobre algum fato relevante para o julgamento do pedido.

Eventuais questões/implicações atinentes ao âmbito cível não serão estudadas. Assim, caso deseje afastar eventual demanda reparatória, o réu deverá, por exemplo, fazer prova de que não concorreu para a infração penal (artigo 386, IV, do CPP).

Importa salientar, outrossim, que diversos conceitos, como por exemplo, o de ônus, foram expostos de modo sintético, para não alongar o trabalho.

Por fim, o trabalho justifica-se pela necessidade de fomentar o debate, mormente após o advento da lei 11.690/08, promulgada no bojo de uma "reforma" 2 do Código de Page 541 Processo Penal. Com efeito, a nova redação, dada aos artigos 156 e 386, VI, do mencionado Codex, enseja algumas considerações visando reacender o debate sobre a matéria.

2. O ônus da prova no processo penal

O termo ônus é comumente associado a uma obrigação, um dever, um peso, uma carga etc.

No aspecto jurídico, o ônus é um imperativo do próprio interesse, uma espécie de faculdade. Trata-se de uma posição jurídica ativa, onde não há posição contrária (contraposta) e sequer sanção em caso de descumprimento. 3 É um encargo a ser desincumbido pelo próprio sujeito ativo (e em seu proveito).

O Código de Processo Civil, em seu artigo 333, dispõe sobre o ônus da prova de modo expresso. Cabe, destarte, ao autor provar o(s) fato(s) constitutivo(s) de seu direito e, ao réu, eventuais fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que o autor alega possuir. É o que se convencionou denominar de aspecto subjetivo do ônus da prova 4, de menor importância em virtude do princípio da comunhão da prova.

Entretanto, pode haver dúvidas na hora de julgar. Ou seja, mesmo após a produção da prova e as alegações das partes, o juiz pode não se sentir apto a proferir uma decisão. Sendo-lhe defeso pronunciar o non liquet, deve socorrer-se das regras de distribuição do ônus da prova. Tais devem ser vistas como "regra de julgamento", em caso de dúvida insuperável (vale dizer: se o julgador estiver convencido, que sentencie). É o aspecto objetivo do ônus da prova.

O Código de Processo Penal, notadamente arcaico e carente de boa sistemática, não trata da matéria com maior rigor. 5 A doutrina, por sua vez, não enfoca a questão de modo Page 542 coerente com os princípios constitucionais e processuais penais (infra-constitucionais). Proclama a adoção dos mencionados princípios, porém, na hora de aplicá-los, tenta restringi-los ou acaba infirmando-os, ainda que sem se aperceber.

Como antecipado anteriormente, as regras acerca do ônus (objetivo) da prova servem de rumo ao juiz na hora de julgar, quando os fatos narrados na denúncia (ou queixa) não estiverem demonstrados.

Evidentemente, o chamado ônus objetivo da prova não é, em verdade, um ônus. Ou seja, sob o ponto de vista técnico, não se trata de um encargo para consigo. Logo, foge ao conceito de ônus, devendo, pois, ser visto como regra de julgamento.

Cometida uma infração penal, ou melhor, havendo prova mínima (justa causa) do cometimento de um crime surge para o Ministério Público o poder-dever de agir. 6

Por meio da denúncia ou da queixa (petições iniciais do processo penal), o Parquet (ou o querelante) deve imputar um fato criminoso, com todas as circunstâncias jurídicas relevantes, consoante o disposto no artigo 41 do CPP.

Citado, o réu, em conjunto com seu defensor, será chamado a defender-se 7, apresentando resposta escrita. 8

A acusação (Ministério Público ou querelante) deverá provar, cabalmente, os fatos deduzidos na denúncia (queixa), com todas as suas circunstâncias relevantes (artigo 41 do Código de Processo Penal). Ou seja, o(s) fato(s) constitutivo(s) de seu direito. Ao réu cabe, tão somente, opor-se à pretensão do acusador, ou seja, o ônus da prova é todo da acusação. Vale mencionar que a dúvida quantos aos fatos constitutivos leva, inexoravelmente, à absolvição. A rigor, o réu não alega fato algum, apenas opõe-se à pretensão ministerial ou àquela do querelante. Isto porque é presumidamente inocente 9 e a dúvida o socorre, sendo a absolvição medida que se impõe. 10 Page 543

Antes de retomar o tema, seguem breves explanações sobre a Presunção de Inocência (consagrada em nível constitucional) e o in dubio pro reo.

2.1. Da Presunção de Inocência

O princípio da Presunção de Inocência 11, amplamente conhecido no âmbito internacional, remonta aos postulados fundamentais que presidiram a reforma do sistema repressivo empreendido pela revolução liberal do séc. XVIII 12. Assinalam alguns autores que o aludido princípio seria a versão técnica do clássico in dubio pro reo 13, embora a origem deste último possa ser vislumbrada desde o direito romano, influenciado pelo Cristianismo. 14

A Presunção de Inocência foi consagrada pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, cujo art. 9º proclamava o duplo significado do preceito idealizado pela Assembléia Nacional Francesa. 15 De um lado, regra processual, segundo a qual o acusado não é obrigado a fornecer provas de sua inocência, que é presumida; de outro, regra de tratamento, impedindo a adoção de medidas restritivas da liberdade do acusado, ressalvados os casos de absoluta necessidade. 16 Page 544

O apelo à Presunção de Inocência como direito natural, inalienável e sagrado do homem, surgiu como resposta às exigências iluministas, que partiam da premissa de que era preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente. Em última instância, clamava-se pela substituição do procedimento inquisitório do ancien régime por um processo penal que assegurasse a estrita legalidade das punições, bem como a igualdade entre a acusação e a defesa. 17

Após a desastrosa experiência da Segunda Guerra Mundial, o princípio se disseminou, embasado, sobretudo, pelo pensamento jurídico-liberal, sendo acolhido por importantes diplomas jurídicos internacionais, como meio de afirmação dos valores fundamentais da pessoa humana.

Assim, dentre as disposições relativas às garantias do justo processo, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela ONU em 1948, dispõe em seu art. 11.1 que "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se prove sua culpabilidade, conforme a lei e em juízo público no qual sejam asseguradas todas as garantias necessárias à defesa". O princípio vem relacionado, portanto, à efetividade do direito e à tutela jurisdicional.

Já o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, assinado pela Assembléia Geral da ONU, em 1966, além de reafirmar o direito à Presunção de Inocência (art. 14.2), trata mais detalhadamente das garantias mínimas em favor de toda pessoa acusada da prática de um delito (art. 14.3).

No entanto, apesar da enumeração minuciosa e exaustiva dessas garantias, as Nações Unidas são criticadas por não possuírem mecanismos eficientes para sua aplicação prática, reduzindo sua tutela a recomendações de cunho político. 18

Cumpre observar que dispositivos semelhantes foram introduzidos na Convenção Européia para a proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (art. 6.2). A grande inovação do sistema europeu consistiu em conferir maior efetividade à defesa Page 545 desses direitos, mediante a previsão de recurso individual à Comissão Européia, assim como aplicação de sanções aos governos violadores dos direitos assegurados. 19

No continente americano, a Convenção sobre Direitos Humanos, assinada na Conferência de San José, Costa Rica, em 1969 ("Pacto de San José de Costa Rica"), subscrita por nosso país, assegurou a Presunção de Inocência, em seu art. 8º, ao afirmar que "(...) toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se comprove legalmente sua culpa". 20

No plano doutrinário e programático devem ser destacadas as propostas contidas nos Projetos de Código Penal e Processo Penal - Tipos, previstos para a América Latina.

Em comum, ambos os textos prevêem que o tratamento dispensado ao acusado seja no sentido de sua inocência; ressaltam também a imprescindibilidade do devido processo penal e o caráter excepcional da coerção contra o acusado. 21

Todavia, foi a partir da inclusão dos preceitos básicos do direito processual nos textos constitucionais modernos - do pós-guerra - que o princípio da Presunção de Inocência adquiriu status de verdadeira condição ao exercício da repressão no Estado de Direito. 22

No Brasil, o princípio foi erigido a dogma constitucional pela Carta Magna de 1988 e previsto no rol dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, inc. LVII). Em França, "Le Conseil constitutionnel a reconnu valeur constitutionnelle au principe de la présomption d'innocence." 23

Embora parte da doutrina já o considerasse como informador do ordenamento pátrio, desde a adesão brasileira à Declaração Universal de Direitos, de 1948, argumentavase, no sentido oposto, ou seja, de que o referido princípio jamais fora respeitado entre nós. 24

Assim, conforme acentua Tourinho Filho, não foi observada nenhuma reforma processual que pretendesse amoldar o nosso diploma processual penal ao princípio da Page 546 Presunção de Inocência, chegando-se à conclusão "de que a adesão do nosso Representante junto a ONU, àquela Declaração, foi tão somente poética, lírica, com respeitável dose de demagogia diplomática...". 25 Entretanto, desde a Constituição de 1988, Tourinho Filho diz que a situação mudou e aduz...

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