Justiça racial e direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais

AutorDaiane de oliveira Gomes - Maria Zelma de Araújo Madeira - Wanessa Nhayara Maria Pereira Brandão
CargoInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba, Diretoria de Desenvolvimento de Ensino, Coordenação de Apoio aos Estudantes, Cajazeiras, PB, Brasil - Universidade Estadual do Ceará, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Programa de Pós Graduação em Serviço Social, Trabalho e Questão Social, Fortaleza, CE, Brasil - Universidade ...
Páginas317-326

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592020v23n2p317

ESPAÇO TEMÁTICO: DIREITOS HUMANOS, DEMOCRACIA E NEOCONSERVADORISMO

Justiça racial e direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais

Daiane de Oliveiva Gomes1https://orcid.org/0000-0002-6294-2816

Maria Zelma de Araújo Madeira2https://orcid.org/0000-0003-2291-4455

1 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba, Diretoria de Desenvolvimento de Ensino, Coordenação de Apoio aos Estudantes, Cajazeiras, PB, Brasil

2 Universidade Estadual do Ceará, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Programa de Pós Graduação em Serviço Social, Trabalho e Questão Social, Fortaleza, CE, Brasil

3Universidade Estadual do Ceará, Centro de Estudos Sociais Aplicadas, Programa de Pós Graduação em Serviço Social, Trabalho e Questão Social, Fortaleza, CE, Brasil

Justiça racial e direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais

Resumo: O objetivo deste artigo é contextualizar o cenário atual de crescimento do autoritarismo, de ataques aos direitos humanos e à democracia, tendo como eixo analítico e político a categoria raça. Interessa compreender a questão racial nas agendas das políticas públicas e dos direitos humanos dos povos e comunidades tradicionais, em particular os indígenas e quilombolas e os efeitos perversos do projeto de colonialidade. Conclui-se que a herança e a recriação da escravidão e o racismo estrutural estão fortalecidos em um contexto em que se proliferam discursos e práticas públicas de ódio e outras formas de intolerância. Em paralelo, a agenda dos direitos humanos e das políticas públicas segue reproduzindo o silenciamento e a morosidade quando se trata da pauta das desigualdades e subordinações raciais.

Palavras-chave: Direitos humanos. Justiça racial. Povos e comunidades tradicionais.

Racial justice and human rights of traditional peoples and communities

Abstract: The objective of this article is to contextualize the current scenario of growth of authoritarianism and of attacks on human rights and democracy, using race as an analytical and political axis. It is interesting to understand the issue of race in the agendas of public policies and human rights of traditional peoples and communities, in particular with the indigenous and quilombolas, and the perverse effects of the colonial project. We conclude that the legacy and recreation of slavery and structural racism are strengthened in a context in which hate speech, hateful public practices, and other forms of intolerance proliferate. In parallel, the human rights and public policy agenda continues to reproduce silence and slowness when it comes to dealing with the agenda of racial inequality and subordination. Keywords: Human rights. Racial justice. Traditional peoples and communities.

Recebido em 04.11.2019. Aprovado em 11.02.2020. Revisado em 26.03.2020

© O(s) Autor(es). 2020 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar, distribuir e reproduzir em qualquer meio, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material, desde que para fins não comerciais e que você forneça o devido crédito aos autores e a fonte, insira um link para a Licença Creative Commons e indique se mudanças foram feitas.

R. Katál., Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 317-326, maio/ago. 2020 ISSN 1982-0259

Wanessa Nhayara Maria Pereira Brandão3https://orcid.org/0000-0002-1039-9276

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Daiane de Oliveira Gomes, Maria Zelma de Araújo Madeira e Wanessa Nhayara Maria Pereira Brandão

Introdução

O Brasil é um país marcado pela diversidade cultural e étnica – contudo, tal riqueza tem sido subsumida sob o manto do silenciamento acerca da questão racial. Campeão em desigualdades, as desvantagens são profundamente presentes na realidade da população negra e de segmentos dos povos e comunidades tradicionais que vivem e sobrevivem em condições sociais desiguais e racialmente seletivas.

Predomina no País a naturalização das hierarquias raciais. O projeto de colonialidade, a escravidão moderna e seus efeitos perversos sob a forma do racismo estrutural prevalecem. Logo, é revisitando nosso passado cruel de exploração e discriminação que desvendamos a forma como a categoria raça serviu para instituir uma linha que separa de forma contundente grupos socialmente incluídos e outros oprimidos e forte-mente subalternizados. Na esteira dessa compreensão, Pires (2018) assinala, à luz do pensamento de Frantz Fanon, o quanto é relevante trabalhar analítica e politicamente com a categoria raça.

O projeto moderno/colonial mobilizou a categoria raça para instituir uma linha que separa de forma incomensurável duas zonas: a do humano (zona do ser) e a do não humano (zona do não ser). Sendo o padrão de humanidade determinado pelo sujeito soberano (homem, branco, cis/hétero, cristão, proprietário e sem deficiência), também ele definirá o sujeito de direito a partir do qual se construirá toda narrativa jurídica (PIRES, 2018, p. 66).

Encontram-se na zona do não ser os sujeitos dos quais tratará este artigo, Povos e Comunidades Tradicionais1que convivem cotidianamente com a violência, com a violação de direitos e tendo de vencer muitos obstáculos para ter ativados os processos de proteção e promoção de direitos humanos.

Nesse sentido, é importante compreender o aumento do autoritarismo e seus impactos sobre a democracia e os direitos humanos. Tem destaque a retórica nacionalista que recorre ao discurso de ódio contra as minorias raciais. O populismo nacionalista de direita em todo o mundo desencadeou de forma franca e aberta discursos e práticas públicas de racismo, xenofobia, misoginia e outras formas de intolerância.

No tempo presente, prolifera o populismo autoritário, abalando a recente democracia instaurada no Brasil. Assim, são elucidativas as palavras de Schwarcz (2019) sobre as estratégias comuns dos governos para abalar as bases institucionais das democracias no mundo:

[...] a seleção de um passado mítico e glorioso; a criação de um anti-intelectualismo e um antijornalismo de base; um retorno à sociedade patriarcal de maneira a elevar conceitos como hierarquias e ordem; o uso da política do Estado ou, se necessário, de milícias para reprimir bandidos mas também desafetos políticos; uma verdadeira histeria sexual que acusa mulheres, gays, travestis e outras minorias de serem responsáveis pela degeneração moral de suas nações; um apelo à própria vitimização (a sua e de seus aliados), conclamando a população a reagir aos supostos algozes de outrora; o incentivo à polarização que divide a população entre “eles” e “nós”, estabelecendo que “nós” somos os realizadores e “eles” os usurpadores; o uso extensivo da propaganda política que não preza a realidade pois prefere inventá-la; a naturalização de certos grupos nacionais e a consequente ojeriza aos imigrantes, logo transformados em estrangeiros; a manipulação do Estado, de suas instituições e leis, visando perpetuar o controle da máquina e garantir um retorno nostálgico aos valores da terra, da família e das tradições, como se esses fossem sentimentos puros, imutáveis e resguardados (SCHWARCZ, 2019, p. 226-227).

Essas narrativas autoritárias têm sido utilizadas para acirrar ainda mais preconceitos, discriminações raciais e a prática do racismo contra os povos e comunidades tradicionais, diminuindo as oportunidades de eles acessarem direitos, terem sua história respeitada e reconhecimento étnico ativado.

O Brasil parecia aberto ao século XXI com um sistema político democrático novo mais fortalecido, porém alguma coisa deixou de funcionar entre 2015 e 2017 – mudanças que colocaram em dúvida a qualidade de nossa democracia.

Naquele momento, e hoje também, a República no Brasil falha na disposição de garantir direitos, em especial direitos civis, com manifestações de racismo, diversos gestos de homofobia, feminicídio, falta de políticas dirigidas às pessoas com deficiências de toda ordem, ataques aos povos indígenas e a seus direitos à terra, assim como aqueles destinados aos quilombolas (SCHWARCZ; STARLING, 2018, p. 5).

Nossa diversidade populacional nos leva necessariamente a analisar os grupos étnicos, aqueles posicionados socialmente como representativos da zona do não ser – como população negra, povos originários,

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pescadores artesanais, populações atingidas por barragens, povos de terreiros, povos ciganos, dentre outros. Cabe a nós compreendermos os impactos dos atuais retrocessos para a realidade dessas populações, no seu modo de viver e no acesso às políticas públicas, bem como suas formas de resistir e as suas propostas para a consolidação de outra forma de desenvolvimento.

Em meio a um contexto econômico, social e político em que se proliferam e aprofundam, em nível de barbárie, discursos e práticas públicas de racismo, xenofobia, misoginia e outras formas de intolerância, as reivindicações desses grupos discriminados em termos étnicos e raciais são deslegitimadas. Cabe a nós denunciar a negligência nas agendas das políticas públicas e na agenda dos direitos humanos em alcançar o cerne da questão racial.

Ausência da questão racial nas agendas das políticas públicas e dos direitos humanos

Uma análise fecunda sobre as políticas públicas e efetivação dos direitos socioassistenciais em contexto de restrição fiscal deve considerar central a perspectiva de justiça racial, pela ênfase no racismo estrutural, sem tirar o foco da desigualdade econômica – que deve ser entendida como reflexo da profunda desigualdade nas estruturas de poder subjacentes que governam as sociedades. Daí ter valia a abordagem interseccional para a promoção da...

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