O que a justiça italiana pode ensinar ao Brasil

AutorJosé Henrique Kaster Franco
CargoDoutor pela PUCSP
Páginas48-64
48 REVISTA BONIJURIS I ANO 32 I EDIÇÃO 662 I FEV/MAR 2020
DOUTRINA JURÍDICA
José Henrique Kaster FrancoDOUTOR PELA PUCSP
O QUE A JUSTIÇA ITALIANA PODE
ENSINAR AO BRASIL
I
INSPIRADO NO DIREITO ITALIANO, O PACOTE ANTICRIME DO
MINISTRO DA JUSTIÇA, CONVERTIDO NA LEI 13.964/19, PRETENDE
ABRIR AS PORTAS À JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL
OProjeto Moro, por vezes chamado de
Projeto Anticrime, pretendeu abrir as
portas do país à justiça consensual de
vez por todas. No texto apresentado ao
Congresso é possível notar a inf‌luência
de práticas bem conhecidas no direito norte-
-americano, mas é certo que se inspirou ainda
mais acentuadamente em outras fontes, espe-
cialmente no direito processual penal italiano,
nossa matriz jurídica há décadas.
Neste trabalho analisa-se o paeggiamento,
coração do direito consensual italiano, cotejando-
-o com o texto original do Projeto Moro. Estar
atento a essa consolidada experiência inserida em
uma tradição de civil law similar à nossa pode nos
poupar décadas de problemas, não somente pela
proximidade dos sistemas, mas pela similaridade
histórico-cultural entre os dois países, ao lado das
próprias opções políticas do projeto, que foi buscar
categorias típicas do contexto italiano – a exemplo
do criminoso habitual ou prof‌issional, criação de
Ferri que dista 140 anos ou então a previsão de
maior participação do juiz no controle do pacto,
o que não ocorre no contexto anglo-saxão mas é
corriqueiro para os italianos, sugerindo o acerto
da escolha por este estudo comparado.
A ideia motriz, a partir daquele consolidado
modelo de justiça consensual europeu, é verif‌i-
car a compatibilidade da proposta de Moro com
nossa tradição constitucional, na qual estão
bem estabelecidos princípios como o contra-
ditório, a ampla defesa, a indisponibilidade da
ação penal, o nulla poena sine iudicio e a razoá-
vel duração do processo.
Antecipa-se que não se fará a condenação
das propostas de Moro como um todo, mesmo
porque a giustizia consensuale é daquelas ten-
dências mundiais que parecem não ter volta.
Mais sensato, portanto, seria adequá-la da me-
lhor forma possível a um direito penal e proces-
sual que não ignore direitos e garantias.
O PROCESSO PENAL ITALIANO
O Código de Processo Penal Italiano (),
de modelo acusatório e baseado especialmen-
te nos princípios do contraditório, oralidade,
imediatidade, imparcialidade e justo processo,
foi aprovado em 1988 (Legge Vassalli) e pas-
sou a viger em outubro de 1989, substituindo
o Codice Rocco, de matriz fascista e que ser-
ve de base ao nosso Código de Processo Penal
().
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José Henrique Kaster FrancoDOUTRINA JURÍDICA
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REVISTA BONIJURIS I ANO 32 I EDIÇÃO 662 I FEV/MAR 2020
O procedimento ordinário italiano é, fundamentalmente, dividido em
três partes: indagini preliminari (investigação); udienza preliminare
(audiência preliminar); dibaimento (instrução e julgamento)
O procedimento ordinário italiano é, funda-
mentalmente, dividido em três partes: a) inda-
gini preliminari (investigação); b) udienza preli-
minare (audiência preliminar); e c) dibaimento
(instrução e julgamento). Na fase de investiga-
ção, indagini preliminari, os atos normalmente
estão a cargo do Ministério Público, auxiliado
pela Polícia Judiciária, na qual são produzidos
elementos de convencimento que fundamen-
tarão futura demanda penal. Na fase de ins-
trução, esses elementos são “repetidos”, isto é,
produzidos efetivamente sobre o crivo do con-
traditório. Embora a produção de provas pelo
Ministério Público seja o mais comum, o artigo
7º da Lei 397/00, criou o artigo 327-bis do ,
segundo o qual o defensor pode desenvolver in-
vestigação própria para alcançar elementos de
prova, valendo-se até mesmo de prof‌issionais
como investigadores privados e peritos. Este
dispositivo tem por base o artigo 24 da Consti-
tuição italiana, o qual dispõe que o direito de
defesa é inviolável em todos os níveis e espécies
de procedimentos. Mesmo uma investigação
preventiva, antes de que seja instaurado qual-
quer procedimento penal, é admitida no artigo
391-nonies do .
Para a produção de algumas provas espe-
ciais, como no caso de testemunhas ameaçadas
ou então de provas periciais, mesmo na fase
investigatória, dá-se a participação do juiz, ga-
rantindo o contraditório, e justamente por con-
ta disto as provas podem ser usadas na fase de
instrução sem necessidade de refazimento.
A fase de investigação começa com a notícia
do crime e vai até o requerimento de envio do
procedimento ao juízo ou até o pedido de ar-
quivamento pelo Ministério Público (art. 326
a 415-bis). O último ato da fase investigatória
é aquele em que o Ministério Público notif‌ica
formalmente o investigado sobre os elemen-
tos já produzidos (art. 415-bis). O investigado é
advertido acerca de várias prerrogativas que o
socorrem, como a de apresentar memoriais com
os argumentos defensivos, produzir documen-
tos, depositar as investigações já realizadas pela
defesa, requerer à acusação que realize outros
atos de investigação e ser ouvido pessoalmente.
A segunda fase do procedimento ordinário
corresponde à audiência preliminar, udienza
preliminare, e tem o objetivo de verif‌icar a legi-
timidade e a consistência da imputação. Desta
audiência resultam dois caminhos: o juiz emite
um decreto di rinvio a giudizio (isto é, manda
o processo a juízo), se os elementos postos ao
magistrado forem fundados, consistentes; ou
então o juiz expede uma sentença di non luogo
a procedere, quando o requerimento de envio ao
juízo for infundado (arts. 416 a 437).
Com a udienza dibaimentale inaugura-se a
etapa do giudizio, e então se dá a produção da
prova e, posteriormente, o julgamento (arts. 465
a 548). Para evitar a contaminação do juiz, o ma-
gistrado que preside a audiência preliminar não
é o mesmo que preside a audiência de instrução.
Na audiência de debates são inadmissíveis
as provas produzidas na fase de investigação,
salvo algumas exceções, a exemplo daquelas
provas produzidas na investigação mediante
contraditório, nos casos de pessoas adoentadas,
ameaçadas ou de promessa de dinheiro a teste-
munhas, crimes sexuais que envolvam menores
de 16 anos, dentre outras situações (incidente
probatório, arts. 392 a 404).
A regra segundo a qual o juiz deve decidir a
partir de elementos produzidos sob o contradi-
tório é, de acordo com Paolo Tonini, um ponto
crucial do  de 1988. O juiz, a propósito, subdi-
vide o caderno de investigações em dois. A parte
produzida em contraditório (per il dibaimen-
to) pode ser lida durante os debates e utilizada
para a decisão. Já a outra parte (del pubblico mi-
nistero), que contém elementos produzidos pelo
Ministério Público ou pelo defensor, não pode
ser utilizada para a sentença, exceto em casos
excepcionais e apenas como prova indireta, isto
é, “como prova do fato representado”1.
Rev-Bonijuris_662.indb 49 15/01/2020 15:09:56

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