Justiça de gênero, cidadania e diferença na américa latina

AutorMaxine Molyneux
CargoProfessora de Sociologia e foi Diretora do Institute of the Americas, na University College London
Páginas14-48
14
JUSTIÇA DE GÊNERO, CIDADANIA E DIFERENÇA NA AMÉRICA
LATINA
1
-
2
GENDER JUSTICE, CITIZENSHIP AND DIFFERENCE IN LATIN
AMERICA
Maxine Molyneux
3
RESUMO: Este artigo examina as práticas d e cidadania feminista e os estudos sobre gênero, justiça, cidadania e
direitos na América Latina. A crítica do feminismo ao privilégio patriarcal expressou um desejo moderno d e
maior liberdade individual e reconhecimento coletivo, uma combinação que produziu tensões e algumas
inconsistências no que se refere à questão da “diferença”, notadamente no seu encontro com populações
indígenas. No entanto, o ponto central do projeto feminista foi a busca de reconhecimento e redistri buição, que
obteve maior sucesso no campo do direito e da política do q ue na distribuição de bens públicos e pr ivados. Uma
revisão das realizações do feminismo latino-americano revela uma história de avanços substanciais, mas uma
impressionante persistência da desigualdade de gênero, o que fornece uma agenda rica para uma investigação
mais aprofundada.
PALAVRAS-CHAVE: Feminismo; América Latina; Políticas de igualdad e de gênero; Movimentos nativos.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A natureza específica do contexto da cidadania. 3. América Latina: gênero,
cidadania e diversidade. 4. Feminismo e justiça. 5. Reconfiguração da cidadania como praxis. 6. Pesquisa
acadêmica sobre gênero, cidadania e direito. 7. Conclusão. 8. Referências b ibliográficas.
Artigo aprovado pelo Conselho Editorial da Revista Direito das Relações Sociais e Trabalhistas d o UDF-Centro
Universitário. A Professora Maxine Molyneux é Ph.D. p ela University of Essex. Professora Titular da University
College London. Diretora do Institute of the Americas, vinculado à University College London, instituto
dirigido a pesquisas acadêmicas focados em temas da Amér ica Latina. Atuou como conselheira sênior,
consultora e pesquisadora do UNRISD, UNIFEM e ONU Mulheres em uma variedade de projetos de pesquisa,
bem como do IDRC (Canadá) e da Oxfam. O referido artigo foi publicado no Studia Historica. Historia
Contemporánea, periódico que desde 1983 publica trabalho s de pesquisa no âmbito temático da História
Contemporânea Universal e da Espanha, de Teoria da História e de Historiografia. O periódico figura em bases
de dados generalistas de Latindex, Ulrich’s y Pio (Periodicals Index Online), e também especializadas: History
and Life, Handbook of Latin American Studies (HLAS online), Historical Abstract, Isoc y Worldwide Political
Science abstracts (WPSA), além da DIALNET.
1
O presente artig o foi publicado o riginalmente em espanhol na Revista Studia Historica. Historia
Contemporánea., n. 28, 2010, Ediciones Universidad de Salamanca, p. 181-211. A tradução do espanhol para o
português foi feita por Lorena Vasconcelos Porto.
2
Agradecimentos da autora: O trabalho original que este artigo abrevia foi realizado pelo IDRC como parte de
um exercício de consulto ria de pesquisa. O relatório completo, revisado p ara publicação, apareceu como
«Refiguring citizenship: research perspectives on gender justice in the Latin American and Car ibbean Region».
In: MUKHOPADHYAY, Maitrayee; SINGH, Nav sharan (orgs.): Gender justice, citizenship and
development, Zuban, 2007.
3
Maxine Molyneux é Pro fessora de Sociologia e foi Diretora do Institute of the Americas, na University
College London. É editora da Studies of the Americas Series da Palgrave/Macmillan e atua no Conselho
Editorial da Economy and Society e no Journal of Latin American Studies. É editora internacional do Journal of
Development Studies. Atualmente pesquisa as transformações dos sistemas de bem -estar social na América
Latina, bem como a participação e responsabilidade dos cidadãos na proteção social na América Latina. Ensina
atualmente no Mestrado em Globalização e Desenvolvimento da América L atina e contribui para o curso de
métodos do Mestrado, Researching the Americas. Escreveu extensivamente nos campos da sociologia política,
gênero e desenvolvimento, direitos humanos e política social e é autora de livros sobre América Latina, Etiópia e
Iêmen do Sul. RDRST, Brasília, Volume 6, n. 1, 2020, p 14-48, Jan-Abr/2020
ABSTRACT: This article surveys feminist citizenship practices and scholarship on gender, justice, citizenship
and rights in Latin America. Feminism’s critique of patriarchal privilege expressed a modern desire for greater
individual freedom and collective recognition, a combination that produced tensions and so me inconsistencies in
regard to the «difference» question, notably in its encounter with indigenous populations. Howev er, centr al to
feminism’s project was the pursuit of both recognition and redistribution, which achieved greater success in the
realm of law and politics than in the distribution of public and p rivate goods. A review of Latin American
feminism’s achievements reveals a history of substantial advances b ut a striking persistence of gender inequality,
which provides a rich agenda for further investigation.
KEYWORDS: Feminism; Latin America; Gender Equality Policies; Native Mo vements.
SUMMARY: 1. Introduction. 2. The specific nature of the citizenship context. 3. Latin America: gender,
citizenship and diversity. 4. Feminism and justice. 5. Citizenship reconfiguration as praxis. 6. Academic research
on gender, citizenship and law. 7. Conclusion. 8. Bibliographic references.
1 INTRODUÇÃO
Desde o final da década de 1970, houve um aumento considerável dos trabalhos
teóricos e empíricos nos campos relacionados ao gênero, justiça, cidadania e direitos. Esses
estudos avançaram junto com as iniciativas dos movimentos de mulheres de todo o mundo
voltadas à implementação de programas de reforma para garantir a igualdade de gênero em
todas as esferas de justiça, política e direitos sociais. Enquanto esse crescente corpus
internacional apresenta numerosas preocupações analíticas e temáticas comuns, há também
diferenças regionais notáveis na orientação teórica e no enfoque empírico que refletem as
especificidades de cada região. Essas particularidades se devem ao fato de que o clima
político e os programas governamentais próprios da região ou país de estudo definem até
certo ponto as prioridades da pesquisa. Em termos gerais, porém, levar na devida conta a
natureza específica, situacional, dos processos legais e políticos é uma condição sine qua non
para a sua análise. Os estudos sobre gênero, cidadania e justiça também se nutriram - além de
encontrar desafios neles - dos intensos debates resultantes da politização dos direitos das
mulheres. Isso regionaliza ainda mais a política de direitos femininos, exigindo uma análise
mais aprofundada do contexto específico em que é enquadrada e perseguida
4
.
Este texto trata das maneiras pelas quais a América Latina contribuiu para os debates
atuais sobre justiça de gênero, tanto por meio de estudos acadêmicos, quanto com práticas
concretas. Nas últimas décadas, houve na região um notável avanço em termos de direitos de
cidadania femininos, que, no entanto, deve ser entendido como resultado de um contexto
4
Veja-se, por exemplo, na edição especial do Third World Quarterly, 27 (7), 2006, pp. 1175-1191, «The Politics
of Women’s Rights: Dilemmas for Feminist Praxis»; compilação e intr odução de Andrea Cornwall e da autora.
No outono de 2008, foi publicado como livro, com o mesmo título, pela editora Routledge.
16
particularmente oportuno: a redemocratização que, ao mesmo tempo em que deu impulso ao
processo de reforma, lhe impôs limites.
O termo "justiça de gênero" implica um conceito de justiça que remete às relações
sociais e jurídicas que predominam entre os sexos. Não é facilmente definível, pois carrega
diferentes significados que mudaram com o tempo. A justiça de gênero pode compreender
diversas concepções de justiça, em um arco que vai desde a simples igualdade a conceitos de
igualdade diferenciada, esses últimos com o sentido de respeito pela diferença, embora
acompanhados de duas condições importantes: que a igualdade permaneça um princípio
fundamental da justiça, e que tanto na letra da lei, quanto na sua aplicação, se trate a todos
como moralmente iguais. Em linguagem política moderna, a justiça de gênero implica
cidadania plena para as mulheres
5
, e é assim que o termo é geralmente entendido no contexto
latino-americano.
Dentro do amplo espectro que o conceito de justiça de gênero implica, os
desenvolvimentos teóricos são necessariamente diversos. Eles incluem os trabalhos pioneiros
sobre teoria política liberal
6
, direito e justiça
7
, estudos sobre cidadania
8
e capability theory,
como o elaborado por Amartya Sen e Marta Nussbaum
9
, para citar apenas alguns. A
variedade de campos analisados é igualmente diversa e inclui, entre outros, estudos sobre
legislação internacional
10
, política social
11
, direitos de propriedade
12
, pluralismo jurídico
13
,
justiça criminal
14
e direitos reprodutivos
15
. Na América Latina, temos uma bibliografia
5
Em razão da indivisibilidade dos direitos: sociais, econômicos, políticos e civis.
6
PHILLIPS, A. Engendering democracy. Camb ridge: Polity Press, 199 1.; ELSHTAIN, J. B. Public Man,
Private Woman. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1981; PATEMAN, C. The sexual contract.
Cambridge: Polity Press, 1988.
7
SMART, C. Law, crime and sexuality: essays in feminism. London: Sage, 1995; FRASER, N. Unruly
practices. Oxford: Polity Press, 1989.; PETCHELSKY, R. P. Human rights, reproductive health and economic
justice: why they are indivisible, Reproductive Health Matters, 8:1 5, 2000, pp. 1217.
8
PHILLIPS, A. Democracy and difference. Cambridge: Polity Press, 1993; LISTER, R. Citizenship: feminist
perspectives. Nueva York/Basingstoke: New York University Press/Palgrave Macmillan, 200 3.
9
NUSSBAUM, M. Women’s Capabilities and Social Justice. In: MOLYNEUX, M.; RAZAVI, S. (orgs.).
Gender Justice, development, and rights. Oxford: Oxford University Press, 2002 .
10
CHARLESWORTH, H.; CHINKIN, C. The boundaries of International Law: a feminist analysis.
Manchester, New York, Manchester: University Press/Juris, Manchester, 2000.
11
LISTER, R. Citizenship: F eminist Perspectives. New York, Basingstoke: New York University Press/
Macmillan, 1997.
12
DEERE, Carmen Diana. Cooperative Development and Women’s Participation in the Nicaraguan Ag rarian
Reform, American Journal of Agricultural Economics, v ol. 65, n. 5 (dec. 1983) (Blackewell Publishing).
AGARWAL, Bina. A Field of One’s Own. Gender and Land Rights in South Asia. Cambridge, Cambridge
University Press, 1994.
13
PHILLIPS, A. Multiculturalism, Universalism an d the Claims of Democracy. In: MOLYNEUX, M.;
RAZAVI, S. (orgs.). Gender Justice, development, and rights. Oxfor d: Oxford University Press, 2002.
14
SMART, C. Law, crime and sexuality: essays in feminism. London: Sage, 1995.
15
PETCHELSKY, R. P. Human rights, reproductive health and economic justice: why they are indivisible,
Reproductive Health Matters, 8:15, 2000, pp. 12-17.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT