A justiça do trabalho e a competência para o processamento e julgamento de causas envolvendo trabalhadores vinculados à administração pública: algumas reflexões

AutorCarlos Eduardo de Azevedo Lima
CargoProcurador do Trabalho na 13ª Região
Páginas246-284

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1. Breve introito ao tema

Ao longo dos últimos anos, vem se firmando, dia após dia, e de forma cada vez mais forte, entendimento extremamente restritivo à competência da Justiça do Trabalho, sempre buscando, não se sabe

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por qual razão, até porque não se entende a quem interessaria tal linha interpretativa, restringir a competência de tal ramo do Judiciário.

Ironicamente, essa situação se intensificou após a promulgação da Emenda Constitucional n. 45, que ficou conhecida por implementar a primeira parte da chamada “Reforma do Judiciário” e, no que tange à Justiça laboral, em decorrência das alterações introduzidas no art. 114 da Constituição Federal, ampliou, ao menos em tese, a sua “área de atuação” e o leque de matérias que deveriam ser pela mesma julgadas.

Mostra-se, portanto, no mínimo contraditória essa interpretação restritiva da competência da Justiça obreira.

Relevante frisar, por outro lado, que essa linha interpretativa vem se firmando a partir de decisões proferidas no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de Reclamações, as quais, sob a justificativa de preservar a autoridade da decisão proferida pela Suprema Corte no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
n. 3.395, vêm, na realidade, distanciando-se cada vez mais daquela decisão.

Ao longo do presente texto, buscar-se-á tratar justamente desse entendimento, que não se reputa o mais acertado, bem como de suas repercussões.

Desse modo, ao lado de argumentos jurídicos, vai-se tratar, também, das possíveis consequências do esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho, assoberbando ainda mais os outros ramos do Judiciário ao passo em que se subutiliza um ramo capilarizado e eficiente, que julga os processos ao mesmo submetidos com inegável celeridade.

Dados também serão apresentados no que tange à atuação do Ministério Público do Trabalho no combate às contratações irregulares realizadas no âmbito da Administração Pública, além de outras formas de atuação do Parquet que também se encontram atualmente ameaçadas, além dos prejuízos que tudo isso acarreta para a sociedade.

Não serão olvidadas, por outro lado, as medidas que vêm sendo adotadas visando modificar o cenário que ora se delineia, bem como o comportamento passivo, com o devido respeito, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que, diversamente dos órgãos de cúpula dos outros

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ramos do Judiciário — que não aceitam nem sequer cogitar a perda de competência, ainda que em relação a temas nos quais têm atuação tímida ou praticamente inexistente —, deixou de empreender qualquer esforço significativo visando resguardar a competência da Justiça trabalhista.

Ainda nessa linha, buscaremos analisar as medidas que vêm sendo adotadas no âmbito do Poder Legislativo no que tange à matéria, incluindo-se o encaminhamento que a tais medidas vem sendo dado.

Tudo isso, frise-se, com o objetivo de contribuir, ainda que modes-tamente, com esse debate que se reputa da maior relevância, haja vista se entender que todas essas tentativas de reduzir ao mínimo a competência de um ramo do Judiciário especializado e vocacionado justamente para tratar das questões relacionadas ao trabalho — e que vem sendo impedido de fazer isso, em muitos casos — não trazem vantagem alguma para a sociedade, mas tão somente para os transgressores do ordenamento jurídico e, no caso das matérias relacionadas à Administração Pública, para os maus gestores, que tantos malefícios causam à coletividade.

Ademais, não é ocioso lembrar que a origem de todos os maus costumes arraigados na Administração Pública tem relação direta com a forma de contratação. Primeiro porque quem comete ou deixa de cometer ilícitos são pessoas, e não entes públicos, abstratamente considerados. Depois, quem é contratado de forma direta e irregular, sem prévio concurso, não tem absolutamente nenhum compromisso com a sociedade, mas sim com a pessoa que o colocou naquele cargo, emprego ou função pública. E isso pode ser muito perigoso!

2. O equivocado entendimento nas reclamações

Reputa-se essencial, antes de mais nada, que analisemos o que decidiu, efetivamente, o Excelso Pretório nos autos da supramencionada Ação Direta de Inconstitucionalidade, até porque, como já se disse acima, vem aquela Corte, nas Reclamações que se baseiam na referida ADI, distanciando-se a passos largos da decisão proferida nos autos daquele processo de controle concentrado de constitucionalidade.

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Quanto a essa questão, oportuno se mostra frisar que a medida liminar concedida pelo então Presidente do STF, Min. Nelson Jobim, nos autos da ADI n. 3.395, ajuizada pela AJUFE (Associação dos Juízes Federais), suspendeu, como é cediço, ad referendum, toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do art. 114 da Carta Magna que inclua na competência da Justiça do Trabalho “... apreciação ... de causas que ... sejam instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo” (grifou-se).

Em nenhum momento, portanto, na referida liminar, fora afastada a competência da Justiça laboral para apreciar e julgar toda e qualquer relação de trabalho havida com a Administração, mas apenas, conforme suprademonstrado, aquelas que fossem de natureza estatutária e/ou de caráter jurídico-administrativo típicas (repita-se) e, para que estas se estabeleçam, imprescindível se mostra que sejam preenchidos TODOS os requisitos necessários, dentre os quais se insere a prévia submissão e aprovação em concurso público, o qual consiste, como é cediço, em pressuposto objetivo essencial.

Vale lembrar, ademais, que o escopo da Emenda, conforme se depreende de sua simples leitura, era, na realidade, passar para a competência da Justiça especializada obreira toda e qualquer relação de trabalho, independentemente do regime jurídico adotado, até porque não se pode negar que o servidor público, aqui considerado em seu sentido lato, seja ele regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) ou pelo regime estatutário, é, antes de tudo, um trabalhador.

Mais do que lógico, portanto, que tenha tal trabalhador suas demandas apreciadas e julgadas pelo ramo do Poder Judiciário mais vocacionado para tratar das relações do trabalho, até porque especializado para tanto.

Lamentavelmente, contudo, acabou o legislador constituinte derivado, segundo reconheceu o Pretório Excelso, por incorrer em vício formal no curso da tramitação do processo legislativo que culminou com a promulgação da Emenda, especificamente no que tange à redação do inciso I do art. 114, o qual passou a prever que “compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da

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administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, muito embora não tivesse sido essa a redação aprovada pela Câmara dos Deputados, sendo inserida no Senado Federal sem que o texto voltasse para a Câmara.

Exatamente isso o que levou o STF, por meio de seu então Presidente, a proferir a já referida decisão, na qual deu uma “interpretação conforme” à Constituição, no sentido de excluir da competência da Justiça do Trabalho, única e exclusivamente, a apreciação e julgamento das causas relativas aos servidores que estejam inseridos em relações estatutárias típicas.

Evidentemente, portanto, que as contratações irregulares realizadas no âmbito da Administração Pública, a exemplo daquelas que se dão sem observância do regramento constitucional atinente ao concurso público, não podem, jamais, ser consideradas relações estatutárias típicas, até porque são nulas.

Nesse mesmo sentido já teve a oportunidade de se posicionar o Pretório Excelso, em Reclamação (Recl. n. 4371) ajuizada pelo Estado do Tocantins, na qual o eminente Ministro-Relator, Min. Carlos Britto, ao apreciar o pleito do reclamante, indeferiu a liminar requerida, por ter entendido o seguinte:

(...) o Ministério Público obreiro questiona a contratação “emergencial” ou “temporária” de pessoal para suprir uma necessidade permanente de professores no Estado do Tocantins. Mas não é só. O Parquet também discute em juízo a própria adequação do regime jurídico dos cargos em que foram investidos os tais “professores indígenas”. Questionamento, esse, que se lastreia no fato de que as funções dos cargos então desempenhadas pelos obreiros eram vocacionadas para o provimento em caráter efetivo. Não para provimento em comissão (...) sob esse visual das coisas (...) não me parece que o processamento da Ação Civil Pública n. 335-2005-802-10-00-4 na Justiça do Trabalho contraria o decidido na ADI n. 3.395-MC. Assim me posiciono porque, a princípio, não se revestiu de caráter estatutário a relação jurídica que prendia os tais “professores indígenas” ao Estado do Tocantins. [grifos ausentes no original]

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Outra questão que não pode ser olvidada diz respeito ao fato de que a Emenda n. 45/04 trouxe uma mudança fundamental no que tange à questão atinente à competência da Justiça do Trabalho, haja vista ter esta passado a julgar, a partir da Emenda, as “ações oriundas da relação de trabalho” e não mais...

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