Justiça competente

AutorFernando Maciel
Ocupação do AutorProcurador Federal em Brasília/DF. Mestre em Prevenção e Proteção de Riscos Laborais pela Universidade de Alcalá (Espanha)
Páginas84-117

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1.1. Controvérsia acerca da justiça competente

A questão atinente à competência para o julgamento das ARAs ainda não pode ser definida como uma matéria pacífica no cenário jurídico nacional. Prova disso são as inúmeras exceções de incompetência opostas e os conflitos negativos de competência suscitados nessas relações processuais.

A controvérsia acerca da justiça competente se divide em posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais favoráveis à Justiça Estadual, à Justiça Federal Comum e à Justiça do Trabalho, tudo a depender da interpretação dada aos dispositivos constitucionais que incidem sobre a matéria, notadamente os arts. 109, I, e 114, VI, ambos da CF/88.

Acerca dessa peculiaridade, Daniel Pulino121 refere que:

Como nessas ações figurarão, invariavelmente, uma autarquia federal (o INSS, na condição de autor), a solução para o problema está em descobrir a correta interpretação do art. 109 da Constituição, para saber se essas causas regulam-se pela regra ou por uma das exceções previstas nesse dispositivo constitucional.

Passemos à análise de cada uma das correntes acerca da competência para o julgamento das ARAs do INSS.

1.2. Entendimento minoritário: competência da Justiça Estadual

O entendimento minoritário é no sentido de que a competência para o julgamento das ARAs do INSS seria da Justiça Estadual. Os defensores dessa corrente partem da premissa de que, na parte final do art. 109, I, da CF/88, o legislador constituinte expressamente excluiu algumas matérias da competência da Justiça Federal, entre elas as causas de acidentes do trabalho, as quais deveriam

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ser julgadas pela Justiça Estadual, nos termos do art. 129, II, da Lei 8.213/91122,

bem como no entendimento jurisprudencial consolidado nas Súmulas de n. 501 do STF123 e 15 do STJ124.

Essa foi a posição adotada nos dois precedentes a seguir transcritos, o primeiro proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, decidindo pela incompetência da Justiça Federal para julgar as ARAs do INSS, ao passo que o segundo, exarado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, manteve a sentença condenatória proferida pela Justiça Estadual gaúcha em ação de idêntica natureza:

PREVIDENCIÁRIO - ACIDENTE DO TRABALHO - AÇÃO REGRESSIVA - INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA.

1. A matéria objeto de discussão na presente ação é de natureza acidentária, o que determina a exclusiva competência da Justiça Estadual, face o disposto no inciso I, do art. 109 da Constituição Federal e Súmula n. 15 do Egrégio Superior Tribunal de Justiça.

2. A Justiça Federal é absolutamente incompetente para o julgamento do presente feito, sendo que somente os atos decisórios serão nulos, conforme o disposto no parágrafo 2º, do art. 113 do Código de Processo Civil.

3. Incompetência absoluta declarada de ofício, anulando-se a sentença proferida. (TRF-3, REOAC 2001.03.99.052262-5, 5ª Turma, Rel. Des. Fed. Suzana Camargo, DJU 12.11.02)

ACIDENTE DO TRABALHO. AÇÃO REGRESSIVA DO INSS CONTRA O EMPREGADOR. CABIMENTO.

O fato de as empresas contribuírem para o custeio do regime geral de previdência social, mediante o recolhimento de tributos e contribuições sociais, dentre estas aquela destinada ao seguro de acidente do trabalho - SAT, não exclui a responsabilidade nos casos de acidente de trabalho decorrentes de culpa sua, por inobservância das normas de segurança e higiene do trabalho.

Hipótese em que restou configurada a culpa da ré pelo evento danoso, tanto na forma negligente, quanto imprudente. Inteligência do art. 120 da Lei n. 8.213/91. Apelação improvida. (TJRS, AC 70019777549, 10ª Câmara Cível, Rel. Des. Paulo Roberto Lessa Franz, julgado em 2.8.07)

Registra-se que, apesar de representar o entendimento minoritário da jurisprudência e doutrina nacional, nas duas oportunidades que o STF foi instado a se manifestar acerca da matéria, mais especificamente quando do julgamento

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dos REs n. 540.970125 e n. 630.322126, ambos da 1ª Turma e sob relatoria da Ministra Carmen Lúcia, a competência da Justiça Estadual foi o posicionamento prevalecente.

A partir desses precedentes exarados pelo STF, alguns magistrados federais de primeira instância passaram a declinar a competência em prol da Justiça Estadual, conforme podemos constatar a partir do seguinte trecho extraído do Processo n. 0007098-14.2009.4.01.3700, em trâmite perante a 5ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Maranhão:

(...) no Recurso Extraordinário 540.970/SP, o Supremo Tribunal Federal - órgão que detém a prerrogativa de guardião da Constituição Federal - manteve acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Terceira, assentando o entendimento de que compete à Justiça Estadual o processamento e julgamento de ação regressiva ajuizada pelo INSS, buscando o ressarcimento dos gastos efetuados pela Previdência Social com benefícios acidentários, originados direta ou indiretamente, do acidente de trabalho, a teor da CF 109 I (RE 540970 AgR, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 20/10/2009, DJe-218, DIVULG 19-11-2009 PUBLIC 20-11-2009 (...).

Considerando que a definição da competência para o julgamento das ARAs pressupõe a interpretação de dispositivos de índole constitucional, resta incontroverso que a última palavra acerca da matéria será o pronunciamento exarado pelo STF.

Todavia, ousamos sustentar que os precedentes já exarados pela Colenda 1ª Turma não refletirão a palavra final da Suprema Corte, porquanto, data maxima venia, tais julgados incorreram em um verdadeiro error in judicando consubstanciado num sofisma que, partindo de uma premissa equivocada, acarretou conclusão divorciada da realidade, conforme passamos a demonstrar.

Ao apreciar o RE 540.970 que o INSS interpôs contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que reconheceu a competência da Justiça Estadual, bem como o RE 630.322 interposto pela autarquia previdenciária contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região que, por sua vez, decidiu pela competência da Justiça do Trabalho para o julgamento das ARAs, a eminente relatora partiu da premissa de que a pretensão regressiva veiculada pelo INSS configuraria uma típica ação acidentária, o que acarretou em decisões monocráticas (art. 557, caput, CPC/73127) no sentido de que a Justiça Estadual seria a competente para o julgamento dessas ações.

Segundo entendemos, a premissa equivocada consistiu em considerar a ARA do INSS como se fosse uma típica ação acidentária, essa sim de competência da

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Justiça Estadual, porém restrita às hipóteses em que um segurado da Previdência Social demanda contra essa autarquia a fim de obter e/ou revisar alguma prestação social acidentária.

Registra-se que tal restrição do conceito de "ação acidentária" possui amparo na jurisprudência do STF, conforme precedente a seguir transcrito, o qual, inclusive, foi utilizado como reforço argumentativo pela Ministra Relatora ao proferir as decisões monocráticas em prol da competência da Justiça Estadual, in verbis:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ACIDENTE DO TRABALHO. AÇÃO ACIDENTÁRIA AJUIZADA CONTRA O INSS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. INCISO I E § 3º DO ART. 109 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SÚMULA N. 501 DO STF.

A teor do § 3º c/c inciso I do art. 109 da Constituição Republicana, compete à Justiça comum dos Estados apreciar e julgar as ações acidentárias, que são aquelas propostas pelo segurado contra o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, visando ao benefício e aos serviços previdenciários correspondentes ao acidente do trabalho. Incidência da Súmula n. 501 do STF. Agravo regimental desprovido. (REAGR 478472, 1ª Turma, Rel. Min. Carlos Ayres Brito, DJ 1º.6.07) (grifos nossos)

Segundo entendimento do próprio STF, para que uma determinada relação processual possa ser caracterizada como uma típica ação acidentária é necessária a presença de três pressupostos, quais sejam: um segurado da Previdência Social no polo ativo; o INSS no polo passivo; e o objeto da lide deve representar o pedido e/ou revisão de alguma prestação social acidentária.

Considerando que tais requisitos não se fazem presentes nas ações regressivas acidentárias do INSS, cujo polo ativo é integrado pela própria autarquia previdenciária, o polo passivo é composto pelo empregador responsável por um acidente do trabalho, bem como o pedido consiste no ressarcimento dos gastos suportados em virtude da conduta culposa (negligência quanto às normas de saúde e segurança do trabalho) atribuída ao demandado, resta evidente que a pretensão regressiva do INSS não se enquadra no conceito de "causas de acidente do trabalho"128.

Em artigo publicado no ano de 1996, não obstante o seu entendimento pessoal de que "seria realmente desejável que o legislador tivesse atribuído a competência para o julgamento dessas ações regressivas à Justiça dos Estados, mais afeita ao deslinde das questões de acidente do trabalho e das circunstâncias que o envolvem", Daniel Pulino129 já advertia acerca da incompetência da Justiça Estadual para as ARAs do INSS, preconizando que:

Assim, se à Justiça Estadual cabe o julgamento dos litígios relativos a acidente do...

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