O jusnaturalismo e a filosofia moderna dos direitos: reflexão sobre o cenário filosófico da formação dos direitos humanos

AutorEduardo C. B. Bittar
CargoProfessor Associado de Filosofia do Direito, Universidade de São Paulo, Brasil. Pesquisador-Sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Brasil. Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos, Brasil
Páginas1-17

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1. Da proposta de investigação

Existe uma grande contribuição das doutrinas jusnaturalistas modernas na construção das concepções fundantes de Estado de Direito, de Direito Moderno, e, em especial, de Direitos Humanos, na medida em que a própria noção de natureza assumida (natureza significando natureza racional individual humana) retrata um acervo de concepções filosóficas nascentes no período, profundamente marcadas pela identidade do nascente gesellschaft, assim como da própria noção de Direitos Humanos que predomina atualmente no Ocidente.1 De certa forma, não se trata de reavivar com sabor de dejà vue preocupações antigas da jusfilosofia, mas de intensificar a pesquisa sobre a fundamentação dos human rights, especialmente em contextos de profunda tensão internacional e aflição histórica,2 num cenário que, na linguagem de Agnes Heller, significa uma revisão profunda do que se entende por modernidade (post modernity condition), na medida em que novas tensões recondicionam o sentido deste discurso. Se trata, portanto, de re-visitar a modernidade para verificar se seus paradigmas podem ser considerados realmente obsoletos, ou constatar se seus dogmas racionais acabaram por se curvar à identificação da lógicas dos winers do mercado capitalista.

De fato, trata-se de investigar, por meio deste estudo, o quanto esta noção precisa de Direitos Humanos (Naturais, Ocidentais, Universais, Abstratos, Fundamentais, Positivados), à época surgida como força ex parte populi, mas prevalecente ainda hoje, possui de influência das doutrinas que, no bojo do surgimento da Modernidade, alardearam a necessidade de conhecer o Direito sem recorrer a fundamentos tipicamente medievais, ligados às dimensões espiritual e metafísica (lex divina), masPage 2 com simples apelo à própria idéia de natureza (natureza humana individual e racional), domínio de estudos filosóficos.

2. A afirmação histórico-filosófica do jusnaturalismo moderno

Apesar de sua significação histórica e de sua importância para a formação dos modernos direitos humanos, o jusnaturalismo setecentista e oitocentista não constrói uma discussão inovadora nos meandros teóricos da fundamentação do Direito a partir da natureza (phýsis, natura).3 Pode-se mesmo dizer que a sede destas discussões já se encontra entre os pensadores gregos, sobretudo a partir período socrático da filosofia grega (séc. V a.C.), que haviam detectado a origem da discussão na oposição entre nómos e phýsis, oposição que somente tomou proporções cada vez mais significativas na literatura filosófica após o advento de Platão e Aristóteles (séc. IV a.C.).4 Por sua vez, os romanos sediavam a discussão na oposição entre ius gentium e ius civile (sécs. II a.C. a II d.C.), sendo que os medievais (Santo Agostinho, Abelardo, São Tomás de Aquino) somente trouxeram diferenciais religiosos para estes conhecidos conceitos através da idéia da existência da lex divina (séc. V a XII d.C.).

Já no início da Idade Moderna, com Grotius (séc. XVII d.C.), com seus contemporâneos e com a tradição posterior (Maquiavel, Jean Bodin, Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau, John Locke, Spinoza, Puffendorf), o racionalismo moderno universaliza a razão humana5, e encontra os fundamentos para a discussão do tema, secularizando a noção de direitos fundamentais eternos, naturais e imutáveis, cuja consagração se deu com as Declarações do século XVIII, em especial com a Declaração de Direitos de Virgínia (1787) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a perceber-se pelos seguintes excertos:

“Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, com os meios de adquiri e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar e obter a felicidade e a segurança” (Art. 1º. Declaração de Direitos da Virgínia, 1787).

“Os homens nascem livres e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum” (Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789).

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Assim é que, com a fusão de concepções da tradição grega e latina, e a emergência da discussão jusnaturalista na modernidade, em especial com a positivação destes direitos em Declarações e documentos jurídico-políticos escritos, forma-se uma cultura dos direitos naturais marcada pelas seguintes características, enunciadas por Bobbio:

“Podemos destacar seis critérios de distinção:

  1. o primeiro se baseia na antítese universalidade/particularidade e contrapõe o direito natural, que vale em toda parte, ao positivo, que vale apenas em alguns lugares (Aristóteles – Inst. – 1ª. definição);

  2. o segundo se baseia na antítese imutabilidade/mutabilidade: o direito natural é imutável no tempo, o direito positivo muda (Inst. – 2ª. definição - Paulo); esta característica nem sempre foi reconhecida: Aristóteles, por exemplo, sublinha a universalidade no espaço, mas não acolhe imutabilidade no tempo, sustentando que também o direito natural pode mudar no tempo;

  3. o terceiro critério de distinção, um dos mais importantes, refere-se à fonte do direito e funda-se na antítese natura-potestas populus (Inst. – 1ª. definição - Grócio);

  4. o quarto critério se refere ao modo pelo qual o direito é conhecido, o modo pelo qual chega a nós (isto é, os destinatários), e lastreia-se na antítese ratio-voluntas (Glück): o direito natural é aquele que conhecemos através de nossa razão (...).

  5. o quinto critério concerne ao objeto dos dois direitos, isto é, aos comportamentos regulados por estes: os comportamentos regulados pelo direito natural são bons ou maus por si mesmos, enquanto aqueles regulados pelo direito positivo são por si mesmos indiferentes e assumem uma certa qualificação apenas porque (e depois que) foram disciplinados de um certo modo pelo direito positivo (é justo aquilo que é ordenado, injusto o que é vetado) (Aristóteles, Grócio);

  6. a última distinção refere-se ao critério de valoração das ações e é enunciado por Paulo: o direito natural estabelece aquilo que é bom, o direito positivo estabelece aquilo que é útil” (Bobbio, O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, 1995, p. 22/23).

Assim considerado o encaminhamento histórico da questão, especialmente na modernidade, é que passa a se tornar ingrediente indispensável de toda a busca jusfilosófica, não deixando mais de se encontrar nos manuais de Filosofia do Direito como página indispensável de reflexão,6 revelando-se como uma espécie de último sopro de atuação da própria idéia de justiça.7 De fato, entender simplesmente que a natureza define o conceito de direito natural é reduzir as potencialidades humanas (psíquicas, intelectivas, sociáveis, interativas, produtivas, artísticas, éticas...) ao dadoPage 4 natural. Ora, a preocupação de Miguel Reale se dá no sentido de afirmar que o ser humano está mais afeto ao construído (artifício) que ao dado (natureza). A palavra direito significa algo da ordem da cultura - o que importa em luta, transformação de valores, história, dialética com o poder, etc. -, e não um simples dado da ordem natural.8

O que se pretende neste momento é detectar as raízes da formação desta consciência intelectual, especialmente filosófica, que viria a dar sustentação e formaria os pilares de estruturação da arquitetura moderna.9 Isto significa, entre outras coisas, demonstrar histórico-filosoficamente o processo de construção dos direitos humanos, que, na verdade, não são dedutíveis de esferas ônticas quaisquer, mas que são fruto de importante luta social e intelectual para a sua possibilitação em sociedade, sobretudo quando se trata de afrontar privilégios e desigualdades sociais. É o que nos afirma Ferreira da Cunha:

“Não há, em suma, um direito justo no céu dos conceitos platónico, e um direito imperfeito e injusto no nosso pobre e imperfeito mundo sublunar. O problema do Direito Natural não é descobrir esse celestial livro de mármore onde, gravadas a caracteres de puro oiro, as verdadeiras leis estariam escritas, e que, ao longo dos séculos, sábios legisladores terrenos não conseguiram senão vislumbrar” (Cunha, O Ponto de Arquimedes, 2001, p. 94).

3. A construção da mentalidade moderna

Cronologicamente, a modernidade implica um longo processo histórico, a iniciar-se em meados do século XIII e a desdobrar-se em sua consolidação até o século XVIII, de desenraizamento e de laicização, de autonomia e liberdade, de racionalização e de mecanização, bem como de instrumentalização e de industrialização.10

É impossível pensar o modus vivendi moderno, centrado na idéia de sujeito-doconhecimento, na idéia de cidadania constitucional, de democracia representativa, de direitos humanos, de organização estatal-repressivo-burocrática das dimensões social e econômica, e de progresso técnico-científico, sem a recorribilidade necessária aos arcanos do ideário moderno. Trata-se de um ideário que vê na história um processo linear em direção à racionalização, à capitalização, à estruturação do Estado, ao progresso, à centralização do poder. É o que se fazPage 5 quando se pretende entrelaçar a faticidade do que é feito à idealidade do que é pensado.

Com o pensamento cartesiano, segundo alguns é que se teria iniciado a consciência da subjetividade cognitiva. Este seria o start da modernidade como forma de dominação e colonização do mundo (res extensa) pela razão (res cogitans). Isto, no entanto, não é consenso entre os autores, e os referenciais teóricos mudam.

A modernidade, para Habermas, por...

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