Os juros monetários desde a antiguidade

AutorGlauber Moreno Talavera
Ocupação do AutorExecutivo corporativo em São Paulo; Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP
Páginas31-67

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É certo que, ao examinar-se os textos seminais que retratam as leis e os costumes dos povos, constata-se que, no mais das vezes, a expressão “usura” é interpretada como simples sinonímia de “juros”; algumas vezes, ao total acaso; outras, referindo-se aos juros monetários de forma pejorativa. Entretanto, nos poucos documentos em que há diferenciação entre uma e outra expressão, estes apenas estabelecem de maneira rudimentar que, se por um lado os juros constituem remuneração lídima pelo uso do capital, por outro, a usura pecuniária exterioriza prática ostensiva relacionada à especulação ilícita que consiste na cobrança de juros monetários em patamares imoderados.

É evidente que ao estudarmos a história dos juros e da usura não faremos nenhuma alusão comparativa entre os vetustos e os modernos conceitos de cada instituto, sobretudo porque as noções atuais sobre a dimensão e importância do tempo em sua relação com o capital, embora versadas e tergiversadas num ou noutro sentido ao longo dos tempos, foram sedimentadas com mais propriedade a partir do século XX, com o advento das bases do capitalismo atual, fundado na propriedade privada dos meios de produção e no ideário de livre mercado.

Ademais, é importante salientar que os conceitos cunhados em cada período são, decerto, consequência dos influxos e da confluência de fatores sociais, políticos, econômicos, religiosos, metafísicos e outros vários, dos quais o seu conceptor, naturalmente, não consegue se dissociar, sobretudo porque está inserido no interstício desse mosaico de ideias, pensamentos, cores e sabores de um determi-

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nado período. Em outras palavras, ordinariamente o tempo entre duas ideias engendradas e compartimentadas em contextos diferentes corresponde exatamente ao intervalo de duração da pertinência e validade de cada uma delas, embora algumas ideias e conclusões sejam excepcionalmente reconhecidas como atemporais.

O exegeta é sobremaneira influenciado pelas circunstâncias e peculiaridades próprias de seu tempo, que dele não se dissocia sob nenhuma hipótese, e que lhe dificulta insofismavelmente a construção de conceitos atemporais e universalizantes. Assim ocorreu também com a interpretação dos juros monetários, cujo conceito fora, durante muito tempo, concebido em contextos históricos cujo torpor religioso desmesurado e o consequente temor às censuras eclesiásticas, que previam inclusive pena de excomunhão, encalacraram os que ensejavam mais que uma fresta estreita no véu da verdade da dinâmica do mercado.

Os juros e a usura, e também os impostos, existem desde os registros primários das primeiras civilizações de que se tem notícia. Em aproximadamente 1780 a.C., na antiga Mesopotâmia, o Código do rei babilônico Hamurabi, esculpido num monólito cujos escritos originais estão em caracteres cuneiformes acadianos, já continha disposições tratando dos juros1e também dos contratos de empréstimos em vários dispositivos.2Do seu Capítulo VII, que tratava dos empréstimos e dos juros, depreende-se as seguintes regras:

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“Art. O. Se um mercador emprestou a juros grãos ou prata e não recebeu o capital, mas recebeu os juros do grão ou da prata, e não descontou o grão ou prata que recebeu e não redigiu um novo contrato ou adicionou os juros ao capital, esse mercador restituirá em dobro todo grão ou prata que tomou”.
“Art. P. Se um mercador emprestou a juros grão ou prata, e quando emprestou a juros ele deu a prata em peso pequeno ou grão em medida pequena e quando o recebeu ele quis receber a prata em peso grande ou grão em medida grande, esse mercador perderá tudo quanto houver emprestado”.

Desses regramentos, é notório que as proibições não estavam relacionadas aos juros em si, mas apenas aos juros exponenciais fixados em prazo inferior a um ano, que é o tempo, em geral, que medeia entre uma e outra safra, uma vez que a subsistência e a empresa dos mutuários à época estavam vinculadas exclusivamente às terras rurais nas quais praticavam a agricultura. É de verificar-se, também, que a segunda norma acima transcrita somente delineia os contornos ordinários do contrato de mútuo, que estabelece ao mutuário a obrigação de devolução ao mutuante do mesmo gênero, quantidade e qualidade do bem fungível que lhe fora emprestado.

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Ademais, depreende-se das tábuas3utilizadas para cálculo dos juros decorrentes desses contratos de empréstimos praticados, que os babilônicos de há muito conheciam os rudimentos da moderna matemática financeira e da economia e, além disso, que desde priscas eras utilizavam o sistema sexagesimal posicional, dominavam cálculos aritméticos e, tal qual os sumérios que habitavam a região localizada entre os rios Tigre e Eufrates, estavam habituados a desenvolver seus negócios através de faturas, notas promissórias e duplicatas.

Na Índia antiga não existe alusão específica aos juros monetários, mas as primeiras referências à usura podem ser encontradas nos textos védicos indo-arianos de 2000 a 1400 a.C., nos quais reiteradamente utiliza-se o vocábulo “usurário” para denominar qualquer um que realizasse empréstimos dos quais haveriam de ser contados juros desproporcionais. Ademais, compulsando os textos hinduístas Sutra4e os Jatakas budistas5encontra-se vários trechos que tratam do pagamento de juros, classificando tais práticas como menores e dispensando-lhes menoscabo, o que culminou com a promulgação de uma lei proibindo os brahmanes e kshatriyas – membros das castas superiores – de figurarem como mutuantes nos contratos de empréstimos dos quais decorressem juros, haja vista a forte repulsa aos que praticavam essa espécie de cobrança.

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No Alcorão, o livro sagrado do Islã, consta vedação aos excessos do capital provenientes das adições relacionadas aos juros, sendo importante ressaltar que os povos árabes distinguem da usura o que denominam “riba”, que não caracteriza propriamente juros e sequer tem relação direta ou indireta com eventual imoderação e, muito ao contrário, significa justa remuneração por um empréstimo realizado em benefício de outrem. Em outras palavras, o mútuo bancário é permitido se previamente convencionada a citada riba. No livro sagrado do Islã existem excertos e fragmentos que denotam restrições à usura:

“Capítulo II, v. 276: Deus permitiu a venda, proibiu a usura. Aqueles que voltarem para a usura serão entregues ao fogo, onde ficarão eternamente.
“(...)
“Capítulo XXX, v. 38: O dinheiro que dais a juros para o aumentardes com o bem dos outros, não aumentará perante Deus”.

Destarte, a partir da escola do pensamento islâmico, fundada por Sayyed no século XIX, relativiza-se a vedação em relação aos juros e sedimenta-se o entendimento de que a proibição é válida somente para a usura pura, assim considerados os acréscimos de capital provenientes de empréstimos tomados com a finalidade de empregar o capital em algum negócio com o objetivo de multiplicá-lo.

Na gênese do Judaísmo, o dinheiro não tinha conotação pejorativa. Deus, quando se reporta a Abraão, ordena que seu povo – o “povo de Deus”, “povo eleito” – representante do Criador perante o gênero humano, cresça, multiplique-se e, se possível, seja rico, para servi-lo.

Na Torá recomenda-se que se busque a fortuna, não como um fim em si mesmo, mas, entre outros motivos, sobretudo para manter-se distante da tentação de roubar.

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A cobrança de juros, prática denominada nechekh na língua hebraíca (“mordida”, numa tradução literal), é vedada entre si aos ju-deus, mas permitida na hipótese de o tomador ser estrangeiro:

“Poderás fazer um empréstimo com juros ao estrangeiro” (Deuteronômio 23,21).

No Talmude, que é uma obra que compila discussões rabínicas sobre leis judaicas a partir das leis compiladas por Moisés na Torá, também se identifica referências à usura que, embora proibida, era amplamente tolerada pelos rabinos. Como bem observa Jacques Attali:
“(...) apesar dessa interdição geral, a interpretação sutil dos textos permite que os tribunais tolerem certas práticas: de início, eles limitam a interdição aos empréstimos para o consumo, os únicos que concernem verdadeiramente aos pobres. Os empréstimos para investimento são autorizados segundo mecanismos bastante precisos. Por exemplo, os bens deixados como garantia de um empréstimo sem juros são resgatados, na hora do reembolso pelo tomador, com uma margem equivalente a juros”.6Fadados a viver no exílio após a cisão que resultou na formação do reino da Judéia – o reino do sul7(constituído em torno de Jerusalém), e o reino de Israel – nos arredores da Samaria (o reino do norte) – os hebreus valeram-se da boa acolhida para deitarem raízes por algumas gerações na Babilônia. Lá, segundo registros, forneceram crédito a juros aos babilônios. Nos arquivos de uma das primeiras casas de crédito do mundo – a “Casa de Murashu” instalada em

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Nippur,8que financiava a agricultura e o comércio mediante técnicas muito simples de participação nos lucros – foram encontrados setenta nomes de prestamistas judeus e também, em igualdade de condições, contratos assinados entre homens de negócios judeus e cidadãos babilônios.9Com objetivo de codificar os preceitos éticos básicos a serem observados pelas respectivas comunidades, os juízes da Babilônia, exilados que se dirigiam a exilados, redigiram a “Talmude da Babilônia”, que autorizava a cobrança de juros aos não-judeus e, indo além da Talmude redigida originariamente na Palestina, permitia a cobrança de juros entre judeus, desde que enquadrado o prestamista como espécie de sócio do tomador.10A acepção pejorativa do vocábulo “usurário” remonta ao domínio de Alexandre, o Grande, sobre o Egito. Ao estender seus domínios acompanhado de financistas judeus, o filho de Filipe da Macedônica legou, aos judeus, a construção de um templo no monte Garizim, na Samaria. A partir do porto comercial de Alexandria, no Egito, estabeleceu-se um pólo difusor do judaísmo por todo o mundo grego, o que desagradou os egípcios que, em tom de...

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