Juros diferenciados para a fazenda publica, por quê?

AutorLeonardo de Abreu Birchal
Páginas200-230

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1. Introdução

Com muita propriedade, Georges Ripert afirmou que "[é] mais fácil substituir, nas usinas, material envelhecido por máquinas novas do que substituir uma aparelhagem jurídica tradicional pela nova ordem jurídica".1 Se a afirmativa do jurista francês é dotada de verdade quase que universal e demonstra bem a dificuldade do direito em seguir o ritmo do mundo dos negócios, pelo menos no campo dos juros e da correção monetária, o direito brasileiro esforçou-se bastante em desmenti-la.

Ao longo dos anos, várias foram as disposições legais e regulamentares dispostas a acompanhar os movimentos do cenário económico, criando Planos Económicos,2 modificando taxas de juros3 e estabelecendo novos indexadores.4 Infelizmente, porém, a

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maioria delas destinou-se mais ao atendimento de interesses questionáveis de política monetária do que à satisfação das reais necessidades de mercado.

Em 29 de junho de 2009, uma nova alteração foi concretizada nesta área. A Lei 11.960/2009 reformulou a disposição do art. 1o-F da Lei 9.494/1997, para dispor que os juros remuneratórios, moratórios e a correção monetária devidos pela Fazenda Pública passariam a incidir por uma única vez, de acordo com os índices oficiais aplicados à caderneta de poupança.

A modificação, como pode se ver, não é pequena ou irrelevante. Apesar de consistir na mudança de um artigo curto de lei, suas consequências são significativas, implicando em nova disciplina para os juros de remuneração, de mora e para a correção monetária de que a Fazenda Pública é devedora.

Ao invés de existirem indicadores diversos para cada uma destas categorias - tal como se dava em função dos arts. 389, 395, 404,406 e 591 do Código Civil -, agora só o índice oficial divulgado para as cadernetas de poupança servirá como referência para a incidência de todas elas e por uma única vez.

Além disso, uma distinção de tratamento entre a Fazenda Pública e os particulares é observada. Se os débitos daquela passam a ser objeto de remuneração, penalização e atua-lização exclusiva pela poupança, os destes continuam a sofrer incidências específicas indicadas na legislação civil para os juros remuneratórios (CC, art. 591), para os juros moratórios (CC, art. 406) e para a correção monetária (CC, arts. 389, 395 e 404) (v. item 2, infra).

Não obstante, até o momento, foram poucas as manifestações a respeito do art. 1o-F da Lei 9.494/1997. Adoutrina restou praticamente silente a seu respeito e a jurisprudência dos tribunais limitou-se ao exame de normas de direito intertemporal, para verificar o termo inicial de sua vigência (v. item 4, infra).

Assim, o objetivo deste trabalho é conferir maior amplitude no estudo da matéria.

Para tanto, duas questões iniciais e principais serão colocadas:

  1. É o índice da poupança apto a exercer as três funções desempenhadas pelos juros de remuneração, de mora e pela correção monetária (respectivamente, remuneração, penalização e atualização do capital)?

  2. É justificável ou não violaria o princípio da isonomia a distinção feita pelo art. 1o-F da Lei 9.494/1997 para a Fazenda Pública?

Uma última questão será colocada ainda no que toca às normas de sobredireito. Como este é o ponto abordado pela jurisprudência-principalmente pela do Superior Tribunal de Justiça - é devido um olhar sobre o posicionamento dos tribunais, seja para confirmá-lo ou rejeitá-lo, independente das conclusões a que se tenha chegado quanto aos questiona-mentos anteriores.

Vale destacar que, no desenvolvimento das questões postas, tentar-se-á encarar não só os aspectos jurídicos pertinentes, mas também o contexto atual da economia nacional, para que se aprecie a real dimensão da operação proporcionada pelo art. 1o-F da Lei 9.494/1998 e os seus desdobramentos.

Todavia, antes de se encaminhar às respostas das indagações propostas, é preciso compreender os conceitos relacionados aos juros remuneratórios, moratórios e à correção monetária, verificando-se, ainda, o regime a que a Fazenda Pública estava submetida até a alteração do art. 1o-F da Lei 9.494/1997, pela Lei 11.960/2009.

2. Juros e correção monetária
2. 1 Juros remuneratórios e juros moratórios Juros legais e juros convencionais

Juros são frutos civis.5 Apesar de destacáveis do principal,6 são bens acessórios sempre relacionados à existência daquele.

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Podem ser remuneratórios (ou compensató-rios, como também se costuma denominá-los) ou moratórios, dependendo da função que assumem.

Quando remuneratórios, constituem a contraprestação pela privação e pelos riscos que o titular sofre pela cessão de bens a terceiros. Sua incidência pode se dar sobre qualquer objeto, desde que fungível, admitindo-se, por exemplo, juros sobre o pagamento de determinada quantidade de soja, calculados sobre percentuais desta.7

Não obstante, o normal é que eles sejam devidos em função do empréstimo em espécie, no dizer de Caio Mario da Silva Pereira, serem os juros remuneratórios "o preço devido pelo uso do capital"8 e Álvaro Villaça de Azevedo que "mutua-se (empresta-se) dinheiro contra o pagamento de juros".9

De uma forma ou de outra, o importante de se considerar quanto aos juros remuneratórios é a sua ideia de contrapartida. São eles nada mais do que o valor oferecido pelo devedor pela utilização do bem cedido por outrem ou, como quer Pontes de Miranda, "a prestação que enche o lugar ao que se tirou do patrimônio do credor".10

De modo contrário, os juros moratórios não se ligam a qualquer tipo de remuneração, sendo verdadeira penalidade pelo atraso no pagamento.11 São devidos, assim, em razão da mora, que, nos termos do art. 396 do Código Civil, depende da verificação de fato ou omissão imputável ao devedor (i.e. culpa).12

Os juros podem ser ainda convencionais ou legais, segundo decorram, respectivamente, da convenção ou da lei.13 A despeito de intuitiva, não é exata a correspondência entre juros remuneratórios e convencionais ou moratórios e legais, existindo tanto juros remuneratórios legais, como os que mandante deve ao mandatário pelo adiantamento de despesas (CC, art. 677); quanto os moratórios convencionais, quando as partes os estipulam em contrato, dentro dos limites legais.14

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Todavia, para além dos aspectos debatidos neste item, tema de grande importância e relevância prática é o da limitação dos juros. Longe de tranquilo ou simples, este é um estudo permeado por polêmicas e desencontros, sendo enfrentado abaixo, de acordo com as taxas previstas para os juros moratórios e para os remuneratórios.

2.1. 1 As taxas legais dos juros moratórios

No Código Civil de 1916, os juros moratórios não possuíam limites, sendo que, na ausência de sua previsão pelas partes ou nos casos de sua imposição pela lei, eram fixados em 0,5% ao mês ou 6% ao ano. Neste sentido, eramos revogados arts. 1.062 e 1.063:

"Art. 1.062. Ataxa de juros moratórios, quando não convencionada (art. 1.262), será de 6% (seis por cento) ao ano.

"Art. 1.063. Serão também de 6% (seis por cento) ao ano os juros devidos por força de lei, ou quando as partes os convencionarem sem taxa estipulada."

Após, com o Decreto-lei 22.626/1933, os juros de mora ganharam um teto no art. 5o deste diploma (de difícil redação), passando a serem elevados até o máximo de 1% ao mês ou 12%ao ano:15 "Art. 5o. Admite-se que pela mora dos juros contratados estes sejam elevados de 1% (um por cento) e não mais".

Esta tendência foi confirmada pela Constituição da República, que manteve a determinação do mesmo percentual no seu art. 192, § 3o:

"Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:

"§ 3o. As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar."

O art. 192, § 3o, da Constituição da República, porém, teve vida curta. Primeiro, foi considerada pelo Supremo Tribunal Federal como norma programática, desprovida de incidência imediata,16 e, após, foi retirada do texto constitucional pela Emenda Constitucional n. 40/2003.

Entretanto, a despeito da controvérsia sobre tal dispositivo, o certo é que, até então, poucas divergências havia em relação ao quantum da taxa legal para os juros moratórios. Sendo sempre referida de forma expressa e sem remissão a outro parâmetro, as polêmicas nesta área podiam se dar quanto a outros aspectos, mas não em razão do percentual aplicável, que vinha declinado de forma expressa no texto da lei.

Com o advento do Código Civil de 2002, no entanto, esta realidade se modificou. No seu art. 406, foi estabelecido que os juros de mora seriam contados não mais segundo uma...

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