Jurista criativo

AutorDaniel Vargas
Ocupação do AutorCoordenador do Centro de Pesquisas Justiça e Sociedade, CJUS/FGV DIREITO RIO
Páginas83-104
JURISTA CRIATIVO
DANIEL VARGAS1
Introdução
A segunda metade do século XX foi marcada pela hegemonia de dois perf‌i s
de jurista no ocidente: o jurista clássico e o jurista crítico. (a) O jurista clássico
concebe o direito como um sistema que encarna um conjunto de valores coleti-
vos e que organiza o processo de evolução social. Atribui ao judiciário o poder
central de mediar a dinâmica de progresso coletivo, e vê o magistrado como o
‘exemplo’ maior de ação jurídica. A preocupação central do jurista clássico é a
justif‌i cação do exercício da sua autoridade, o que exige exercer seu poder na
medida certa para realização da justiça. (b) O jurista crítico concebe o direito
como mera expressão de interesses de grupos de poder, com frequência em
conf‌l ito com o interesse geral da sociedade. Desaf‌i a a elegância da argumenta-
ção judicial, apontando suas contradições implícitas, e rechaça a centralidade
do juiz no jogo de transformação social. Eleva a política de massas como mé-
todo por excelência de encaminhamento de profundas transformações coleti-
vas e, quando muito, vê no judiciário um espaço para resguardar direitos das
minorias e resistir à opressão da elite. Seu impulso dominante é a revolução
das estruturas sociais em nome da emancipação coletiva. Ao longo do século
passado, a prof‌i ssão jurídica, as escolas de direito, os clubes de advogados e a
rotina de nossas instituições foram marcadas pela combinação, em algum grau,
destes dois perf‌i s.
Nas primeiras décadas do século XXI, começamos a perceber, em setores
de vanguarda da academia e da sociedade, o surgimento de um novo per-
f‌i l de jurista: o jurista criativo. Estimulado pela crescente complexidade dos
problemas sociais de nosso tempo e pela dinâmica da globalização, o jurista
criativo trata o direito como insumo de reorganização coletiva, e concebe a
sociedade como o atelier em que realiza a sua criatividade. Ao mesmo tempo
1 Daniel Barcelos Vargas é Coordenador do Centro de Pesquisas Justiça e Sociedade, CJUS/
FGV DIREITO RIO. Doutor e Mestre em direito pela Universidade de Harvard, bacharel e
mestre em direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Brasília (UnB), e
coorganizador do Global Legal Education Forum (GLEF) na Harvard Law School em 2012.
84
CADERNOS FGV DIREITO RIO
que reconhece a capacidade do direito de organizar a colaboração coletiva, o
jurista criativo não ignora suas tensões internas e seu potencial de opressão.
Reconhece o judiciário como organismo social relevante, porém secundário.
Entende o direito como uma combinação de regras em constante tensão, que
exprimem valores e interesses prioritários em contextos variados. É mais pro-
fundo e mais sensível que o jurista clássico, mais forte e mais cortante que o
jurista crítico, e tem como seu impulso dominante a criatividade social.
Hoje, contudo, o jurista criativo ainda é incompreendido e marginalizado
na sociedade contemporânea. Na ausência de um horizonte que reconheça e
abrigue seu jeito de pensar e de agir, o jurista criativo tende a buscar guarida
dentro dos horizontes jurídicos convencionais. Surgem, excepcional e episo-
dicamente, f‌i guras híbridas: o jurista clássico-criativo, o jurista crítico-criativo,
e, com mais frequência, o líder social-criativo que encarna a função de jurista,
na ausência deles. Em que pese a relevância desses agentes, grande parte da
criatividade dos juristas permanece desperdiçada em nossos dias. Para libertar
a sua criatividade e direcionar sua ação para o enfrentamento efetivo dos de-
saf‌i os sociais mais graves do nosso tempo, defendo a necessidade de se criar,
na cultura jurídica atual, um novo espaço para abrigar o jurista criativo. Ponto
de partida para a reorientação da cultura jurídica pode ser repensar o ensino e
o papel da escola de direito no século XXI.
I. Criatividade social
Considero a criatividade social o elemento característico da atuação do jurista
criativo. Def‌i no criatividade social como a capacidade de redesenhar as insti-
tuições que organizam a vida em sociedade, para construir novas formas de
colaboração que facilitem a solução de problemas sociais, assim ampliando os
horizontes de nossa liberdade. Algumas dessas instituições sociais são reconhe-
cidas of‌i cialmente, pelo direito positivo, outras (ainda) não. Juntas, formam um
complexo de ordenação coletiva a que convencionamos chamar direito. O di-
reito f‌i xa parâmetros de ação, cria previsibilidade na interação social e facilita a
colaboração em distintos contextos para atingir expectativas desejáveis. Por sua
vez, o direito também impõe, com frequência, restrições que limitam a capaci-
dade coletiva de encontrar respostas para problemas sociais do nosso tempo.
Três exemplos contemporâneos ilustram o exercício bem-sucedido da
criatividade social.2
João Joaquim Segundo, ex-padre, residente na periferia de Fortaleza, pre-
ocupado com a pobreza extrema que af‌l ige milhares de cidadãos na comuni-
dade Palmas, criou banco que emite e gere uma nova moeda social, que circula
2 Entre outros exemplos de sucesso, cito Lawrence Lessig (Creative Commons), Ronaldo
Lemos (Overmundo), Salman Khan (Khan Academy).

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT