Jurisdição e processo na contemporaneidade

AutorMário Luiz Ramidoff
CargoDesembargador no TJPR
Páginas80-87

Page 80

Alternativas procedimentais como a conciliação e a mediação devem deixar de ser paliativos judiciais e passar a impedir demandas que podem muito bem ser resolvidas fora do sistema de justiça

Uma das principais características contemporâneas de um regime democrático é precisamente a (de)limitação de toda e qualquer intervenção estatal através de sua regulamentação legal. A jurisdição é exemplo disso, pois, ao se destinar constitucional e legalmente a atribuição de (re)solução dos conflitos ao sistema de justiça (Poder Judiciário), delimitam-se regras processuais e procedimentais que legitimam - isto é, autorizam e justificam - essa espécie de inter-venção estatal. O processo, vale dizer, a relação jurídica processual, por sua vez, legalmente organizado por meio de regras específicas, expressas e previamente estabelecidas, para além de se constituir em uma limitação da intervenção estatal, por certo transformou-se em uma garantia fundamental do cidadão contra toda e qualquer sorte de intervenção estatal. Daí, pois, a sua constituição democrática como orientação principiológica e, portanto, vinculativa, como devido processo legal, então constitucionalmente consagrado - assim como seus consectários da ampla defesa e do contraditório substancial -, nos incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição da República de 19881.

1. Novas concepções

A contemporaneidade exige uma formação profissional - aqui, técnico-jurídica, desde os primeiros anos do curso de graduação até posteriormente nos de pós-graduação - que não se conforme tanto com as tradições pragmaticamente consolidadas quanto à necessidade de uma perspectiva multi-disciplinar e requer, em cada caso concreto, que se estabeleça uma reflexão socialmente consequente. Bem por isso, o ensino do direito - assim como o seu estudo, pesquisa e extensão universitárias - deve estimular uma nova maneira de pensar tudo aquilo que se (re)produz no âmbito jurídico-legal.

A reformulação das concepções sobre jurisdição, processo, justiça, dentre outras categorias caracteristicamente elementares ao conhecimento jurídico-legal, na modernidade, portanto, impõe-se a partir das opções políticas constitucionalmente adotadas. A autodeterminação dos povos, contemporaneamente, perpassa pela vinculação do Estado e da sociedade brasileira aos valores que demo-craticamente foram adotados na Constituição da República de 1988, pelo que se afigura imprescindível a (re)discussão permanente das funções sociais do atual sistema de justiça brasileiro.

1.1. Mundo da vida vivida

Para além do "mundo jurídico" existe toda uma efervescência social no mundo da vida vivida, talvez consignável como "realidade" que não seja apenas aquela construída por uma dada e específica concepção cultural, política, econômica ou ideoló-

Page 81

gica. O mundo da vida vivida está para além daquilo que as hegemonias político-econômicas possam identificar, reconhecer e reproduzir como "realidade". Portanto, toda e qualquer intervenção estatal não pode simplesmente ignorar o mundo da vida vivida e, assim, deixar de oferecer uma prestação jurisdicional cada vez mais adequada ao caso concreto (legal) e socialmente consequente.

A REFORMULAÇÃO DAS CONCEPÇÕES SOBRE JURISDIÇÃO, PROCESSO, JUSTIÇA, DENTRE OUTRAS CATEGORIAS ELEMENTARES AO CONHECIMENTO JURÍDICO-LEGAL, IMPÕE-SE A PARTIR DAS OPÇÕES POLÍTICAS CONSTITUCIONALMENTE ADOTADAS

1.2. Emancipação subjetiva

A emancipação subjetiva é a melhoria da qualidade de vida individual e coletiva que deve ser assegurada a cada um dos cidadãos, por conta de toda e qualquer intervenção estatal; aqui, median-te uma prestação jurisdicional que não só se destine à resolução adequada do caso concreto (legal), mas, também, que proporcione a melhoria da qualidade de vida individual e coletiva.

1.3. Liberdades públicas

As liberdades públicas são identificadas no regime democrático brasileiro como os interesses indisponíveis, os direitos individuais e sociais, e as garantias fundamentais - como, por exemplo, o devido processo legal - que, para o mais, servem como critérios objetivos para a (de)limitação de toda e qualquer intervenção estatal - aqui, mais de perto, pelo oferecimento de prestação jurisdicional.

As liberdades públicas, assim, têm função de restringir a intervenção estatal, e, portanto, constituem-se em critérios objetivos para a verificação do nível de democracia em cada Estado e sociedade.

1.4. Multidisciplinaridade (propedêuticas)

Eis, pois, algumas das valiosas contribuições que a multidisciplinaridade - metodológica e epistemológica - pode seriamente oferecer para uma (re)solução judicial não só adequada às circunstâncias de determinado caso concreto, mas cada vez mais socialmente consequente para com a melhoria da qualidade de vida individual e coletiva, por meio do asseguramento e da efetivação das liberdades públicas.

Nessa linha, observa-se que as disciplinas propedêuticas podem oferecer ao estudo, à pesquisa e à extensão universitárias significativas contribuições metodológicas e epistemológicas acerca de questões que não se restringem à discussão jurídico-legal. A possibilidade da (re)discussão ética, moral, filosófica, política, social, econômica, na verdade, serve para a construção e o entendimento de parâmetros teórico-pragmáticos que possam ser utilizados para a adoção de medidas e decisões sobre questões, na atualidade, cada vez mais complexas. Essa eterna lei do fluxo e do refluxo epistemológico, segundo Sérgio Buarque de Holanda2, na cena jurídico-legal contemporânea, passa, assim, a ser uma exigência da (re)novação do pensar o direito.

Como a utopia, a filosofia, enfim, as disciplinas propedêuticas, o ato de (re)pensar o direito serve também para o primeiro e decisivo passo na direção atual de sua (re)formulação, (re)colocando todos os envolvidos em movimento, evitando com isso as incongruências decorrentes das urgências infundadas dos modismos e dos estrangeirismos teórico-pragmáticos. Para o mais, permanece a preocupação de como possam ser hodiernamente abordadas as temáticas relacionadas à jurisdição e ao processo, que não seja pela metodologia multidisciplinar e pela propedêutica epistemológica, vale dizer, para além do senso comum técnico-jurídico (legal).

2. Jurisdição

A jurisdição entendida como função do Estado é considerada como um conjunto de atribuições legais vinculado ao cargo público legalmente criado para a tarefa de julgar. O órgão julgador é previamente definido por critérios objetivos que servem para distribuição das atribuições (legais) destinadas ao julgamento de casos concretos, ao que se denomina de competência. A competência jurisdicional é a maneira pela qual a função de julgar é distribuída entre os diversos órgãos julgadores, conforme critérios legais estabelecidos pela legislação processual pertinente.

A jurisdição, no entanto, tem sido compreendida como uma prerrogativa legal assegurada ao órgão julgador com o objetivo de que lhe sejam garantidas as condições minimamente exigíveis para que pos-

Page 82

sa, de forma independente, cumprir com os ditames constitucionais e legais - processuais e materiais - indispensáveis à função de julgar. Além disso, a jurisdição também pode ser compreendida como uma das expressões das liberdades públicas, então reconhecida ao cidadão para que possa ver efetivado os seus direitos individuais, de cunho fundamental.

É possível observar que atualmente a jurisdição se encontra entre as liberdades públicas - interesses indisponíveis, direitos individuais e garantias fundamentais - e as prerrogativas legalmente asseguradas para o efetivo exercício da função de julgar. Isto é, o exercício regular desta função pública (ato de julgar) justificaria plenamente o reconhecimento das prerrogativas legalmente atribuídas ao órgão julgador, quando fossem indispensáveis para a efetivação e o asseguramento das liberdades públicas.

Em paráfrase a Jorge de Figueiredo Dias3, não se entende legitimamente possível o desempenho de uma prerrogativa funcional...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT