Jurisdição constitucional na formação da própria constituição

AutorIrapuã Beltrão
CargoProcurador federal da Advocacia-Geral da União Bacharel em Direito (UERJ) Mestre e doutor pela UGF
Páginas6-15

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Introdução

No desenvolvimento da teoria do direito, diversas definições foram formuladas acerca da conceituação de constituição. Contudo, cediço que várias concepções estabelecidas se restringiram a demonstrar, externamente, a maneira como as constituições são formadas, ou ainda, como são elaboradas. Entretanto, a questão fundamental no que diz respeito à constituição, é saber no que consiste sua verdadeira essência, seu verdadeiro conceito, revisitando as velhas concepções e questionando a simplicidade de algumas definições reproduzidas, especialmente diante das modernas contribuições da jurisdição e interpretação formada a partir dos textos positivados.

Mesmo no estudo moderno do direito constitucional, muitos restringem o campo de investigação aos termos positivados do seu texto, sua interpretação e aplicação. Esta realidade da investigação jurídica contida não representa uma característica exclusiva do direito brasileiro, sendo também recorrentes em outros ordenamentos. Cumpre não sucumbir à tentação da singeleza da concepção constitucional, face à importância inquestionável do papel daquela.

Ademais, no experimento da aplicação e jurisdição constitucional, mostra-se ainda comum aos tribunais e autores pátrios a incorporação de institutos e fenômenos jurídicos oriundos de outras ordens constitucionais sem que este processo seja devidamente acompanhado pela adequação do papel constitucional e do próprio sentido da norma naquele país onde os institutos foram elaborados.

Neste particular é mais do que comum no desenvolvimento jurídico brasileiro a invocação de inspirações e elementos do constitucionalismo francês1 e norte-americano2 - e, mais recentemente, aos precedentes alemães3 -, sem aqueles cuidados já mencionados definidores da constituição.

Por tudo, impende rever e indagar os conceitos do que é constituição, sobretudo diante de sua perspectiva traduzida na jurisdição constitucional cada vez mais internacional e global, cotejando as visões afirmadas comumente no Brasil em razão destas influências externas.

1. O desenvolvimento do conceito de constituição

A constituição, em sentido amplo, representa o ato de constituir, "de estabelecer, de firmar; ou, ainda, o modo pelo qual se constitui uma coisa, um ser vivo, um grupo de pessoas; organização, formação"4. Juridicamente, porém, tal conceituação não pode limitar-se ao sentido coloquial da expressão, mesmo porque as ciências do direito exigem particularização própria deste ramo do conhecimento.

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Ainda que potencialmente inspiradas nos conceitos apresentados pelo senso comum, as expressões jurídicas incorporam conteúdo próprio, agregado por peculiaridades em seus significados. Num primeiro ponto de investigação, portanto, é de se perquirir assim aquele conteúdo dentro da linguagem jurídica, cuja importância vem sendo há muito destacada por Miguel Reale5 em suas lições preliminares, utilizando várias ilustrações para corroborar seu posicionamento:

Cada ciência exprime-se numa linguagem. [...] Cada cientista tem a sua maneira própria de expressar-se, e isto também acontece com a Ciência do Direito. Os juristas falam uma linguagem própria [...] Estão vendo, pois, como uma palavra pode mudar de significado, quando aplicada na Ciência Jurídica.

Com isto, apesar de não refutado completamente o significado comum, é forçoso reconhecer que a adoção do vocábulo 'constituição' no ordenamento jurídico vem empregando sentido típico, ainda que acompanhado de signos que negam uma essência óbvia, única e imutável.

Inicialmente, o próprio emprego da terminologia 'constituição' há muito foi festejado pela doutrina nacional6 e na evolução dos documentos políticos que trataram das diversas nações na passagem dos séculos com vistas à organização dos Estados, como destacou Albert P. Blaustein7, inspirada na história dos Estados Unidos da América:

Os historiadores concordam geralmente que a primeira constituição a estabelecer as regras básicas para a criação de uma entidade governamental e política foram as chamadas Fundamental Orders of Connecticut de 1639; sabe-se que a Constituição da Virgínia de 1776 foi a primeira a usar a palavra 'constituição'.

Além desta relevância histórica da utilização do termo, a construção jurídica procurou compreender o conceito da constituição, sendo comum a concepção da norma de organização das nações, como ilustra sinteticamente Alexandre de Moraes8:

"Como a lei fundamental e suprema de um Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Além disto, cumpriria ainda à Constituição individualizar os órgãos competentes para a edição de normas jurídicas, legislativas ou administrativas."

Neste sentido, comezinha a compreensão didática de que o poder de elaborar a constituição é a manifestação soberana da suprema vontade política de seu povo, social e juridicamente organizado - tal qual previsto nas linhas históricas de Sieyes9 - como resultado da autodeterminação dos povos.

Ainda nesta visão apertada, é predominante nas lições preliminares do estudo jurídico de que a titularidade do poder constituinte pertence ao povo, cuja vontade se expressa por meio de seus representantes. Distingue-se, portanto, a titularidade e o exercício do poder constituinte, sendo o titular o povo e o exercente aquele que, em nome daquele, cria o Estado, editando a constituição10. Tais conceitos são importantes para a compreensão do papel, elaboração e funcionalidade da constituição, sendo, todavia, insuficiente para toda a proble-matização que a cerca11.

Assim, recuperada a perspectiva histórica-política12 e ultrapassando as preocupações com as formas de sua elaboração, a constituição já foi considerada instrument of government, lei fundamental sagrada e imutável, constituição do Estado que regula a autoridade pública, bem como com claro conteúdo político englobando os princípios de legitimação do poder e não mais a sua mera organização. Destas simplificações, alguns traços até perduraram fortemente pelo século XIX, não afetados necessariamente pelo primado da sistematização jurídica.

Já no século XX, com o advento da positivação e dos grandes documentos formalmente elaborados como tal, a sociedade mundial começou a conhecer a proliferação do conceito de constituição como um documento escrito, ainda que com conteúdo distinto da visão anterior, como esclarece Jorge Miranda: "O conceito material de Constituição vai acusar no século XX as repercussões dos acontecimentos que o balizam, vai ser assumido ou utilizado por diferentes regimes e sistemas políticos e abrir-se, portanto, a uma pluralidade de conteúdos"13.

Dentre estes novos conteúdos, destacam-se a recuperação de catálogos de direitos fundamentais. Como registram Cohen & Varat14, aproximando as experiências constitucionais norte-americana e brasileira recente, inclusive recuperando o mesmo ensaio do passado, inspirados nos primeiros textos de limitações dos poderes dos governos:

"The importance of a written dec-laration ofthe rights ofthe individual loomed large in the minds of early Americans. This tradition had grown out of struggles agains royal prer-rogative, and was reflected in written guaranties of Magna Carta (1215), the Petition of Rights (1628) and the Bill os Rights (1689)."

Independente das motivações e objetivos consagradores dos direitos fundamentais, este movimento ficou conhecido como "constitucionalismo"15, expandindo-se com uma característica que marcaria parte da experiência mundial.

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Além daquele conteúdo histórico, resta também o distintivo de que a constituição seria produzida por um ato de decisão que somente poderia ser alterado por outro ato de decisão. Por tal senso, identifica-se a inauguração do seu próprio conceito moderno, positivando em seu texto a forma de organização estatal e os direitos fundamentais. Não por outro motivo, aqui reside a base comum da constituição. O próprio Kelsen16, que procurou sistematizar a sua função a partir da sua visão diante do restante das normas do ordenamento jurídico, assim afirmava:

Através de múltiplas transformações por que passou, a noção de Constituição conservou um núcleo permanente: a ideia de um princípio supremo determinando a ordem estatal inteira e a essência da comunidade constituída por essa ordem. Com quer que se defina a Constituição, ela é sempre o fundamento do Estado, a base da ordem jurídica que se quer apreender.

Mas, neste sentido, estar-se-ia reduzindo o conceito jurídico de constituição à sua forma, aí considerada como o estatuto jurídico do político, mesmo que num sistema aberto de regras e princípios, aquela perspectiva organiza os elementos constitutivos do Estado, sobretudo para a produção da própria fe-nomenologia jurídica. Nesta visão comumente associada à teoria do direito formulada por Kelsen17, é afirmada a constituição como uma norma superior de cumprimento obrigatório, com todas as normas e regras que ali contiver, ou seja, um dever-ser.

Esta visão formal, portanto, coloca a constituição finalmente numa posição de hierarquia superior às demais normas, consagrando a festejada e balada supremacia constitucional fundante de todos os modernos mecanismos de controle dos atos posteriores e da atu-alíssima jurisdição constitucional.

Em outra obra do próprio Kelsen (2005, p. 182), extrai-se o conceito ali proposto:

"A constituição é aqui compreendida não um sentido formal, mas material. A constituição no sentido formal é certo documento solene, um conjunto de normas jurídicas que pode ser modificado apenas com a observância de prescrições especiais cujo propósito é tornar mais difícil a modificação dessas normas. A constituição...

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