Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico

AutorProf. Humberto Ávila
CargoAdvogado em Porto Alegre. Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul (AJURIS)
Páginas1-34

Advogado em Porto Alegre. Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul (AJURIS). Doutor em Direito (Doctor juris) e Certificado de Estudos em Metodologia da Ciência do Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito e Especialista em Finanças pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

"Ob der Satz wahr oder falsch ist, wird durch die Erfahrung entschieden, aber nicht sein Sinn".

(A experiência decide se o enunciado é verdadeiro ou falso, mas não o seu sentido).

LUDWIG WITTGENSTEIN

Page 2

Introdução

Para decidir pela imunidade dos "livros eletrônicos", parte da doutrina percorre, das premissas até a conclusão, um processo dedutivo análogo a este: (a) os livros são protegidos pela imunidade; (b) todas as obras que veiculam idéias e são dispostas em seqüência lógica são livros; (c) o chamado "livro eletrônico" consiste numa obra que veicula idéias e é disposta em seqüência lógica; (d) o "livro eletrônico" é um livro; (e) o "livro eletrônico" é protegido pela imunidade dos livros, jornais e periódicos.

Para decidir pelo não-enquadramento dos "livros eletrônicos" no âmbito material da regra de imunidade, outra parte da doutrina percorre, das premissas até a conclusão, um processo dedutivo semelhante ao que segue: (a) os livros são protegidos pela imunidade; (b) todas as obras encadernadas e ordenadas em folhas de papel são livros; (c) o chamado "livro eletrônico" não consiste numa obra encadernada e ordenada em folhas de papel; (d) o "livro eletrônico" não é um livro; (e) o "livro eletrônico" não é protegido pela imunidade dos livros, jornais e periódicos.

Como se vê, esse processo dedutivo, que contém o núcleo da fundamentação racional, é o que se convém chamar de justificação interna, mediante a qual se pode avaliar se o juízo decorre logicamente das premissas. A justificação interna não consiste numa fundamentação completa, na medida em que as premissas resolutivas nas duas hipóteses apresentadas (premissas "b"), que decidem efetivamente sobre uma interpretação - restritiva ou extensiva - do vocábulo livro e pela inclusão do conceito de "livro eletrônico" no conceito de "livro", são meramente aplicadas na justificação interna. Não são, porém, fundamentadas. É dizer: tanto a premissa "todas as obras que veiculam idéias e são dispostas em seqüência lógica são livros", quanto a premissa "todas as obras encadernadas e ordenadas em folhas de papel são livros" são aplicadas sem ser justificadas. É que sua justificação depende de argumentos: os argumentos são elementos de justificação racional da interpretação jurídica.1 E a tarefa da interpretação jurídica é, precisamente, fundamentar esse tipo de premissa. Esse trabalho de fundamentação da premissa escolhida convém seja qualificado de justificação externa, mediante a Page 3 qual são avaliados os argumentos empregados para decidir por uma interpretação em detrimento de outra(s).2

A discussão a respeito do enquadramento do "livro eletrônico" na classe de objetos abrangidos pela imunidade dos livros e periódicos tem sido matéria de notáveis estudos doutrinários.3 Neles, torna-se evidente a inevitável discordância dos autores no tocante à conclusão sobre o tema tratado: enquanto alguns concluem pela inclusão do "livro eletrônico" no conceito normativo de "livros", outros decidem pelo seu não-enquadramento. Essa disparidade de interpretação não se restringe à compreensão do "livro eletrônico" no gênero "livros"; a discordância vai além, para alcançar os próprios argumentos que são utilizados pelos autores para justificar as premissas que adotam. E são, afinal, esses argumentos que decidem pela inclusão, ou não, do "livro eletrônico" no âmbito material da regra de imunidade dos livros, jornais e periódicos.

Com efeito, os argumentos empregados para justificar a inclusão do "livro eletrônico" na classe dos "livros" são tão variados quanto os seguintes: o "livro eletrônico" seria usado, atualmente, como uma espécie de "livro"; a inserção do "livro eletrônico" na classe dos "livros" evitaria a contradição com princípios constitucionais fundamentais; o "livro eletrônico" consistiria num simples meio, equivalente ao livro, para garantir a liberdade de expressão e de informação; de acordo com o Supremo Tribunal Federal, a imunidade em apreço deveria ser interpretada de acordo com a finalidade que visa a alcançar; o "livro eletrônico" significaria, hoje, aquilo que o "livro" representou ontem.

Os argumentos aplicados para fundamentar o não-enquadramento do "livro eletrônico" da classe dos "livros" são igualmente diversificados: a expressão "e o papel destinado a sua impressão" afastaria da imunidade qualquer objeto que não fosse feito de papel; o vocábulo "CD-ROM" teria acepção técnica diversa da de "livro"; o Supremo Tribunal Federal já teria decidido só haver livro onde há papel; ao mencionar o papel no dispositivo constitucional, o legislador constituinte teria objetivado proteger apenas o livro impresso em papel; a proposta de inclusão do "livro eletrônico" teria sido rejeitada pelo legislador constituinte; não tributar o "livro eletrônico" traria perda significativa de receita para o Estado no futuro. Page 4

Que todos esses argumentos podem ser utilizados na interpretação da imunidade em comento, não há dúvida; hesitação existe, contudo, quanto a saber se todos eles têm a mesma importância jurídica. Como será analisado, os argumentos usados na interpretação não são juridicamente equivalentes. Eles têm fundamentos desiguais e, por isso, valores diferentes. Não podem, por conseqüência, nem ser empregados indistintamente, nem ser tomados um pelo outro, como se fora a sua escolha e a sua valoração uma manifestação de mero capricho do intérprete.

O objetivo deste estudo não se circunscreve aos argumentos que podem ser utilizados na interpretação jurídica (da imunidade dos "livros eletrônicos"), matéria essa já objeto de excelentes publicações; ele abrange, também, o debate sobre a especificidade de cada argumento e sobre a sua própria dimensão de peso no direito brasileiro. Não se pretende apenas criar condições para que se saiba por que são escolhidas determinadas alternativas de interpretação (razões explicativas ou subjetivas); intenta-se, também, apresentar critérios para valorar as decisões de interpretação de acordo com o ordenamento jurídico (razões justificativas ou objetivas).4

Para tanto, é preciso, em primeiro lugar, diferenciar os argumentos em função de seu fundamento; em segundo lugar, valorar cada um deles com base no ordenamento jurídico brasileiro. Lá, um discurso sobre o discurso da ciência do direito (discurso metateórico), na medida em que apresenta uma alternativa de qualificação dos argumentos empregados no discurso doutrinário; aqui, um discurso sobre o ordenamento jurídico (discurso teórico), enquanto explica coerentemente quais são as implicações metodológicas dos princípios constitucionais relativamente aos argumentos empregados na justificação de premissas do raciocínio jurídico.

Não se pretende apenas descrever como os argumentos estão sendo de fato aplicados pela doutrina e pela jurisprudência na interpretação jurídica. O fato de eles estarem sendo empregados dessa ou daquela forma não quer dizer que não poderiam ou deveriam ser utilizados de outra maneira. Este trabalho pretende explicar, outrossim, como os argumentos podem e devem ser utilizados na interpretação jurídica.5 Para alcançar esse propósito utilizou- Page 5 se um verdadeiro caso-limite, que proporciona a análise dos vários argumentos empregados na interpretação jurídica.

I - Distinguindo os argumentos jurídicos
A - Classificações na ciência do direito

As classificações elaboradas pela ciência do direito, enquanto voltadas à explicação coerente do ordenamento jurídico, submetem-se a limites dele decorrentes. Com efeito, será a compatibilidade com o ordenamento jurídico que permitirá avaliar a procedência da classificação, por exemplo, da eficácia das normas constitucionais, dos efeitos das decisões judiciais ou das espécies tributárias; o exame do ordenamento jurídico poderá confirmar ou infirmar a existência de normas de eficácia limitada, a subsistência de decisões sem nenhum efeito declaratório ou mesmo a possibilidade de exclusão da finalidade e da destinação da arrecadação como critérios para a divisão dos tributos em espécies. A nomenclatura e a variedade de divisões e subdivisões dos objetos classificados irá, porém, variar de acordo com a finalidade e o critério a que serve o agrupamento. Nesse quadro, as classificações serão mais ou menos adequadas à explicação de determinado objeto.6

É verdade que fazer as distinções entre os argumentos pode conduzir à rigidez classificatória; e a rigidez classificatória pode levar à desconsideração da multiplicidade de relações entre os argumentos diferenciados, bem como pode deixar de fazer frente ao caráter prático-institucional do Direito. Não é menos verdade, no entanto, que deixar de fazer as devidas distinções entre os argumentos pode levar à arbitrariedade argumentativa; e a arbitrariedade argumentativa conduz à não-fundamentação das premissas utilizadas na interpretação jurídica. Com efeito, tanto a ausência de definição dos argumentos utilizados quanto a falta de diferenciação entre eles...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT