A ampliação da Proteção Jurídica dos Empregados Domésticos

AutorJorge Cavalcanti Boucinhas Filho/Rúbia Zanotelli de Alvarenga
Ocupação do AutorMestre e doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo/Mestre e Doutora em Direito do Trabalho pela PUC Minas
Páginas261-274

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1. Considerações iniciais

A recém-publicada Emenda Constitucional n. 72 de 2 de abril de 2013 dispõe de um único artigo que se limita a alterar o parágrafo único do art. da Constituição brasileira. A sua repercussão econô-mica e social, está sendo, contudo, gigantesca. Ela representou, ao fim e ao cabo, o mais importante passo, dado até aqui, em direção ao fim de uma das mais injustificáveis discriminações positivadas em textos legais do ordenamento jurídico brasileiro, a desigualdade de tratamento entre os empregados domésticos e as demais formas de empregados urbanos. Um resquício cultural que guardamos desde a época colonial em que os senhores de engenho e suas sinhás mantinham mucamas para cuidar dos afazeres domésticos das “Casas Grandes”.

Nada, além do apego a essa malfadada tradição histórica, justificava o fato de os empregados domésticos não disporem, no Brasil, dos mesmos direitos assegurados aos demais trabalhadores urbanos. Esse costume poderia ter sido facilmente abandonado em 1943. Era preciso apenas o legislador ter excluído do texto da Consolidação das Leis do Trabalho a regra do art. 7º, “a”1 ou, melhor ainda, ter estatuído expressamente que todas as regras ali dispostas seriam sim aplicáveis às domésticas. Optou, no entanto, por respeitar a tradição. As casas e apartamentos brasileiros continuaram a ser construídas e vendidas com “dependência de empregada”...

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Anos mais tarde seria preciso apenas que os representantes do povo brasileiro optassem por assegurar aos domésticos os mesmos direitos do urbano ao invés de elaborar um estatuto do trabalhador doméstico, como o de 19732, marcado pelo viés discriminatório, para que uma grande revolução cultural fosse verificada. Preferiu-se novamente manter o apego aos resquícios de colonialismo.

Novamente em 1988 perdeu-se outra valorosa oportunidade de encerrar essa injustificável desigualdade de tratamento. Bastava que o art. 7º, parágrafo único tivesse igualado de uma vez por todas os direitos dos trabalhadores domésticos aos dos trabalhadores urbanos ao invés de elaborar um rol taxativo de direitos trabalhistas assegurados aqueles. Optou-se, mais uma vez, pelo apego a um passado escravagista que deveria ser esquecido.

A edição, em dez de fevereiro do ano 2000, de um Decreto regulamentando dispositivos da Lei n.
5.859 e a discreta alteração desta lei pela de número n. 10.208, de 23.03.2001, para facultar o acesso do empregado doméstico ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e ao Programa de Seguro-Desemprego, foram formas de hipocritamente manter a situação como estava. Poucos empregadores domésticos efetivamente optaram por contribuir para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço de suas domésticas, requisito indispensável para que a elas fosse assegurado o seguro-desemprego.

Outra oportunidade de encerrar por vez a discriminação entre domésticos e outros tipos de trabalhadores foi perdida em 2006. A Lei n. 11.324 de
19.07.2006 implementou modificações no regime de férias dos trabalhadores domésticos, vedou descontos salariais do empregado doméstico pelo fornecimento de alimentação, vestuário, higiene ou moradia e a dispensa da doméstica gestante desde a confirmação da gravidez até 5 (cinco) meses após o parto. As mudanças novamente ficaram muito aquém do necessário para acabar com a discriminação legalizada ora criticada.

Esse breve escorço histórico nos ajuda a perceber que o fato de o projeto de Emenda haver sido aprovado em curto espaço de tempo não significa que o tenha sido de forma prematura. Muito pelo contrário. A evolução cultural que será impulsionada pelas novas regras demorou injustificadamente para acontecer. Possivelmente porque a elite brasi-leira, composta em sua esmagadora maioria por empregadores domésticos, recusava-se a reconhecer a necessidade de se conferir aos seus empregados os mesmos direitos assegurados a todos os demais.

Quando finalmente a Emenda Constitucional n. 72 ampliou substancialmente os direitos trabalhistas dos domésticos não foram poucos os que a criticaram. O principal motivo de críticas foi, inquestionavelmente, o encarecimento que o singelo texto legal de não mais do que algumas palavras causará no trabalho doméstico. Houve quem enfatizasse que além de gerar encarecimento suas medidas tornaram a relação de trabalho mais burocrática e conflituosa3. E quem enfatizasse que essa estrutura de relação de emprego era fruto de um costume e tradição que ao invés de discriminar os domésticos, os favorecia, destacando que o processo de desmonte das instituições que foram criadas ao longo dos anos no tocante ao trabalho doméstico, se inadequadamente acelerado, poderá resultar em aumento massivo de desemprego, prejudicando milhões de trabalhadores que hoje são empregados nessas atividades4.

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As críticas, contudo, não são pertinentes. O custo que será gerado para os empregadores domésticos pelas novas regras está contido no preço natural a ser pago para que se viva numa República que tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Se por um lado é verdade que o impacto econômico das políticas trabalhistas não deve ser ignorado no momento da implantação de novas regras trabalhistas e da instituição de novos direitos, sob pena de se criar a chamada “proteção que des-protege”, pois gera desemprego, por outro ele não pode ser utilizado eternamente como óbice para a implementação de direitos humanos e correção de injustiças históricas. Admitir esse tipo de justificativa resulta em adiar indefinidamente modificações urgentes e indispensáveis. Se essa ideia tivesse restado vitoriosa em outros momentos da historia, o Brasil não teria jamais abolido a escravidão legalizada. Afinal, como bem observou Lênio Luiz Streck, nos momentos que antecederam a abolição da escravatura, dizia-se “que ‘a-economia-do-país-iria-à-bancarrota’, que a produção seria sacrificada e que o ‘sagrado’ direito à propriedade seria desrespeitado”5.

O aumento da burocracia e a tradição e os costumes tampouco são argumentos razoáveis para se adiar ainda mais a homogeneização dos direitos dos trabalhadores urbanos. O pequeno sacrifício adicional que formalidades como o controle de jornada para os empregadores domésticos gerarão não são nada comparados à evolução que as novas regras trarão para a sociedade brasileira. O apego à tradição e aos costumes só é válido quando forem adequados e dignos de eternização. Do contrário ele sempre nos manterá estacionado no mesmo estágio da evolução.

2. Conceito de empregado doméstico

Empregado doméstico, nos termos do art. 1º da Lei n. 5.859/1972, é a pessoa física que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucra-tiva à pessoa ou à família no âmbito residencial das mesmas. Os marcos distintivos entre essa e outras formas de emprego urbano são, nos termos da legislação vigente, o fato de a atividade desenvolvida pelo empregado doméstico não resultar em lucro para o empregador, de ser realizada “no âmbito residencial” e com continuidade e não mera eventualidade.

A doutrina, entretanto, consagrou, de forma bastante acertada, que deverá ser considerado trabalho doméstico aquele prestado “para o âmbito residencial”, ainda que desempenhado parcialmente ou totalmente fora da casa do patrão, como sói ocorrer com os motoristas. Para Vólia Bonfim Cassar há um equívoco na redação contida no artigo 1º da Lei supracitada, quando este se refere ao trabalho executado “no” âmbito residencial do empregador doméstico. Em sua opinião seria mais apropriada a expressão “para” o âmbito residencial, pois há domésticos que executam serviços para a família ou para o âmbito residencial ou para o consumo da pessoa física, e não o faz para terceiros6. Até porque “para ser doméstico, basta trabalhar para empregador doméstico, independentemente da atividade que o empregado doméstico exerça, isto é, tanto faz se o trabalho é intelectual, manual ou especializado”7.

Assim, a função do doméstico pode ser a de acompanhante ou de cuidador(a) de idosos, enfermeiro(a) residencial, faxineiro(a), cozinheiro(a), jardineiro(a), professor(a) particular, motorista particular, segurança particular, babá, governanta, lavadeira, porteiro de casa, vigia, dentre outras. O caseiro também poderá ser considerado empregado doméstico, desde que o local onde a função laborativa é desenvolvida não explore atividade econômica.

Outra distinção feita pelo estatuto do trabalhador doméstico diz respeito à opção pelo epíteto “continuidade” em detrimento de “não eventualidade”. Há quem sustente que seriam sinônimos. A posição que vem prevalecendo, contudo, é no sentido de que as duas expressões não apresentam o mesmo alcance8. Exige-se mais rigor na caracterização do

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elemento continuidade do que na caracterização do elemento não eventualidade. Um trabalho somente pode ser considerado contínuo quando inexistir uma interrupção, seja por qual razão for, no fluxo sequencial das atividades. Para que seja considerado não eventual é suficiente que ele não seja contratado para um evento específico, mas para uma sucessão de tarefas ou para uma atividade que se prolongue no tempo.

É por essa razão que o trabalho de um professor que leciona uma única disciplina, em um dia específico da semana, por exemplo, a segunda-feira, é considerado não eventual, mas seguramente não poderia ser considerado contínuo. É não...

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